segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Macroscópio – Há mais mundo para além do PSD e da Catalunha

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Depois de uma semana muito marcada – inevitavelmente marcada – pela ressaca das eleições autárquicas e do “referendo” catalão, o Macroscópio de hoje recupera outros temas e outras leituras, pois o mundo continua a rodar para além dos destinos do PSD e de uma Catalunha que, este domingo, foi palco de uma impressionante manifestação anti-independentista. Demos pois uma rápida vista de olhos por alguns textos que julgo merecerem a atenção dos leitores desta newsletter.
 
Começo por uma efeméride que passou quase despercebida: os 50 anos da morte de Che Guevara. Noutros tempos não seria assim, mas se as t-shirts com o seu rosto continuam a vender-se por todo o mundo, fora de Cuba (onde triunfou) e da Bolívia (onde morreu) poucos se lembraram de o recordar. Até ma grande imprensa. Destaque por isso para o ensaio de Rui Ramos editado no Observador, Che Guevara: o homem que desprezava a humanidade, onde se defende que o poster boy da revolução foi mais depressa uma máquina de matar do que um jovem sonhador e que a sua história foi, afinal, a história de um fracasso. Eis a sua conclusão: “Admiram-no como um sonhador temerário, quando ele disse e repetiu que o verdadeiro revolucionário é alguém que não tem “sonhos” nem esperanças, mas apenas a determinação de lutar. É costume comparar a fotografia do Guevara morto a uma representação clássica do Cristo morto. Nietzsche gostava de dizer que Cristo morrera de compaixão pelos homens. Mas este messias marxista nunca poderia ter morrido de compaixão. Se um sentimento o tivesse de matar, teria sido o desprezo – o desprezo pela humanidade. O desprezo que hoje sentiria por todos aqueles que, nos campos universitários ocidentais, não querem morrer e andam com uma t-shirt com o seu retrato.”

 
Do pouco (e muito óbvio e banal) que encontrei na imprensa apenas um trabalho me chamou realmente a atenção: a entrevista do El Pais ao agente da CIA que presenciou a execução do guerrilheiro capturado nos confins da selva boliviana, Félix Rodríguez, alguém que confessa que “Fue duro dar la orden de eliminar al Che”. Os Estados Unidos teriam preferido interrogá-lo, o governo boliviano não decidiu assim. Eis como o antigo agente secreto recorda a última conversa com Guevara:
– ¿Comunicó la orden delante de Guevara?
– No, a mí me la comunican y luego entro a la habitación, me paro delante de él y le digo: "Comandante, lo siento, es una orden superior". Y él entendió perfectamente lo que le estaba diciendo.
– ¿Qué dijo?
– "Es mejor así. Yo nunca debí haber caído preso vivo". Entonces sacó la pipa y me dijo: "Yo quiero entregarle esta pipa a un soldadito boliviano que se portó bien conmigo". Me guardé la pipa y le pregunté: "¿Quiere algo para su familia?". Y él me respondió, diría que de forma sarcástica: "Bueno, si puedes dile a Fidel que prontó verá una revolución tiunfante en América". Yo lo interpreto como si le hubiera dicho a Fidel: "Me abandonaste, pero esto va a triunfar de todas maneras".
 
