Se
outros motivos não nos permitissem afirmar que a sociedade e a própria
civilização se encontram ainda num atraso de séculos, bastaria para isso a
existência do preconceito. É frágil, muito frágil a sua consistência: pode
mesmo comparar-se a um vistoso balão que o mais ligeiro atrito faz rebentar.
Contudo é ainda bastante sólida a sua tradição e, por isso, o preconceito está
bem enraizado em certos meios sociais e em determinadas pessoas.
O
seu convencionalismo significa, em primeiro lugar, uma cristalização de
fórmulas sociais e, em segundo lugar, uma estreita jaula onde se encerra a
inteligência humana e a liberdade de ideias e sentimentos. Não sentem nem
pensam assim, valha a verdade, aqueles para quem o preconceito é a norma do seu
viver. Mais ainda, ele, para tais pessoas, representa um padrão de hierarquia,
de orgulho, de prepotência e de distinção social e racial.
Não
há nada que o justifique em caso alguma mas, em certas pessoas que eu e o
leitor, conhecemos, ele não é somente injustificável, é, mais do que isso,
absolutamente condenável. Em tais casos o preconceito não se baseia em
tradicionalismo, em razões de Estado ou de família; é simplesmente um resultado
de vaidade e estultícia.
Todos
nós nos cruzamos com essas pessoas enfatuadas, muito convencionais, a quem o preconceito
cria situações de que só elas não vêem o ridículo. Uma aragem de dinheiro, uma
regular posição social ou um lugar de certa categoria, e aí está a pessoa às
voltas com o preconceito.
O
chefe de repartição não vai àquele café porque os restantes funcionários o
frequentam. D. Fulana, depois que se viu senhora rica, deixou de comprar os
chapéus na modista X porque ela põe quicos na cabeça das suas ex-amigas pobres.
O sr. «Sicrano qualquer coisa», logo que ascendeu ao poleiro ambicionado, intercalou no nome uma partícula de bom tom e passou a chamar-se «Sicrano de
qualquer coisa»; contudo, nem por causa do de
deixou de ser filho do ferrador lá da terra. O que abarrotou as arcas de oiro
ou simplesmente de vaidade, mas não conseguiu dourar a árvore genealógica por
mais que pulisse, comprou um título e enfiou no dedo um grande anel com brasão
e sinete.
Peneiras,
tudo peneiras! Quando tais pessoas pretendem que se lhes aquilate o valor pelas
falsas aparências, pelos seus mesquinhos preconceitos e pelo ridículo de que se
revestem, provam, pelo contrário, a sua bacoquice e a sua falta de mérito.
Quem, na realidade, possui valor, aprumo moral, inteligência e bom senso, não
se veste de ouropel, não fundamenta a sua vida em ideias falsas, não se
ridiculariza com títulos forjados à última hora nem acrescenta ou transforma o
nome que lhe puseram na pia baptismal e no registo.
Os
valores não necessitam nem admitem fachadas postiças; o seu próprio valor os
impõe à consideração da sociedade sem que nisso tenha influência a sua vontade.
Os pedantes, os que têm a cabeça vazia de conteúdo, não vêem outro meio que os
distinga senão enveredar pelo caminho do preconceito. Tolos, que não avaliam
quanto se riem deles os que não perderam a sensatez. Ninguém os toma a sério,
mas, como a franqueza, em certos casos, não alta as barreiras da educação e das
conveniências, os bacocos, inchados de preconceitos, não sabem, porque não lhes
dizem, a tristíssima figura que fazem. E se lhes dissessem, talvez não acreditassem.
O
preconceito, sob este aspecto, é a anedota da vida. Contudo ele é também,
noutras situações, a tragédia da própria existência. Recentemente teve
retumbância o romance amoroso da princesa Margarida de Inglaterra, a qual, amarfanhando
os seus naturais sentimentos, sacrificou o seu amor, imolando-se ao rígido
preconceito duma corte austera.
Quantas
vidas desencontradas, quantos destinos falhados e quantas lágrimas vertidas sobre
uma saudade de amor só porque o preconceito de certos pais impõe aos filhos as
suas uniões conjugais. A branca flor da amizade não chega a desabrochar entre
os jovens, unindo-os fraternalmente sem peias de situações sociais e económicas
porque a maioria das famílias ricas não permite que os seus filhos acompanhem
com crianças pobres ou doutra condição social.
Alguns
povos, especialmente os ingleses, ainda hoje educam as crianças de «casta» incutindo-lhes
no ânimo a ideia da sua alta estirpe; regra geral, não fazem homens, fazem títeres
desses seres juvenis, convencendo-os de que são diferentes dos restantes
mortais. Quando encontrarem situações na vida em que teriam de saber viver com
todos, como acontece na tropa, tornam-se pessoas inúteis, flores de estufa
cujas folhas se queimam à brisa da fraternidade e do convívio entre os homens.
O
leitor já viu, um cartão-de-visita quilométrico, com muitos nomes e apelidos?
São os cartões dos presunçosos, daqueles a quem sobra o tempo para pensar em
preconceitos sem avaliar que aos outros falta o tempo para ler os seus cartões
de dimensões anormais.
O
homem de preconceitos não frequenta determinados sítios agradáveis, desde que o
seu ambiente seja comunicativo e os frequente toda a gente. É o caso dos
restaurantes populares; mesmo que, sob o ponto de vista gastronómico, sejam
considerados verdadeiros templos, essas pessoas não os frequentam, unicamente
por preconceito. Se no cinema já não houver poltronas de balcão, não vão para s
cadeiras da plateia; desistem de assistir à sessão, ainda que tenham um grande
interesse pelo filme. Para elas o mundo está rigidamente dividido em classes,
e, às consideradas de inferior condição, não estendem a sua mão nem com elas
privam.
Essas
vidas são torcidas e nelas tudo é artificial. A cegueira moral do preconceito
torna as pessoas exigentes, por princípio; críticos intransigentes, por
toleima; enfastiadas, por snobismo, e conselheiras por estupidez. Há sempre
ouvidos benévolos que escutam, ou fingem escutar as suas baboseiras e, por
isso, quando sentem auditório, abrem as válvulas à verborreia, e os dislates da
sua chocha conversa atingem o tamanho da légua da Póvoa.
Se
algum leitor, a quem sirva a carapuça desta observação, a consiga digerir
convenientemente prestará um grande favor à sociedade e a si próprio se atirar
com o preconceito para trás das costas. Passará assim a viver o lado agradável
da existência, aquele em que somos iguais a nós mesmos, sem artifícios, sem
desigualdades chocantes e sem malabarismos de tolas convenções.
Que
esse leitor tenha sempre presente a imagem do preconceito e do orgulho: duas
velhas pilecas, bem emparelhadas, a puxar muito certo ao carro da vaidade.
Por
J. Carlos
(Jornalista)
Pensamento:
“Não se devem julgar os homens à primeira vista, como se fossem um quadro ou
uma estátua.
É
preciso aprofundar-lhes a alma e o coração: a modéstia oculta o mérito, e a
máscara da hipocrisia encobre a maldade”. (La Brugere)
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