Os casos de corrupção no Brasil, ao atingirem, de novo, o PT, mas chegando desta vez à sua figura mais mítica, Lula da Silva, criaram um evidente desconforto entre todos os que não apenas mitificaram a sua figura, mas também se sentem “irmãos” nas mesmas causas políticas. Sem surpresa esse desconforto acabou por conduzir, no mínimo, a posições dúbias, no máximo a teorias da conspiração. Afinal não estaríamos a discutir a seriedade dos políticos, antes perante uma tentativa de golpe de Estado destinada a afastar do poder o partido de Lula e a Presidente que ele ajudou a eleger, Dilma Roussef.
No Brasil há muito que a discussão e a luta política perderam todo o decoro – pelo menos para o padrão de uma democracia moderna, aberta e sujeita a mecanismos de pesos e contrapesos – e Portugal dificilmente poderia escapar a um debate que, nesta lado do Atlântico, também esquenta os ânimos. Até porque ao falar de Lula já se fala de Sócrates, tal como ao falar do juiz Sergio Moro também se acaba a referir o juiz Carlos Alexandre. Ajudemos pois situar um pouco esse debate, referindo alguns textos recentes.
João Marques de Almeida, numa crónica aqui no Observador logo a 20 de Março, Foi um golpe. Mas foi um golpe do PT e do Lula, descreveu assim a situação no Brasil e o seu eco em Portugal: “O PT acusou uma suposta aliança entre “juízes” e a “direita” por tentar derrubar Dilma Rousseff e, ainda, enviar Lula para a prisão. O argumento “petista” rapidamente atravessou o Atlântico e foi adoptado pelas esquerdas radicais portuguesas, o BE e o PCP. É impressionante como estas esquerdas nunca perdem uma oportunidade para se colocarem no lado errado da História.” Para o colunista a única tentativa de golpe que houve foi sim a de tentar evitar (ou então limitar fortemente) a investigação aos casos que envolvem o antigo Presidente fazendo dele, num rápido passe de mágica, membro do governo de Dilma.
Um bom exemplo das tomadas de posição que aquele colunista criticava foi-nos dado apenas dois dias depois por Francisco Loução, no blogue do Público de que é um dos animadores, num artigo intitulado Brasil: um golpe de Estado em transmissão directa. Aí escrevia, por exemplo, que “É assim que se procede no século XXI: em vez de tanques nas ruas, tudo começa com um juiz que quer derrubar um governo, declarando guerra ao princípio da soberania democrática. É golpe curto, bem sei, prender para eliminar politicamente e depois deixar as coisas seguirem o seu destino. Para este propósito monumental, vem o juiz. O juiz é um poder, e neste caso é certamente um poder especial, pois ignora a proclamada separação de poderes e actua fora da lei, mas é um poder que pode tudo, pois não será corrigido em tempo útil, se é que alguma vez o será. O mal está feito, a desconfiança semeada, o pânico nas ruas, só não sabemos como vai prosseguir a saga.” Mais adiante prosseguia: “Precipitado pelos magistrados golpistas, a manobra decide-se por estes dias no balanceamento dos movimentos da opinião pública, na ocupação da rua, nos ajustes de contas partidários e sobretudo na corrida contra o tempo. O que é certo é que nunca tínhamos visto um golpe de Estado assim: no Brasil, em 1964, no Chile, em 1973, na Argentina, em 1976, foi com baionetas que a ditadura avançou e não com sentenças ou acusações judiciais. Este novo tipo de golpe é mais eficaz”.
Esta tomada de posição, e outras semelhantes, foram pouco depois – a 26 de Março – objecto de uma reflexão de São José Almeida no mesmo Público, num texto duro com título forte e directo: Corrupção é corrupção. Ponto final. Parágrafo. Nesse texto, sem deixar criticar algumas decisões do juiz Sergio Moro, elogia-lhe a coragem e, sobretudo, coloca a pergunta necessária: “Será que Louçã quer fazer de conta que acha que todos nós acreditamos que ele acredita que os indícios conhecidos sobre Lula são tão-só a ida uma vez a uma casa que pensou comprar e não comprou? Considera Louçã que nós acreditamos que ele acredita que é apenas por causa de um juiz que é teimoso e persegue Lula que este está a ser investigado? Será que Jerónimo de Sousa e a restante direcção do PCP acreditam mesmo que nós acreditamos que eles acreditam que o que está em causa é um ataque do capitalismo e dos Estados Unidos a um líder de esquerda?”
Louçã, naturalmente, replicou com novo post – Uma acusação bizarra, ponto final, parágrafo – onde até sentiu necessidade de recuperar um texto mais antigo do Observador (19 de Março), de André Azevedo Alves, “Quando um rico rouba, vira ministro”, onde este também notava que “Sem grande surpresa (e sem qualquer vergonha), a extrema-esquerda portuguesa solidariza-se com Lula, Dilma e o PT”, sem esquecer “o sociólogo Boaventura Sousa Santos – um dos expoentes máximos da hegemonia da esquerda radical no sombrio panorama académico lusófono – classifica o movimento de contestação popular ao PT e de revolta contra a corrupção como “uma destabilização perigosa” que “configura um golpe parlamentar”, culpando (como não poderia deixar de ser) os EUA pelo que está a acontecer no Brasil.”
