A Europa pode ter aqui uma oportunidade de ouro para renovar o seu papel como espaço de decência no mundo e dar algum sentido à sua tremelicante existência.
João Miguel Tavares
Há dias estava a ouvir a historiadora Irene Flunser Pimentel na televisão a comentar as primeiras medidas de Donald Trump, em particular a ordem executiva que proíbe a entrada nos Estados Unidos a cidadãos de sete países muçulmanos, e a conversa depressa descambou para o senhor de bigodinho ridículo que invadiu a Polónia. O método é sempre o mesmo. Primeiro admite-se que Trump não é bem, bem, Adolf Hitler, até porque ainda lhe falta exterminar seis milhões de judeus (ou chineses, vá), e depois gasta-se o resto do tempo a traçar comparações entre os Estados Unidos de 2017 e a Alemanha de 1937.
No caso em apreço, e porque Irene Flunser Pimentel editou há pouco um livro sobre um comboio com centenas de judeus que foi impedido de entrar em Portugal em 1940 e obrigado a regressar à França ocupada, o que aconteceu foi ter-se acabado a discutir paralelismos entre o comboio barrado por Salazar e as centenas de pessoas que têm sido impedidas de entrar nos Estados Unidos. Percebo que quem saiba pouco de História só se lembre de Hitler quando é preciso exemplificar a categoria “chefe de Estado odioso”. Percebo pior que uma historiadora, entre a vastíssima paleta de líderes autoritários e perigosos que já passaram pelo mundo, em vez de encontrar uma analogia pertinente contribua para alimentar o reductio ad Hitlerum.
Pergunto: será que Donald Trump não é já suficientemente mau? As suas acções não são já suficientemente bárbaras e inaceitáveis para que tenhamos ainda de nos entreter com comparações absurdas e a alimentar um discurso apocalíptico que só energiza a sua base de apoio? Não poderemos nós considerar Trump um homem muito perigoso sem que tenhamos ao mesmo tempo de o considerar nazi? Ando há semanas a lutar contra esta permanente caricaturização de Donald Trump, mas a vida não está fácil. Parece que quem recusa considerá-lo um novo Hitler é porque, lá no fundo, no fundo, gosta dele. Não, meus senhores. Eu detesto tudo em Donald Trump, dos metais dourados da Trump Tower às ordens executivas que impedem pessoas de entrar num país em função da sua nacionalidade. Acho que Trump tem de ser combatido com todas as forças e invejo a capacidade de mobilização dos liberais americanos. Mas continuar a considerar Donald Trump um boneco dos Simpsons ou a reencarnação americana do senhor Adolf não serve para nada. Nós — e quando digo “nós” refiro-me a jornalistas, analistas, colunistas, historiadores — estamos a gastar tempo de mais a caricaturá-lo e tempo de menos a compreendê-lo. A ele e à sua equipa, porque ninguém governa sozinho.
Carimbá-lo como uma simples abjecção é uma posição muito confortável, muito comodista e muito estúpida. Se alguma coisa Trump nos ensinou a todos, europeus e cidadãos informados sempre cheios de self-righteousness, é que há um novo mundo a abrir-se, profundamente reactivo à globalização, e que de alguma estranha maneira um magnata americano com um discurso primário conseguiu captar o espírito do tempo, ao ponto de conquistar a Casa Branca. As coisas abjectas que Trump está a fazer são as coisas abjectas que ele prometeu que iria fazer e pelas quais foi eleito. Claro que todos devemos resistir a elas, e a Europa pode ter uma oportunidade de ouro para renovar o seu papel como espaço de decência no mundo, e dar algum sentido à sua tremelicante existência. Mas repito: importa tanto combatê-lo como percebê-lo. Tirem-lhe lá o bigodinho, se faz favor.
Jornalista
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