EdT45 — Mário Laginha cativa imediatamente pelo sorriso e, posteriormente, por muito mais. Tudo nele parece natural, franco e amável. Da relação com o piano e com a música, à forma como prepara uma refeição, a simplicidade e generosidade dos seus gestos refletem uma personalidade inspirada que gosta de partilhar, sem medo; que é talentosa, sem sobranceria; e que é alegre, com responsabilidade.
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Entrevista publicada no número 45 da Espiral do Tempo. Mário Laginha foi fotografado em exclusivo com relógios Raymond Weil.
Se alguém gere o tempo, todos os tempos – os grandes e os pequenos –, esse alguém é aquele que toca e compõe música. Se Sintra e a sua serra inspiraram tantos artistas, e se evoca um tempo único, o lugar que o pianista e compositor escolheu para ter o seu lar é paradigmático do que aquela serra pode proporcionar. Foi lá que nos acolheu e onde percorremos uma ínfima parte dos tempos que compõem a sua vida, os tempos de um artista português que faz questão de o ser e de dizer que o é.
Foste considerado um menino-prodígio do piano mas não foste um menino-prodígio à força pois não?
Não. Bem, não nos costumamos autoclassificar dessa forma. Eu, realmente, tinha muito jeito e gostava muito de tocar piano. Acho que há mais gente do que nós imaginamos a poder ser assim considerada. O talento não é uma coisa tão rara como as pessoas pensam, mas, juntar o talento com a vontade de trabalhar esse talento, isso, sim, é uma coisa mais rara. Eu adorava tocar piano, por isso não ia estudar contrariado – aliás, a minha mãe tinha de me ir tirar do piano para ir jantar. Aos 10 anos, já tocava muito bem, porque, basicamente, tinha um prazer enorme em tocar.
E depois tiveste o grande ato de revolta da tua adolescência, que foi querer tocar guitarra e deixar o piano. Porquê? Porque era pop?
Não, porque é o instrumento por excelência da adolescência. Havia o fascínio dos grupos de rock, onde a figura do guitarrista é simbólica, e é o instrumento que se toca à volta da fogueira – embora eu, aos 11 anos, ainda não pudesse fazê-lo (risos). Não tive professor nenhum, fui um autodidata, ao contrário do que aconteceu no caso do piano.
Perdeu-se um Paco de Lucía?
(Risos) Não. Garantidamente, não, mas foi um dos meus ídolos. Ao princípio, queria tocar rock, mas depois ouvi tocar flamenco e comecei a achar que aquilo era incrível. Tentei começar a tocar, mas nem sequer foi com muita convicção. Andei para ali a tentar fazer uns trinados (risos), mas não fui longe.
Mas cultivaste o rock sinfónico. O que sentes quando ouves essas bandas hoje?
Os heróis da época da minha adolescência eram os Genesis, os Emerson, Lake & Palmer, os Gentle Giant, os Jethro Tull, os Yes, os Black Sabbath, os Deep Purple. Não os ouço por sistema, mas, quando se proporciona, tenho aquela nostalgia típica, sinto-me transportado para uma época que é sempre especial na nossa vida: a adolescência. Algumas coisas eram chatas, mas havia grandes temas, grandes músicos, e acho que foi uma época que teve a sua importância na história do rock.
Entretanto, celebras os teus 14 anos no dia 25 de abril de 1974. É uma idade interessante para se viver uma revolução.
Eu não tinha a mínima consciência politica. O meu pai era funcionário público, a minha mãe era professora de matemática e física no liceu. Eu percebi que eles tinham consciência da existência de uma ditadura, mas isso não era comentado lá em casa, eles não eram políticos. Nesse dia, percebi que havia uma revolução, que ninguém se lembrava dos meus anos (risos), que estavam todos a comemorar outra coisa qualquer. Questionavam-se «será que isto vai mudar?» Depois, tirei um curso de política acelerada e, no dia seguinte, andava a fazer o V, de vitória, sem saber bem o que se tinha passado (risos).
Uma referência da época para ti, e não só, foi o Luiz Villas-Boas e o Cascais Jazz. O que ficou desse tempo?
O Villas-Boas foi das pessoas mais importantes para que existisse jazz numa época em que havia um enorme obscurantismo cultural. O Villas-Boas transmitiu o seu amor ao jazz a uma população que não sabia nada de jazz, e fez isso contra tudo e contra todos, nadando contra uma corrente muito forte, de frente, com grande sacrifício, usando o seu dinheiro sem nenhum proveito próprio, coisa que eu acho sempre muito importante. Ele é o alicerce de uma casa que agora tem muitos quartos, tem telhado e tudo.