Mudando radicalmente de tema, passemos do passado ao futuro e falemos de software e de inteligência artificial. Para vos sugerir uma abordagem optimista e outra sombria. A optimista saiu no Observador, onde Ana Pimentel entrevistou Pedro Domingos para contar A história do português que Bill Gates recomendou. Isto é, o investigador na universidade de Washington quee escreveu "A revolução do Algoritmo-Mestre", livro indispensável para quem quer saber mais sobre inteligência artificial. Ele defende, por exemplo, que um dia as máquinas que aprendem nos vão ajudar a curar o cancro: “Para diagnosticar doenças simples, a aprendizagem já é uma solução muito boa. O problema do cancro é que não é uma só doença: cada cancro, cada paciente tem um cancro diferente. E o mesmo cancro muda ao longo do tempo. Talvez no mesmo cancro em zonas diferentes, há mutações diferentes. É muito pouco provável que haja um só medicamento que vá curar todos os cancros. O que é preciso é haver um sistema de aprendizagem que prevê, a partir da história médica, do genoma da pessoa e das mutações do cancro, qual é o medicamento ideal para matar as células cancerígenas e não as normais. Ou uma combinação de medicamentos ou até um medicamento completamente novo, feito só de propósito para aquele cancro, que é uma das coisas para a qual se usa a aprendizagem: a criação de novos medicamentos.”
 
Na americana The Atlantic encontrei uma visão quase oposta em The Coming Software Apocalypse, onde se dá conta de um pequeno grupo de programadores quer mudar a forma como se programa antes que sejamos atingidos por uma catástrofe. Bem sei que há uma enorme diferença entre programar e desenvolver a inteligência artificial, mas algumas das histórias contadas neste artigo arrepiam. Esta, por exemplo: “Visual Studio [uma das principais ferramentas de progração da Microsoft] is one of the single largest pieces of software in the world,” he said. “It’s over 55 million lines of code. And one of the things that I found out in this study is more than 98 percent of it is completely irrelevant. All this work had been put into this thing, but it missed the fundamental problems that people faced. And the biggest one that I took away from it was that basically people are playing computer inside their head.” Programmers were like chess players trying to play with a blindfold on—so much of their mental energy is spent just trying to picture where the pieces are that there’s hardly any left over to think about the game itself.

 
Mas adiante, passando a alguns temas da actualidade que já temos tratado no Macroscópio, aqui apenas referidos por ter encontrados sobre eles textos interessantes ou tocantes:
  • Trump e a Coreia do Norte – A revista britânica Standpoint dedicou a sua edição de Outubro à tensão com o regime de Kim Jong-il, sendo que o artigo principal é uma dura crítica do discurso de Donald Trump nas Nações Unidas (o discurso do “rocket man”). Em Is Trump the man for a Korean missile crisis?, Alexander Woolfson defende que “Even if Trump does not accept the burden of leadership imposed by American primacy, there is little doubt that he is faced with an unenviable situation. America now has direct challenges to its security present on multiple fronts. Trump does not have the luxury of simply refashioning his conception of security to ignore the health of global democracy. The history of the 20th century should have taught him this. All these global crises are now so intertwined that solving any one issue will require geopolitical rather than regional solutions. Ukraine, Syria and Afghanistan are now joined by the slow collapse of the Iranian nuclear deal and the not so slowly emerging security crisis in Asia. The failures of Obama’s “Pivot to Asia” are readily apparent and the list of foreign policy challenges facing Trump is growing. In its declamatory form the Trump doctrine is a terrifying abrogation of leadership and vision. Hopefully in practice it will not reach the rhetorical threat of disengagement.”
  • Não ser independentista na Catalunha – O El Español publicou uma carta muito sentida e muito sincera de uma professora catalã, casada com um polícia, e que conta como é a vida infernal na escola onde lecciona. Excerto desta Carta de una maestra catalana marcada de por vida: “A partir de aquí la guerra en los colegios catalanes está servida. Colegios donde como siempre van niños, colegios con maestros posicionados y partidistas, colegios donde en el minuto de silencio se acusó a los policías porque 'todos los policías son muy malos', colegios donde hay hijos de Policías Nacionales, Mossos d' Esquadra y Guardias Civiles, colegios con aparente neutralidad, colegios con seres indefensos que nada entienden ni deben entender de política, colegios donde estos niños 'hijos de' están señalados y acusados...”
  • A despedida de Wolfgang Schäuble – Hoje o ministro das Finanças alemão deverá ter participado no seu último Eurogrupo, bom pretexto para uma entrevista ao Financial Times que foi amplamente citada e que pode ser lida aqui (para assinantes) Wolfgang Schäuble warns of another global financial crisis. Nela “he warned that the world was in danger of “encouraging new bubbles to form”. “Economists all over the world are concerned about the increased risks arising from the accumulation of more and more liquidity and the growth of public and private debt. I myself am concerned about this, too,” he said.” O FT recorda uma intervenção recente da presidente do FMI e os alertas do Bank for International Settlements. Mais informação em Schäuble feels vindicated by bailout reform programmes e a entrevista na íntegra em Transcript: FT interview with Wolfgang Schäuble, um texto especialmente interessante com passagens ora irónicas – “I was very pleased when it was announced that I had decided to move to another job, that this Portuguese newspaper wrote something along the lines: “Wolfgang, we forgive you, please stay.” It was rather touching.” –, ora mais filosóficas – “Karl Popper said the reason liberal systems are superior is that they learn from their mistakes, in order to correct them. And whoever thinks an idea must win through 100 per cent becomes an ideologue and will go down the path that Popper described, and others too.”
  • Fogos florestais em Outubro – Não há inquéritos terminados, não há responsáveis políticos, há demissões mas por razões laterais, uma época de grandes incêndios que começou mais cedo do que o habitual e ainda não terminou. Por isso vem bem a propósito o texto de dois especialistas, Tiago Oliveira e João Pinho que o Observador publicou este fim-de-semana – Fahrenheit 451: não é só a floresta que arde, é também o conhecimento científico. Trata-se de um ensaio onde se recordam os muitos estudos e recomendações científicas que, ao longo das últimas décadas, poder político foi ignorando. Por isso, interrogam-se os autores: “Como no filme de Truffaut (baseado no romance de Ray Bradbury), estamos alienados e ninguém se importa que o conhecimento impresso nos livros seja queimado a 451º Fahrenheit, a temperatura a que arde o papel? É esta a sociedade do conhecimento?”

