domingo, 3 de janeiro de 2016

CONCEITO DO PRECONCEITO

Se outros motivos não nos permitissem afirmar que a sociedade e a própria civilização se encontram ainda num atraso de séculos, bastaria para isso a existência do preconceito. É frágil, muito frágil a sua consistência: pode mesmo comparar-se a um vistoso balão que o mais ligeiro atrito faz rebentar. Contudo é ainda bastante sólida a sua tradição e, por isso, o preconceito está bem enraizado em certos meios sociais e em determinadas pessoas.
O seu convencionalismo significa, em primeiro lugar, uma cristalização de fórmulas sociais e, em segundo lugar, uma estreita jaula onde se encerra a inteligência humana e a liberdade de ideias e sentimentos. Não sentem nem pensam assim, valha a verdade, aqueles para quem o preconceito é a norma do seu viver. Mais ainda, ele, para tais pessoas, representa um padrão de hierarquia, de orgulho, de prepotência e de distinção social e racial.
Não há nada que o justifique em caso alguma mas, em certas pessoas que eu e o leitor, conhecemos, ele não é somente injustificável, é, mais do que isso, absolutamente condenável. Em tais casos o preconceito não se baseia em tradicionalismo, em razões de Estado ou de família; é simplesmente um resultado de vaidade e estultícia.
Todos nós nos cruzamos com essas pessoas enfatuadas, muito convencionais, a quem o preconceito cria situações de que só elas não vêem o ridículo. Uma aragem de dinheiro, uma regular posição social ou um lugar de certa categoria, e aí está a pessoa às voltas com o preconceito.
O chefe de repartição não vai àquele café porque os restantes funcionários o frequentam. D. Fulana, depois que se viu senhora rica, deixou de comprar os chapéus na modista X porque ela põe quicos na cabeça das suas ex-amigas pobres. O sr. «Sicrano qualquer coisa», logo que ascendeu ao poleiro ambicionado, intercalou no nome uma partícula de bom tom e passou a chamar-se «Sicrano de qualquer coisa»; contudo, nem por causa do de deixou de ser filho do ferrador lá da terra. O que abarrotou as arcas de oiro ou simplesmente de vaidade, mas não conseguiu dourar a árvore genealógica por mais que pulisse, comprou um título e enfiou no dedo um grande anel com brasão e sinete.
Peneiras, tudo peneiras! Quando tais pessoas pretendem que se lhes aquilate o valor pelas falsas aparências, pelos seus mesquinhos preconceitos e pelo ridículo de que se revestem, provam, pelo contrário, a sua bacoquice e a sua falta de mérito. Quem, na realidade, possui valor, aprumo moral, inteligência e bom senso, não se veste de ouropel, não fundamenta a sua vida em ideias falsas, não se ridiculariza com títulos forjados à última hora nem acrescenta ou transforma o nome que lhe puseram na pia baptismal e no registo.
Os valores não necessitam nem admitem fachadas postiças; o seu próprio valor os impõe à consideração da sociedade sem que nisso tenha influência a sua vontade. Os pedantes, os que têm a cabeça vazia de conteúdo, não vêem outro meio que os distinga senão enveredar pelo caminho do preconceito. Tolos, que não avaliam quanto se riem deles os que não perderam a sensatez. Ninguém os toma a sério, mas, como a franqueza, em certos casos, não alta as barreiras da educação e das conveniências, os bacocos, inchados de preconceitos, não sabem, porque não lhes dizem, a tristíssima figura que fazem. E se lhes dissessem, talvez não acreditassem.
O preconceito, sob este aspecto, é a anedota da vida. Contudo ele é também, noutras situações, a tragédia da própria existência. Recentemente teve retumbância o romance amoroso da princesa Margarida de Inglaterra, a qual, amarfanhando os seus naturais sentimentos, sacrificou o seu amor, imolando-se ao rígido preconceito duma corte austera.
Quantas vidas desencontradas, quantos destinos falhados e quantas lágrimas vertidas sobre uma saudade de amor só porque o preconceito de certos pais impõe aos filhos as suas uniões conjugais. A branca flor da amizade não chega a desabrochar entre os jovens, unindo-os fraternalmente sem peias de situações sociais e económicas porque a maioria das famílias ricas não permite que os seus filhos acompanhem com crianças pobres ou doutra condição social.
Alguns povos, especialmente os ingleses, ainda hoje educam as crianças de «casta» incutindo-lhes no ânimo a ideia da sua alta estirpe; regra geral, não fazem homens, fazem títeres desses seres juvenis, convencendo-os de que são diferentes dos restantes mortais. Quando encontrarem situações na vida em que teriam de saber viver com todos, como acontece na tropa, tornam-se pessoas inúteis, flores de estufa cujas folhas se queimam à brisa da fraternidade e do convívio entre os homens.
O leitor já viu, um cartão-de-visita quilométrico, com muitos nomes e apelidos? São os cartões dos presunçosos, daqueles a quem sobra o tempo para pensar em preconceitos sem avaliar que aos outros falta o tempo para ler os seus cartões de dimensões anormais.
O homem de preconceitos não frequenta determinados sítios agradáveis, desde que o seu ambiente seja comunicativo e os frequente toda a gente. É o caso dos restaurantes populares; mesmo que, sob o ponto de vista gastronómico, sejam considerados verdadeiros templos, essas pessoas não os frequentam, unicamente por preconceito. Se no cinema já não houver poltronas de balcão, não vão para s cadeiras da plateia; desistem de assistir à sessão, ainda que tenham um grande interesse pelo filme. Para elas o mundo está rigidamente dividido em classes, e, às consideradas de inferior condição, não estendem a sua mão nem com elas privam.
Essas vidas são torcidas e nelas tudo é artificial. A cegueira moral do preconceito torna as pessoas exigentes, por princípio; críticos intransigentes, por toleima; enfastiadas, por snobismo, e conselheiras por estupidez. Há sempre ouvidos benévolos que escutam, ou fingem escutar as suas baboseiras e, por isso, quando sentem auditório, abrem as válvulas à verborreia, e os dislates da sua chocha conversa atingem o tamanho da légua da Póvoa.
Se algum leitor, a quem sirva a carapuça desta observação, a consiga digerir convenientemente prestará um grande favor à sociedade e a si próprio se atirar com o preconceito para trás das costas. Passará assim a viver o lado agradável da existência, aquele em que somos iguais a nós mesmos, sem artifícios, sem desigualdades chocantes e sem malabarismos de tolas convenções.
Que esse leitor tenha sempre presente a imagem do preconceito e do orgulho: duas velhas pilecas, bem emparelhadas, a puxar muito certo ao carro da vaidade.

Por J. Carlos
(Jornalista)

Pensamento: “Não se devem julgar os homens à primeira vista, como se fossem um quadro ou uma estátua.

É preciso aprofundar-lhes a alma e o coração: a modéstia oculta o mérito, e a máscara da hipocrisia encobre a maldade”. (La Brugere)

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