Como a tua casa. Olhando para ela e para a vista que ela proporciona, é fácil pensar de onde te vem a inspiração. Mas a casa só tem cinco anos. O que te tem inspirado ao longo da carreira?
De facto, os meus amigos veem cá e costumam dizer «ah, assim também eu», mas acho que a casa é que é fruto da minha inspiração, daquilo que a minha inspiração tornou possível. O que me inspira é a vida toda, não é uma vista, embora deva confessar que, quando vim para aqui, os primeiros tempos foram difíceis. A primeira vez que me sentei ao piano com esta vista em frente, que realmente é muito bonita e inspiradora, ficava tão esmagado que pensava «e agora?». Com esta vista, a minha responsabilidade tornou-se maior e isso tornou-se inibidor. Cheguei a pensar «é só isso que tens para mostrar, com uma vista destas à tua frente?» (risos) A inspiração vem da nossa imaginação e daquilo que nos toca, do que vimos ontem, anteontem, há cinco anos, as pessoas que nos tocaram, que nos emocionaram, que nos revoltaram… O que me inspira é tudo, é ter pessoas à minha volta que eu adoro, que me ajudam, filhos que eu adoro.
Fizeste muitas coisas na música. Esse percurso não foi um percurso feito, apenas, de tempo, foi um percurso feito de muitas experiências.
É engraçado que não é só na teoria da relatividade do Einstein que o tempo se expande. Ele é elástico, aquilo que fazemos com ele torna-o mais ou menos elástico. No meu caso, tenho vários amores na música e sempre me deixei sucumbir por eles, se querem que eu vá para ali eu vou, não gosto de hierarquizar a música. Há a ideia de que a música clássica, que é a mais complexa, é a melhor, e depois vem o jazz e a seguir isto e aquilo. Isso para mim não existe, e acho que o génio humano sempre se soube manifestar nas coisas simples, como nas mais complexas. Acho o Bach um génio, mas também acho o António Carlos Jobim um génio. A genialidade revela-se de muitas formas.
Além dos discos e concertos, fizeste música para teatro, para bailado, acompanhaste ao piano filmes mudos, fizeste uma banda sonora. O que te falta fazer?
A música está em constante movimento e, no fundo, faltam-me fazer os projetos que ainda não fiz. Há coisas que eu quero fazer e ainda não fiz, quero fazer um disco só com canções, uma coisa crua, sem efeitos, comigo a cantar e a tocar…
Tu a cantar? Parece que quando o Guys And Dolls foi estreado em filme a frase publicitária era «Brando sings», porque, em 1955, a imagem do Marlon Brando suporia tudo menos ele a cantar num musical ao lado de Frank Sinatra. Vamos ter um disco cuja frase publicitária será ‘Laginha sings’?
(Risos) Não me aproximo, não me aproximo. Sempre que faço um tema para alguém cantar, digo «olha, é assim», e canto como eu acho que o tema deve ser cantado. Eu não tenho vibrato, a minha voz não tem poder nenhum, mas sou afinado. Tenho de fazer canções que sirvam o meu tipo de voz, que é despojada, e acho que isso pode ter graça, para mim, pelo menos… (risos)
Esta tua postura, para um músico, envolve riscos. Se passas a vida a correr esses riscos, pergunto-te se o risco é a tua profissão.
(Risos) Por esse lado, sim. Uma das coisas que fui aprendendo com o tempo é que se nos dedicarmos muito a sério a uma coisa e se essa coisa acabar por ter uma identidade forte – é uma das coisas em que eu não sou modesto, o que eu tenho feito tem uma cara – há sempre gente que acha incrível e há sempre gente que não gosta nada. Há de haver alguém que não gosta nada daquilo que eu faço, mas acho isso natural. Se não incomodamos ninguém, então é porque não fazemos nada que tenha realmente interesse. Ainda agora fiz um projeto com guitarra portuguesa, entre o jazz e o fado – de que tem pouco, mas que é o que as pessoas esperam da guitarra portuguesa. Gostei de o fazer, mas não tenho dúvida nenhuma de que haverá gente que vai achar aquilo meio esquisito. (risos)
O que te impele para as parcerias?
A partilha, a comunhão, a amizade… Eu gosto de partilhar, porque quando se está só, apenas temos o nosso input; quando estamos acompanhados, surgem ideias que não são iguais às nossas, por muita empatia que haja entre as pessoas. Eu sempre gostei da ideia de diferença, não gosto que tudo esteja igual, acho que a diferença é uma coisa enriquecedora. É como as raças: adoro que haja muitas raças, além de achar que as misturas de raças dão pessoas lindas. A mistura, às vezes, dá coisas maravilhosas, como a partilha, quando diferentes ideias veem por uma boa causa e não em conflito. A vontade de dar é sempre o que faz o mundo avançar, em tudo.
