Vasco Câmara
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No final de uma conversa, em Paris, quando foi feita uma observação ao cineasta Bruno Dumont - ele estaria diferente, as respostas, aos jornalistas, chegavam agora sem a armadura de rispidez que o protegia -, ele concluiu assim: “Têm razão, fui eu que mudei. Sou capaz de mais fantasia hoje. É normal. Começamos por ser muito sérios e há mudanças na personalidade. E porque mudei, sou capaz de me aventurar por outros registos no cinema. Tenho maior ironia sobre mim próprio, sobre o meu métier, sobre os meus filmes... E sobre o lado demasiado sério das vossas questões.”
É verdade. Houve um objecto fulgurante, em 2014, chamado O Pequeno Quinquin, produzido para o Canal Arte (visto por 1,5 milhões de espectadores). Como essa série, história de miúdos e de violentos crimes, um cineasta de formação filosófica, nascido em Bailleul, Norte de França, que até aí se mostrava agreste, sisudo, esquálido, descobria-se cultor do burlesco. Falando, como antes, do irreversível encontro com o Mal, mas dessa forma renovando a sua metafísica e o seu pessimismo. Ma Loute, que estreia dia 20 nas salas portuguesas, é filho de O Pequeno Quinquin. Só o grotesco dá a totalidade da experiência humana, diz-nos Dumont. O trágico não chega. História de burgueses e proletários, de incesto e antropofagia, é uma epopeia. Eis o homem.
Para entrarmos dentro de Ma Loute... a sensação é que Bruno Dumont está sempre à espera de ver as suas estrelas, Fabrice Luchini, Juliette Binoche e Valeria Bruni-Tedeschi, cair. Deu-lhes imbecilidades várias como diálogos, lugares-comuns adornados com gestualidade de teatro de boulevard... a ver quando é que se estatelam com o exagero. Fabrice, Juliette e Valeria, actores, vedetas, espécie polida, são os Van Peteghem: família burguesa, com as suas alianças industriais, incesto e impotência.
Figuras atarantadas pelo medo, estão enfraquecidos pela endogamia — é o fim. É a classe proletária (tudo isto se passa no início do século XX) que os carrega ao colo. Conheçamos, então, os Brufort, pescadores, grupo rugoso, interpretado por não actores que têm pouco texto para os enfraquecer — mas é família também com segredos: são antropófagos. Quem come quem? Não é difícil... E agora deixem-me lembrar-vos de Cannes 1999, quando o (para muitos escandaloso) palmarés do júri presidido por David Cronenberg deu o Prémio do Júri a L'Humanité, de Dumont, que receberia ainda distinções para a interpretação masculina (Emmanuel Schotté) e feminina — atribuído a Séverine Caneele, ex aequo com Émilie Dequenne por Rosetta, dos Dardenne, que foi a Palma de Ouro. Na sala, assobios, os profissionais chocados com os prémios a não profissionais. A cerimónia ficará na lista das mais polémicas de Cannes. Ma Loute tem essa atitude bravia, não vira as costas à guerra, só ao consenso, e dispõe-se a ver o que acontece: traz para a construção do filme o que há de irreconciliável, desconforto violento mesmo, no cinema de Dumont.
Desde ontem, quinta-feira 13, abriu a temporada - novo ciclo da Leopardo Filmes - para descobrir, redescobrir, um dos mestres absolutos da 7ª arte, um cineasta humanista e profundamente sensível que soube tocar na ferida das regras rígidas da sociedade japonesa: Kenji Mizoguchi. Nove títulos para ver em Lisboa (Nimas) e Porto (Campo Alegre) – Contos da Lua Vaga (1953), A Mulher de Quem se Fala (1954) e Os Amantes Crucificados (1955) na “leva” que já arrancou; O Conto dos Crisântemos Tardios (1939), A Senhora Oyu (1951), Festa em Gion (1953), O Intendente Sansho (1954), A Imperatriz Yang Kwei Fei (1955) e Rua da Vergonha (1956) a partir de 11 de Maio. Jorge Mourinha apresenta o ciclo: vê nesses filmes uma modernidade espantosa quando justapostos ao nosso mundo contemporâneo.
Intervalo musical: oiçam o disco homónimo de Arca, o colaborador de Björk ou Kanye West que se mostra ainda mais como uma das figuras vitais da música actual. E sintam o amor imenso de um americano ao seu país — coisa muito americana esta, a de esse amor conviver com a auto-crítica impiedosa: Joey Badass, All-Amerikkkan Bada$$. (Hoje é editado o novo de Kendrick Lamar, DAMN. Falaremos dele na próxima edição).
Agora vamos ler Alucinar o Estrume, de Júlio Henriques. Tradutor, editor, agricultor, escreveu uma sátira ébria sobre a actualidade a partir do mundo rural. É também a história do seu autor, homem à margem que acha o mundo tragicamente ridículo - diz Isabel Lucas, que foi ao encontro dele.
Digo Infante e Alenxandra Lencastre estão aí, a repetir todas as noites a espiral de violência e autodestruição de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? No Teatro da Trindade, em Lisboa, são o casal do texto demolidor em que Edward Albee ataca o sonho americano. Gonçalo Frota foi vê-los.
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