A fotografia circulou numa rede social, a Reditt, e chegou-me através de outra rede social, a WhatsApp. Com um título: Paris. Rarely does a photo so accurately capture the spirit of an era. E inúmeros comentários. Confesso que ainda não sei se concordo com a presunção de que esta imagem de uma jovem sorridente a fotografar, do interior de um restaurante de uma cadeia multinacional, os confrontos em Paris. É mesmo a melhor síntese das contradições dos tempos que vivemos. Deixo esse julgamento aos meus leitores. E, para os ajudar nessa tarefa, uma lista relativa longa de leituras sobre o que se passou nas últimas semanas em França e que, na verdade, ainda não sabemos se acabou, pois não sabemos se o recuo do governo de Emmanuel Macron na taxa sobre os combustíveis é suficiente para aplacar a ira dos “gilets jaunes”, ou “coletes amarelos”, como ficaram conhecidos os protagonistas desta verdadeira fronda.
Para quem quiser ter uma boa introdução ao que tem sido este protesto, como ele começou e se desenvolveu, Cátia Bruno explicou o essencial num especial do Observador, Movimento espontâneo ou peão de partidos extremistas? Quem são os “Coletes Amarelos”, onde há uma frase que diz quase tudo: “A “França do fim do mês difícil” juntou-se no Facebook e decidiu sair à rua”. Não são os mais pobres, não são os que vivem desafogadamente, são os que viram as suas expectativas goradas: “O que é que eles vão fazer? Dar-nos ajudas? Não é ajudas que queremos, queremos é viver dignamente do nosso salário”; “O voto? Isso é uma cortina de fumo. Aquelas pessoas já não nos representam, só se representam a si próprios.” Estas foram algumas das respostas dadas por “Coletes Amarelos” a um jornalista do Le Monde ao longo dos últimos dias, quando perguntados sobre o que esperam dos seus representantes. As frases deixam claro que o anúncio do aumento da taxa sobre o combustível foi simplesmente o rastilho das manifestações. “Isto já é mais do que um protesto contra um imposto”, reconhece ao Observador Romain Pasquier, diretor do Centro de Pesquisa da Ação Política Europeia da Universidade de Rennes e investigador na área do regionalismo francês.” No mesmo texto também se explica que “Há uma clivagem real entre o ‘centro’ e a ‘periferia’ em França, das grandes cidades face às zonas rurais. O que os ‘Coletes Amarelos’ fzeram foi revelar à opinião pública que esta clivagem existe”, resume. “Este novo modelo de desenvolvimento baseado nas questões das alterações climáticas é visto pelas ‘pessoas comuns’ como sendo promovidas pelas elites urbanas de Paris, simbolizadas por Emmanuel Macron e pelos ministros. Por isso este é claramente um protesto contra a visão ‘parisiense’ de França.”
Marc Bassets, do El Pais, foi à procura dessa França da “periferia”, que é também uma França vazia. Em La Francia vacía que explica a los ‘chalecos amarillos’ conta-nos “Un viaje a la provincia francesa donde ha estallado el hartazgo contra el presidente Emmanuel Macron”. O mapa que reproduzo acima mostra-nos onde fica essa “França vazia”, que Bassets retrata assim: “El paisaje de la Francia profunda tiene un aire a América profunda. Con una diferencia sustancial. Este es uno de los países más igualitarios, con una red social que deja a pocos en la cuneta y unas disparidades atenuadas por políticas redistributivas. Ni Francia es Estados Unidos ni la Nièvre es el Medio Oeste. Y Nevers no es Detroit, pese a que el semanario Paris Match, para indignación de muchos locales, titule esta semana un reportaje “Nevers, ciudad muerta”. Paris Match parte una realidad innegable: la de la bajada de la población y el cierre de comercios. Un paseo por algunas de las calles más céntricas ofrece una sucesión de escaparates abandonados o ruinosos. Un informe del Ministerio de Economía, publicado en 2016, situaba a Nevers como una de las cuatro ciudades medianas francesas con más comercios vacíos, alrededor del 22% del total. La migración a partir de los setenta a los barrios residenciales de las afueras, acompañada de la construcción de macrocentros comerciales, contribuyó al declive.”
Esta é uma parte da realidade. Outra podemos encontrá-la nos números escolhidos pelo New York Times em These 5 Numbers Explain Why the French Are in the Streets. E que são os seguintes:€1,700: Median monthly take-home pay (o dobro do salário mediano em Portugal...); 1.8 percent: Economic growth; Above 9 percent: Unemployment; €3.2 billion: Tax cut for the rich; €715 billion: The social safety net.