Vi isto na Internet, mas é uma história engraçada que vem a propósito, penso. Parece que o Ornette Coleman terá um dia chegado ao pé daquela que é a tua grande referência no jazz, o Keith Jarrett, e, pela forma de ele tocar, ter-lhe-á dito «eh, pá, tu tens de ser negro», ao que o Jarrett, que é branco, terá replicado «eu sei, eu sei, estou a trabalhar nisso». Também estás a trabalhar nisso?
(Risos) Acho que o Jarrett tem os lados todos. Acho que um músico que goste de jazz e perceba a importância que alguns músicos negros tiveram no jazz percebe que a questão racial, para nós músicos, não pode existir. Mas a realidade é que nos EUA, onde havia muito racismo, o jazz acabou por ser uma voz de libertação para os negros. Há uma herança – maravilhosa – que vem dos negros, e ninguém que se dedique ao jazz pode deixar de a procurar e de a estudar. Eu também fiz isso; portanto, ainda «estou a trabalhar nisso». (risos)
Naturalmente, não gostas de compartimentos. Na música como na vida?
Sim, sim. Tenho muita pena que as pessoas se fechem em crenças e que deixem de aceitar outras pessoas. Não tenho nada contra as crenças, mas contra os fundamentalismos que fazem as guerras, entre outras coisas. Acho que, a dada altura, o mundo sonhou com a ideia de igualdade e de liberdade, e caminhava-se para isso, mas esse caminho, hoje, não está fácil de percorrer e isso é assustador. Acho que compreender a diferença é o primeiro passo para a paz.
Costuma dizer-se que o jazz é improvisação. Mas dá muito trabalho improvisar, não dá?
(Risos) Dá, dá! Eu uso uma frase feita que é a seguinte: acho que o jazz se apropriou do conceito de improviso por mérito, mas o improviso existe em muitas coisa e mesmo noutra música. Os nossos heróis, os grandes compositores da cultura ocidental, o Bach, o Hayden, o Beethoven, o Schubert, o Chopin, o Liszt, todos eles eram grandes improvisadores. Agora o jazz tornou o improviso no seu leitmotiv. Para se improvisar de uma forma rápida, a pessoa tem de trabalhar muito, tem de estudar muito a linguagem, aprender escalas, acordes, ritmos e saber que, quando aparece aquele acorde – temos de ter uma espécie de musicoteca dentro da cabeça –, ele permite fazer certos fraseados.
Tens um bom humor e uma descontração assinaláveis. Como é que se compatibiliza isso com a disciplina que o piano ou a composição exigem?
No meu caso, eu diria que são, até, necessários, porque equilibram as coisas. Precisamos de trabalhar muito, mas, depois disso, temos de encarar as coisas com alguma leveza, não devemos dramatizar as coisas, não nos devemos levar demasiado a sério.
Temos uma ideia do que pensam sobre Portugal os políticos europeus ou os mercados financeiros. O que pensam os músicos, as pessoas ligadas à cultura com quem te cruzas por esse mundo fora?
Às vezes, espantam-se e dizem-me: «não sabia que havia em Portugal um pianista como tu» ou «uma cantora como a Maria João»; «esta composição é tua? Foste tu que escreveu isto? Então és brasileiro»; «viveste fora de Portugal…»; «os teus pais são de…» Não! Tenho de afirmar que sou português, os meus pais são portugueses e toda a vida vivi em Portugal. Acho que isso é uma das pesadas heranças do tal obscurantismo cultural que atravessámos. Como a única coisa cultural que exportávamos era o fado, ainda hoje encontramos a ideia de que Portugal é fado.
Qual é a tua relação com os relógios, que normalmente não usas?
Não me dá jeito para tocar, e eu toco muitas horas por dia. Além disso, andar a pôr e a tirar um relógio torna-se pouco prático, mas acho o objeto muito bonito, enquanto peça de design. E acho ainda mais bonito por ter o papel que tem, porque um relógio fala daquilo que nos acompanha toda a vida e que é o tempo. Há uma coisa interessante, dita pelo Egberto Gismonti, a quem ouvi dizer o seguinte “a música é a única arte que só existe em função do tempo”. A música não está lá sem tempo, a obra existe em função do tempo a passar e a própria música tem tempos dentro do tempo que ocupa. O que é engraçado é que, apesar de eu não usar habitualmente relógio, perco imenso tempo a admirá-los nas lojas. Nos aeroportos quase que só vejo relógios, não sei porquê.
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