quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O espectáculo Almada

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Ipsilon
 
 
  Vasco Câmara  

De onde vem este corpo? É de ontem, é de hoje?
É um (grande) escritor que se diluiu no grande artista do espectáculo total que inventou para si próprio: poeta, ficcionista, ensaísta, desenhador, muralista, ceramista, coreógrafo, performer... Almada Negreiros (1893-1970). Duas grandes galerias, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, apresentam a partir de amanhã 400 obras, muitas inéditas. Essas galerias atravessam-se, por isso, com uma sensação de familiaridade e de descoberta. Passaram 25 anos sobre a última grande exposição que lhe foi dedicada e esta retrospectiva, José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno, comissariada por Mariana Pinto dos Santos, problematiza, debate a modernidade e a modernidade em Almada, questionando ideias enraizadas (por exemplo, a do artista do regime) através daquilo que há de novo na investigação à sua volta: a sua pluralidade, as suas várias caras. Os textos de Lucinda Canelas e Luís Miguel Queirós sobre este acontecimento do início de 2017  abrem-se, com entusiasmo, ao turbilhão.
Da Gulbenkian ao D. Maria II, ainda o caos e ainda um olhar retrospectivo. "O Útero suja o palco do Teatro Nacional" é o título para a viagem que o jornalista Gonçalo Frota fez com Miguel Moreira e o "seu" grupo, uma história de vinte anos. Com o tempo o Útero foi fixando o seu teatro numa linguagem mais física, as palavras silenciaram-se, foi assumida a coreografia. O mote, para o mergulho, é O Duelo, de Bernardo Santareno. É favor olharem para as fotos: há água, há corpos, a sexualidade é exacerbada, é o Útero.
Uma pausa musical: Wolfgang Tillmans, fotógrafo (não há muito vimos uma exposição em Serralves) vai-se reinventando como músico (Vítor Belanciano escreve sobre o álbum visual da banda de Tillmans, os Fragile, That's Desire/Here We Are podem ouvir aqui); Loyle Carner - comecem a decorar o nome, aconselha Francisco Noronha - é uma revelação num território anorético, o do hip hop inglês (o texto do Francisco é uma magnífica súmula); ainda, o rock de Sleater Kinney Kleenex/LiLiPUT - dá gozo ler o activismo arqueológico de José Marmeleira, é coisa muito viva.
E agora outra pièce de resistanceDonald Trump. Como lhe resistir?
A Isabel Lucas anda pela América neste período turbulento em que a realidade adquiriu a velocidade da ficção. Será por isso que a literatura aparece como espelho onde se pode reconhecer alguma coisa, será por isso que se verificou uma corrida aos livros à procura de auxiliares explicativos de Trump. Vejam só: nos primeiros dias de uma presidência, as distopias dispararam nas tabelas de vendas norte-americanas, obras de Orwell (1984), Huxley, Sinclar Lewis, Hannah Arendt, Philip Roth... Procura-se no passado uma possibilidade de leitura do presente.
Os escritores assumem protagonismo numa oposição interna, a pergunta que os inquieta é: "o que pode um escritor?". Como respondem? A Isabel falou com seis deles, levou-os a explicitar. Estão desanimados, estão zangados: Jonathan Franzen ("Se temos algum trabalho a fazer é erguermo-nos pela liberdade de expressão"), Richard Ford ("O dilema de ter este homem horrível como presidente requer respostas extraordinárias por parte dos cidadãos"), Rachel Kushner ("Como a maior parte das pessoas sensatas, odeio Donald Trump e tenho medo do futuro, e mesmo do presente"), David Vann ("Trump foi desejado por dezenas de milhões de americanos e ele é quem eles são"), Donald Ray Pollock ("É difícil imaginá-lo quatro anos sem um impeachment, mas quem sabe?"), Richard Russo ("Como a maioria dos meus amigos escritores estou a tentar perceber tudo isto. Quais são as minhas obrigações enquanto cidadão? Como escritor? Como pai e avô?").

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