- Péricles Capanema
Ah, abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado
Brasil, Brasil
Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado
Brasil, Brasil
Uma sociedade ideal. “Aquarela do Brasil”, canção de Ary Barroso (1903-1964), composta em 1939, já se vão mais de oitenta anos, é conhecida no mundo inteiro e de todo mundo. Nenhuma canção da música popular brasileira marcou tão longe e tão fundo. Carlos Heitor Cony (1926-2018), em 2008, escreveu: “Na virada do ano 2000, a Rede Globo fez uma enquete para saber qual teria sido a música popular mais importante do século 20. Deu ‘Aquarela do Brasil’ na cabeça, votação que só não foi unânime porque um dos questionados votou em outra”. Um dos motivos de seu enorme prestígio salta à vista. A melodia evoca uma sociedade ideal, ainda no nascedouro, forte em raízes. mas que já apresentava traços característicos marcantes. Começava a se firmar e a se afirmar, apresentando a todos uma forma de relacionamento humano com potencialidades regenerativas. Num mundo dilacerado pela guerra, surgia uma canção cicatrizante.
Censuras sulfurosas. Hoje, contudo, a letra provoca críticas acerbas e rejeições totais; é politicamente incorreta. Um resumo delas poderia ser “país ideal da era ufanista”; “mera criação cultural o Brasil idealizado”. Procedem? São pelo menos injustas em sua parcialidade, cerebrinas, feitas com viseira. A aquarela é pintura de país ideal, sem dúvida. Existia certo ufanismo no ar, refletido no texto, correto. Houve muita criação cultural deslocada dos fatos reais, desprovida de observação social; também é verdadeiro. Mas tais censuras, em parte amontoado de frases feitas e slogans canhestros, não abarcam a realidade inteira. “Aquarela do Brasil” assenta suas bases mais fundas em um substrato real, presente na sociedade do Brasil, mais naqueles anos que agora, que não merece ser empurrado para o corredor da morte, à espera da cadeira elétrica ou da injeção letal. Merece outra coisa, de sentido contrário: viver, ser nutrido, prosperar, afirmar-se. E o encanto que a canção despertou em grande parte foi pela percepção da realidade incipiente que retratava. O que lhe trouxe a perenidade no prestígio não foi o ufanismo oco nem a idealização postiça, foi o substrato palpitante da existência que exprimia. Dela evolou um aroma que a perenizou na memória dos homens.
O Brasil, verde que dá
Para o mundo se admirar
O Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim!
Evocação de convívio exemplar. E como o autor fez isso? Inicialmente, abrindo as cortinas do passado e ali recolhendo sementes do que poderia ser chamada com alguma liberdade a fórmula brasileira de convívio. Do passado o autor retira em primeiro lugar a mãe preta e a apresenta. Vejam, admirem, entendam, imitem, mesmo que ainda no grão, a elevação de sentimentos e a compreensão correta da vida. Chama a atenção para o afeto da preta que nutre o menino branco, o que faz lembrar a estima mútua que permanecia entre eles; ia pela vida afora. Suscita ainda a recordação da proximidade entre as duas mães, a natural, branca, e a ama de leite, preta, igualmente vida afora. E observem agora o rei congo que canta no congado, vejam o gingado, o que expressa, o que auspicia. Perpassa a letra a benevolência mútua entre as raças, da qual florescerá, se bem entendida e aperfeiçoada, convívio racial benéfico a todos, favorecedor do bem comum.
Negrume com cintilações. Foi horrível a escravidão? Foi, deixou feridas de difícil cicatrização, sequelas das quais devemos nos livrar. Mas naquele ambiente carregado de senões, coloquemos olhos lúcidos, por exemplo nas relações entre a mãe preta, a mãe branca e a criança, como fez Ary Barroso. Observemos também a beleza da dama do 1º ou 2º Reinado bailando em salões ainda tão desprovidos de recursos. Fixemos o olhar no tom, na elegância e educação que ali nascem. Está surgindo uma nação, proporções gigantes, respeitam-na. Todos nela têm seu lugar; entre outros, o mulato ardiloso, com ginga: “Meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos / Ah, este Brasil lindo e trigueiro”. Hoje, não seria admitida tal versificação, proibida pela patrulha ideológica.
Evocações que embalam. A música suscita evocações. Todos as sentem no clima criado pela melodia e letra, aquarela de muitas cores, deixam-se embalar por elas, ninguém ou quase ninguém as explicita. Mas elas existem fortes, enleantes e encantadoras. É uma aquarela de muitas cores que começa a ser pintada.
Não fechemos as cortinas do passado. Deixemos cantar de novo o trovador. Um trovador, não de trovas, mas de textos esclarecedores sobre o Brasil, publicados na mesma época de “Aquarela do Brasil” foi Stephan Zweig, insuspeito no caso. Membro da burguesia judaica rica e culta de Viena, escritor consagrado, viveu o fim da vida em Petrópolis. Percebeu e descreveu o clima retratado por “Aquarela do Brasil”. A visita que ele fez às favelas, mais pobres que as atuais, é expressiva: “Tinha um mau pressentimento. Esperava receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa. Mas para esses indivíduos de boa-fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede bem-vindo e quase um amigo”. Visitasse-as hoje, sem autorização do chefe do tráfico, no mínimo seria depenado. Sequestro ou morte não seriam surpresas. Comenta ainda Stephan Zweig o convívio entre os vários tipos de brasileiro: “O Brasil, por sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranquilo do mundo”. Discorre a seguir sobre a imensa diversidade de raças e continua: “Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema”. Ou seja, constatou ambiente de benquerença generalizada, hoje desaparecido infelizmente. Tal ambiente traz no bojo, incoativa, a resolução do problema do racismo. Não fechemos as cortinas do passado, repito. Ali se descobrem raízes de seiva preciosa.
ABIM
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