quarta-feira, 27 de abril de 2016

Macroscópio – Shakespeare, Cervantes e o que torna um escritor universal. E eterno

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Vou começar o Macroscópio de hoje com uma pequena história pessoal. Aqui há uns anos, numas férias passadas na Turquia, o pequeno barco em que seguíamos parou numa baía sossegada para passarmos a noite. A certa altura a calmaria do fim da tarde começou a ser invadida pelo sol dos badalos de dezenas de cabras que pastavam nos montes em redor. Um dos nossos companheiros de viagem, um novaiorquino a viver em Londres, realizador e encenador, lembrou-se logo de William Shakespeare, e a Internet ajudou-nos a localizar, num ápice, os versos que pareciam descrever o momento mágico que estávamos a viver:

Be not afeard; the isle is full of noises, 
Sounds and sweet airs, that give delight and hurt not. 
Sometimes a thousand twangling instruments 
Will hum about mine ears, and sometime voices 
That, if I then had waked after long sleep, 
Will make me sleep again: and then, in dreaming, 
The clouds methought would open and show riches 
Ready to drop upon me that, when I waked, 
I cried to dream again.

Os sons dos badalos, como “a thousand twangling instruments”, foi o que nos levou até esta fala de Caliban na peça “A Tempestade”, uma das últimas escritas pelo grande dramaturgo inglês, e a razão porque aqui evoco este episódio é apenas para ilustrar o que faz a grandeza, e a eternidade, de referências universais como Shakespeare: o podermos encontrar neles uma permanente universalidade e actualidade. Lemos hoje Shakespeare com o mesmo gosto com que o poderíamos ter lido na sua época, e o mesmo sucede com o nosso Camões ou com um Vergílio. Ou então com Miguel de Cervantes, o outro autor a que dedicarei o Macroscópio de hoje.

Há por vezes coincidências extraordinárias, e a morte, com poucos dias de diferença, de dois dos génios maiores da cultura ocidental, Shakespeare e Cervantes, é seguramente uma dessas coincidências: o autor de Dom Quixote morreu a 22 de Abril de 1616, o criador de Othello no dia seguinte, a 23 de Abril do mesmo ano. Ou seja, celebramos por estes dias o quarto centenário do seu desaparecimento. Não podia por isso deixar de aproveitar o momento para chamar a atenção para ambos – e também para aquilo que o une e separa.



Como sempre, começo pelo que foi editado em Portugal, onde deve destacar três trabalhos do Observador e um do Público. Os leitores do Macroscópio compreenderão que comece aqui pela casa e o faça por Cervantes, chamando a atenção para As sete maravilhas de Dom Quixote, um especial do escritor Bruno Vieira Amaral sobre essa obra prima de todos os tempos. É um texto que começa com uma citação de um dos mais conceituados críticos literários da actualidade, Harold Bloom – “D. Quixote é uma obra tão original que quase quatro séculos depois continua a ser a obra de ficção em prosa mais avançada que existe. E mesmo assim é subestimada: é ao mesmo tempo o romance mais legível e, definitivamente, o mais difícil” – e que evoluiu com muitas reflexões interessantes sobre o livro, os seus personagens e os seus moinhos de vento. Por exemplo: “Cervantes usa D. Quixote para filosofar e criticar a sociedade do seu tempo porque este goza da impunidade dos loucos. O lamento pelo fim de uma Idade de Ouro que nunca existiu é apenas um artifício para Cervantes deplorar o tempo em que lhe calhou viver.” Ou: “De todas as imagens de D. Quixote, a mais universal será a do homem que luta contra os moinhos de vento. É o símbolo das causas perdidas ou quase impossíveis de concretizar, mas é também uma inspiração para sonhadores e idealistas.”

Quanto a Shakespeare, o Observador dedicou-lhe dois especiais:400 anos depois, Shakespeare continua a falar ao coração dos homens?, de Nuno Costa Santos, e Qual destes foi o verdadeiro William Shakespeare?, de Rita Cipriano. Este último aborda as diferentes teorias – sim, por há várias teorias – sobre quem foi, por onde andou ou com quem se dava o escritor de Startford-upon Avon. Sendo que “Uma das teorias mais populares é a de que Shakespeare era demasiado brilhante para ser uma só pessoa e a sua obra demasiado variada e que, por isso, só poderia ser uma “espécie de associação de soberbos talentos”, como refere Bill Bryson. Nesse incluem-se Francis Bacon, a condessa de Pembroke, Philip Sidney e Walter Raleigh — ou seja, quase todos aqueles que, por uma razão ou outra, se acreditam serem os verdadeiros autores da obra shakespeariana.”

Nuno Costa Santos ocupou-se mais do legado do escritor, notando que “Em Shakespeare, sabemo-lo, é habitual não existir meio termo nos vastos sentimentos e acções. Há intensidade no verbo e no enredo, mesmo quando há a pulsão da dúvida, hoje diluída num dia-a-dia sem chama nem tragédia. Sem dilemas cruciais. Um tempo assim-assim.” Diria eu que não ficamos a ganhar – ou melhor, ganhamos quando preferimos a claridade da escrita shakespeariana, a claridade com que nela se retrata as glórias e as misérias da natureza humana.