O problema deste último ponto é que para pagar este Estado Social os franceses suportam impostos muito elevados, e não há a percepção que a sua distribuição seja justa. E, como explica Guillaume de Thieulloy em A French Revolution?, no site Law and Liberty, “For one thing, the “elite” today as in the time of Marie Antoinette is very far from the people. It understands nothing about the “yellow vests” opposition. A worker earning around 1,000 Euros a month cannot take in stride a hike in his fuel charges of 100 Euros a month. The salvation of the planet is clearly not enough to convince him of the merits of this political decision. Especially when social networks recall for him that Emmanuel Macron told us, only two years ago, that diesel fuel was better for the environment than ordinary gasoline!” Mais: “The “yellow vests” are people who lost a lot due to globalization—not only from an economic perspective, but also from a political and a cultural one. Out of tune with them are those who persist in believing the “happy globalization” that was promised by former Prime Minister Alain Juppé (a mentor to Edouard Philippe, who now serves Macron as Prime Minister).”
Este mesmo ponto é dos que foi sublinhado por Rui Ramos no Observador, em Três erros sobre a França dos coletes amarelos: “Na década de 1990, já eram óbvios os desequilíbrios dos regimes sociais europeus. Mas acreditou-se que a “globalização” (que outros achavam ser o problema) poderia resolver a dificuldade, através da criação de riqueza nos mercados globais. Acontece que no caso francês (e em outros), esses mesmos desequilíbrios limitam a competitividade do país. A França enfrenta assim um paradoxo que Portugal e a Europa do sul conhecem bem: quanto menos dinâmica é a economia, mais castigada é a sociedade por impostos, porque os governos precisam de compensar as clientelas, e não há outra via senão o fisco e a dívida. Eis como duram os Estados europeus, navegando entre duas revoltas possíveis: a dos contribuintes e a dos dependentes.”
Aparentemente foi nesta tormenta que o presidente francês encalhou. Mesmo podendo-se concordar com as políticas propostas – como sucede com a The Economist, no seu editorial desta semana, Only human, after all: Emmanuel Macron’s problems are more with presentation than policy –, a verdade é as expectativas eram grandes, como a revista recorda: “Young, intelligent and bubbling with ideas to make France more open, dynamic and fiscally sober, he gave an eloquent rebuttal to the drawbridge-up nostalgia of Brexit Britain, Donald Trump’s America and the autocracies of eastern Europe. The hope for a broad renewal of the radical centre came to rest on his shoulders. When this new party, a band of political newcomers powered by social media, won a thumping parliamentary majority, the Macron revolution seemed unstoppable.”
Que se passou então? O diagnóstico mais comum é que Macron perdeu a ligação com o seu eleitorado – sobretudo com o povo comum. E cometeu o pecado da arrogância. Em France’s Fuel-Tax Protests Expose the Limits of Macron’s Mandate Rachel Donadio, da The Atlantic, defende que “The youthful French president excels at lofty, often abstract, rhetoric; at symbolic gestures; at grand moments, such as the one last month for Armistice Day, when he united most leaders of the free world (...). What Macron lacks is a common touch, an ability to charm citizens and make them feel they’re part of the story.” Um bom exemplo de como ele representa bem as elites urbanas mas parece estar longe dos habitantes da França rural é a origem dos fundos do seu partido: “A recent study in the Journal du Dimanche, a weekly newspaper, found that Macron’s République en Marche party had received more donations from the U.K.—€800,000—than from all French regions outside Paris combined. His support is from cosmopolitan areas, not from people in the provinces who may feel left behind.”
Sendo que estamos em França, aquele país habituado a fazer fracassar nas ruas o que se decide nos parlamentos, como se recorda no The Washington Post, em What France’s ‘yellow vests’ protests say about Emmanuel Macron, um texto onde também se reflecte sobre como é neste caldo de cultura que medram os populismos de direita e de esquerda: “In a well-functioning democracy, political institutions channel and respond to demands and discontent in a systematic, peaceful way. What the disorganized, leaderless nature of the yellow vest movement reflects is the decline of traditional parties and organizations, particularly unions, in France and much of the rest of Europe. It also reflects the broader failure of governments to recognize and respond to citizens’ concerns and demands. This is, of course, the type of situation in which populism thrives. And indeed, both the populist left, represented by Jean-Luc Mélenchon and his France Insoumise party, and the populist right, represented by Marine Le Pen and the National Rally (formerly National Front), have tried to exploit the yellow vest movement, claiming it naturally aligns with their goals. (...) Macron came to power promising to be the solution to populismo. (...) If he doesn’t manage a reset in light of this crisis, we may look back on the yellow vests as another stage in the rise of populism in Europe.”
Ora a sua cedência desta semana – que não garante o fim do movimento, pois pode voltar a haver manifestações e confrontos este sábado – é mais um sinal de que a França continua fiel aos seus hábitos, como se escreve em Macron’s climbdown shows street power is back in France: “Tuesday's surrender amounts to a precedent-busting change of tone for Macron's administration, which had previously treated the phrase "stay the course" as a quasi-slogan. (...) Most worryingly for Macron, a poll on Monday showed that 72 percent of French people continue to support the Yellow Jackets despite the violent protests. Meanwhile, the president has seen his polling numbers sink ever further into electoral quicksand — only six months out from the European Parliament election. Around 30 percent of French people or even fewer have a positive opinion of the present, and negative opinions of him are most common among the lowest income brackets.”