 
A terminar três sugestões completamente diferentes:
  • Splendid Isolation, um longo texto do historiador Max Hastings na New York Review of Books onde nos fala de um filme – Dunkirk, de Christopher Nolan – e de um livro – Alone: Britain, Churchill, and Dunkirk: Defeat into Victory, de Michael Korda – fazendo uma reflexão interessante sobre aquela batalha e o isolamento britânico. Contudo, como sublinha, sozinho o Reino Unido não teria podido derrotar Hitler: “No man understood better than Churchill that while Britain might somehow avert defeat, without fighting alongside friends it could not conceivably aspire to victory. Only necessity and a supremely courageous willingness to defy reason, which many British politicians and generals felt unable to share, caused him in June 1940 to proclaim his country’s determination to fight to the last.
  • Filomena Mónica: "O cancro provoca muita chatice", uma muito interessante e desassombrada conversa com a historiadora na redação do Observador e que eu próprio conduzi, uma entrevista onde falou sobre a sua adolescência num "casulo social", sobre o que mudou em Portugal, sobre a sua doença e sobre o livro que está a escrever, desta vez sobre os ricos. Tudo a propósito de mais reedição da sua autobiografia e das controvérsias que ela suscitou.
  • Padre António Vieira, um "escravagista selectivo"?, de Carlos Maria Bobone, é mais um especial do Observador, desta vez a propósito de também cá ter chegado a moda de protestar contra estátuas de figuras históricas. Neste caso o alvo foi o Padre António Vieira, acusado de ser um "escravagista seletivo". Neste artigo explica-se como só pode ser um equívoco, recordando o que o padre jesuíta escreveu num português que poucos terão honrado com tanto talento. Instrutivo, pois aprendemos muito, e também revelador sobre os alvos de algumas patologias políticas contemporâneas.
 
E pronto, por hoje é tudo. Tenham bom descanso e aproveitem, se puderem, para boas e variadas leituras.

 
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