No seu post, Louçã responde escrevendo, por exemplo, que “Se magistrados usam um expediente ilegal para actuar num processo em que têm responsabilidade, não há justiça. Não vou fazer uma lista das ilegalidades cometidas pelo juiz Moro ou por outros juízes que, em nome da sua causa política, estão a protagonizar este processo. Mas ignorá-las em nome da convicção de que os seus acusados são em qualquer caso culpados é ceder a um perigoso populismo.”
João Miguel Tavares não se deixou comover e, numa polémica que ameaça prosseguir, escreve na sua crónica de hoje sobre o que vai Na cabeça de Francisco Louçã. E conclui: “Afinal, existe uma corrupção de direita e uma corrupção de esquerda. A corrupção de direita está sempre baseada em factos indesmentíveis e é a coisa mais vergonhosa do mundo. A corrupção de esquerda está sempre baseada em teorias conspirativas e é a coisa mais injusta do mundo. Francisco Louçã e a sua cabeça partiram-me o coração: eu pensava que tínhamos uma plataforma mínima de entendimento e que poderíamos encontrar-nos na rua e concordar sobre Ricardo Salgado, José Sócrates ou Lula da Silva. Afinal, não. Só há plataforma de entendimento à direita. O Ricardo Salgado, esse, é de certeza ladrão. Já Sócrates é um presumível inocente. E Lula da Silva uma infeliz vítima de conspirações.”
Na verdade não foi este colunista o primeiro a realizar paralelos directos entre a investigação brasileira e alguns casos portugueses, com o de Sócrates à cabeça. Só que nem todos o fizeram com o mesmo tipo de preocupação. Daniel Oliveira, por exemplo, escrevendo no Expresso, está sobretudo preocupado com aquilo a que chama Uma aliança perigosa (paywall), em concreto a aliança que diz existir entre certros magistrados e certos jornalistas. Para ele “Temos um problema quando os investigadores e juízes emprestam, legal ou ilegalmente, os seus meios de investigação à comunicação social.” A seguir a esta preocupação genérica, concretiza: “A crescente descrença dos cidadãos na política torna esta aliança mortífera para a democracia. O que está a acontecer no Brasil ou a campanha de divulgação de escutas do “Correio da Manhã” não se resume à culpabilidade ou inocência de Lula ou Sócrates. Estão em causa os frágeis equilíbrios de que depende a democracia.”
Claro que Boaventura Sousa Santos não podia deixar de marcar presença nesta arena, e fê-lo com Os perigos da desordem jurídica, no Público, onde escreve que “Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã ou a TVI são a Rede Globo, mas as estruturas profundas do caso José Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam algumas semelhanças inquietantes”. O sociólogo considera mesmo que parte do que está a acontecer em Portugal com a investigação ao antigo primeiro-ministro tem explicações não jurídicas: “Os mais avisados terão presente que, independentemente da culpabilidade que se venha a provar, alguma relação deve haver entre o modo como o processo está a ser tratado e o facto de o réu, quando primeiro-ministro, ter declarado logo no início do seu governo, em 2005, que estava decidido a acabar com dois tipos de situações de privilégio na sociedade portuguesa, a dos magistrados judiciais e a das farmácias. Os mais avisados lembrar-se-ão ainda da guerra que se instalou nos anos seguintes entre o Ministério da Justiça e os órgãos do poder judicial sobre o aparentemente eterno problema do Estatuto dos Magistrados Judiciais.”
Deixo para bons entendedores a leitura destas considerações, mas sublinho que a discussão sobre os juízes que temos ou não temos e as relações entre o poder político e o poder judicial (e também com a comunicação social) não nasceram com estes casos, como recordou Helena Matos em Como e quando mandamos os juízes voltar para casa. Recordando que tudo começou em Itália, nota que “Não é irrelevante para o regime nem para todos nós que tenham de ser os juízes a fazer aquilo que os políticos e os eleitores deviam ter resolvido. Não tenho dúvidas de que a judicialização da política, particularmente acentuada neste início do século XXI, vai marcar nem sempre positivamente as nossas sociedades, tal como o intervencionismo dos militares o fez no século XX.” Na verdade, acrescenta, “Quem judicializou a política e a sociedade não foram as polícias nem os juízes. Fomos nós. Os juízes só estão hoje onde estão porque os políticos desertaram e os cidadãos meteram baixa psicológica”.
Há aqui muita matéria para debate e reflexão, sendo que do Brasil continuarão a chegar notícias (como as de hoje, que mostram Dilma mais isolada) e em Portugal continuaremos a fazer paralelos e comparações. Mas por hoje o Macroscópio não se estende mais. Tenham um bom descanso e melhores leituras.
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