Esta distância relativamente aos cidadãos comuns vem bem retratada por Jonathan Miller, da Spectator, que em Emmanuel Macron has united France against him, também recupera o paralelo com Maria Antonieta: “But his hubris, arrogance and almost autistic detachment from the French in the street is in a class with Marie Antoinette. Except that this time around, the courtier whispers, “Mr President, the people cannot afford diesel.” To which the cloth-eared Macron has, in effect replied: “Let them buy Teslas.” Como recorda, “Macron may have won the presidency, albeit in curious circumstances, but he is politically tone deaf. His obsession with the environment and keeping his green allies on board has led him to ignite a wildfire in France that threatens to consume his entire ambitious reform program while diminishing him on the world stage. A comparison with Nero is not inapt. He is fiddling with carbon reduction targets while Paris burns.”
Pode haver aqui algum exagero retórico, mas há um ponto onde vários analistas convergem: na arquitectura constitucional francesa o Presidente tem poderes excepcionais e, por isso mesmo, responsabilidades excepcionais. A questão é saber estar à altura. No El Pais recorda-se isso mesmo em Claves para entender por qué la protesta de los ‘chalecos amarillos’ daña a Macron: “La V República, decía su fundador, el general De Gaulle, es el encuentro de un hombre con el pueblo. Esto puede ser una ventaja: el presidente está legitimado por el voto directo popular, atesora poderes insólitos en la mayoría de democracias occidentales y, cuando dispone de una mayoría parlamentaria, puede gobernar a su aire durante cinco años. La desventaja es, como explica el politólogo Jaffré, que “la V República puede ser un sistema brutal”, porque “deja al presidente solo ante el pueblo”. Cuando, como es el caso en la actualidad, delega poco y ejerce de ministro de todo, y cuando el país es tan centralista como Francia y el poder se concentra en el Elíseo, no hay amortiguadores entre él y el descontento popular. Todo recae en el jefe del Estado.”
Ora Macron, que prometeu descentralizar, de alguma forma contrariando a natura da V República, centralizou, como se explica neste artigo de Jérôme Fenoglio originalmente publicado no Le Monde, Macron, What Now? France Faces Worst Social Unrest Since 1968: “The questioning of intermediary institutions, systematically bypassed since the beginning of Macron’s term, is a major handicap — as they would now be crucial to help confine a social conflict of this type. The advertised modernity has been transformed into an incapacity to understand the new forms of expression and mobilization of an unprecedented movement. Macron's king-like posture has been reduced to a more and more visible inaptitude to obtain concrete results in maintaining order. The courageous reformer has become the "president of the rich," having given key tax breaks to the well-off.”
É neste quadro que se devem compreender os sinais de inquietação que chegam de outros países, onde muitas esperanças tinham sido depositadas num “renascimento francês”. Matthew Karnitschnig, no Politico, em The rise and fall of Macron’s European revolution, escreveu que “Macron’s failure to live up to expectations is not just bad news for the cause of EU reform. Many had also hoped that once German Chancellor Angela Merkel leaves office, he would be the one to take her mantle as the EU’s de facto leader. So far, there’s little reason to suggest he can.” E Natalie Nougayrède, no Guardian, considera mesmo queMacron’s crisis in France is a danger to all of Europe: “Extreme forces across Europe are busily rejoicing over Macron’s gilets jaunespredicament. From Britain’s hardline Brexiters (both left and right) to Italy’s far-right strongman Matteo Salvini, not to mention Putin’s propaganda outlets, the relish is unmistakable. Upheaval and chaos in liberal democracies is what they thrive on. The prize the extremists seek is a political takeover of Europe in next May’s European parliament elections. Events in France are ominous, and their significance extends far beyond one country’s borders.”
Apetece-me pois por isso fazer coro com Miguel Pinheiro que aqui no Observador apelou a que Deus nos ajude (em 11 pontos). Os três primeiros eram precisamente sobre o que se passa em França:
- Nas manifestações dos “Coletes Amarelos”, sente-se a nostalgia da guilhotina. Mas quem se entusiasma vendo a violência do sofá esquece que, em democracia, um carro em chamas não pode valer mais do que um voto numa urna.
- Na análise aos “Coletes Amarelos” há ainda um equívoco histórico e um preconceito moderno, que unem Le Pen e Mélenchon: o de que, quando quer ser ouvido, o “povo”, coitado, só sabe falar como “povo em armas”. Eu prefiro sempre o “povo” que troca a adrenalina de uma montra partida pela tranquilidade de uma fila de voto.
- O problema é que Macron preferiu o cálculo à coragem. Depois dos distúrbios do último fim de semana, o Presidente francês decidiu suspender o aumento de impostos que levou aos distúrbios. É a nostalgia de Maria Antonieta.
E por aqui me fico, que vai longo, longuíssimo, este Macroscópio, e só amanhã saberemos até que ponto o recuo de Macron aplacou a fúria dos “coletes amarelos”. Pedindo-vos compreensão para este exagero, fico com a consolação de que, entre tantas referências, algumas boas pistas terão ficado para entender mais esta crise no coração da Europa. De resto tenham bom descanso e poucos excessos consumistas – apenas os razoáveis.
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