O texto do Público é de Luís Miguel Queirós e aborda Cervantes e Shakespeare em conjunto: Hamlet vs Quixote. Considerando que “No quarto centenário das mortes de Shakespeare e Cervantes, a tentação de os comparar é irresistível”, explica porque é que “O inglês é o claro favorito a maior escritor de todos os tempos, mas D. Quixote e Sancho Pança são dos poucos rivais à altura de um Hamlet ou de um Rei Lear.” Eis uma passagem bem interessante deste texto:
Um dos primeiros a intuir que colocá-los frente a frente no ringue daria um combate memorável foi o ficcionista russo Ivan Turgenev, que em 1860 dedicou toda uma extensa conferência (traduzida para inglês e publicada na Chicago Review em 1965)  à comparação entre Hamlet e Quixote, concluindo que ambos representam expressões extremas de duas tendências humanas discordantes: o altruísmo, a fé inabalável, a capacidade de auto-sacrifício, a força de vontade, o entusiasmo, que o fidalgo da Mancha levaria aos limites da alucinação, isto é, da comédia, e o poder de análise, o escrutínio interior, o egotismo, a descrença, a incapacidade de amar, exacerbados em Hamlet ao ponto da tragédia. 

O El Pais também se deixou tentar pela vertigem da comparação e, em Miguel y William, Carlos Franz desenvolve a ideia de que “Los maestros mayores de la lengua española e inglesa tuvieron destinos dispares”. Shakespeare, por exemplo, deixou de escrever jovem e morreu rico: “William Shakespeare murió en su mansión de Stratford-upon-Avon. Esta era una gran casa de ladrillo y madera, “con diez chimeneas”. William la compró en 1592 (tenía apenas 33 años) con el dinero de sus primeros triunfos en el teatro londinense.” Tudo o contrário se passou com Cervantes: “Después de los 50 años sólo contaba con lo que pudiera ganar escribiendo. Poca cosa: pese a la popularidad del primer Quijote, los derechos de autor que recibió por sus obras fueron magros. En su vejez, Miguel dependía de las dádivas de un conde y un arzobispo a los que debía adular.”

Um outro texto do mesmo El Pais, El nexo entre Cervantes y Shakespeare, defende que “Los dos grandes genios de la literatura occidental están unidos por la historia de Cardenio”.Cardenio é um personagem de uma das obras menores de Carvantes, que o autor inglês recuperou numa sua criação, mas sem a mesma graça, pelo menos de acordo com a avaliação do jornal madrileno: “Resulta tentador establecer una comparación entre la historia cervantina y la recreación de Shakespeare, no ya en la fidelidad al modelo sino en la mirada sobre los personajes. Y esa comparación, sin que debamos sacar más consecuencias, resulta a todas luces ventajosa para el escritor español. “

Ainda na imprensa espanhola, mas duas referências, agora do ABC e centradas em Cervantes: Viaje al corazón del mito é uma apresentação das forma como o escritor foi sendo retratado ao longo dos séculos, sendo que “Las biografías de Cervantes trazan un recorrido apasionante de casi tres siglos que han ido dando forma al mito. Un personaje tan real como imaginario”; e ¿Qué es lo que hace tan especial a Cervantes?, um pequeno vídeo que pode funcionar como uma boa introdução ao criador de D. Quixote.



Saltando para imprensa anglo-saxónica – onde a variedade é imensa – começo por uma quase brincadeira: um quiz do The Guardian, William Shakespeare or Miguel de Cervantes: who said what? Veja, por exemplo, se sabe quem disse "One man scorned and covered with scars still strove with his last ounce of courage to reach the unreachable stars; and the world will be better for this." Ou "Too much sanity may be madness and the maddest of all, to see life as it is and not as it should be."

Para não me estender muito mais, começo por um texto que é uma síntese de um imenso trabalho jornalístico: o que o New York Times fez… há 100 anos. O grande jornal de Nova Iorque foi aos arquivos e lembra a imensidão do que então escreveu. Não por acaso o texto chama-se 1916 | Eating Paper, Drinking Ink: “Few people in the English-speaking world could have been happier on April 23, 1916, than the readers of The New York Times. That was the day our 10-part William Shakespeare supplement, marking the 300th anniversary of his death, finally came to an end. It had begun in February and taken up 43 large pages of the Sunday paper with 75,000 words (give or take a few thousand) and nearly 200 illustrations.” Eis alguns dos títulos de então: Shakespeare the Great Creator of Tragedy;Shakespeare’s Heroines as Human BeingsHe Divined Life, He Did Not Merely Copy It; ou How Each Age Finds New Flaws in Shakespeare.

A fechar, como seria quase inevitável, recorro à New York Review of Books, onde Stephen Greenblatt escreveu sobre How Shakespeare Lives Now. E que talvez se possa sintetizar assim: “We speak of Shakespeare’s works as if they were stable reflections of his original intentions, but they continue to circulate precisely because they are so amenable to metamorphosis. They have left his world, passed into ours, and become part of us. And when we in turn have vanished, they will continue to exist, tinged perhaps in small ways by our own lives and fates, and will become part of others whom he could not have foreseen and whom we can barely imagine.”

A peça "A Tempestade", a tal de que o meu companheiro de viagem se lembrou naquela amena enseada turca, pouco tem a ver com o que sentíamos naquele momento de tranquilidade, mas isso não impediu que recordássemos aquela meia dúzia de versos, e revíssemos neles os momentos que vivíamos. Mais: que se possa sempre repetir "I cried to dream again".

Até amanhã, hoje com reforçados votos de grandes leituras.

 
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