Bruno dos Reis Encenador do GrETUA |
Há talvez poucas coisas mais anacrónicas e paradoxais do que se escrever em 2017 sobre a falta de público. Mais me espanta, a mim enquanto espectador bem alapado, que seja o sermão de maior afeição aos chamados operadores culturais na região de Aveiro.
Aveiro é uma cidade com enormíssimas falhas na sua malha cultural, na qual o espectador desempenhará pela sua natureza um papel vital, sem dúvida, mas são falhas de que o próprio tem pouca, se sequer alguma, responsabilidade. O salmo bacoco de que o espectador é ignorante se não comparece, estúpido se não frequenta, néscio se não se voluntaria, soa-me já à parábola do sábio que se põe a falar com os camelos porque na cidade ninguém o entende: haverá o dia em que cuspirá como os ditos animais, e os animais ditos estarão ainda por aprender uma palavra do que diz.
Se por um lado é uma injustiça aos (mesmo que raríssimos) casos de sucesso na região, por outro é um paralogismo perigoso e contagiante que vai desresponsabilizando tanto os raros criadores como os programadores culturais. Há nisto porventura demasiadas mãos (todas bem lavadinhas, como se imagina) para que as possamos apontar criteriosamente: a falta de politização da Cultura por vários mandatos autárquicos que foram delegando as suas incumbências à fé no liberalismo acerebrado de iniciativas (inexistentes) privadas; o crescente fosso entre a cidade e as várias instituições de Cultura que foram fossilizando tanto as suas propostas como as suas estratégias de comunicação; a ausência de estruturas que conseguissem, academicamente, prover os mais jovens criadores tanto de bases sólidas como de formação adequada às carreiras a que se pretendiam lançar; e em última instância os meios de comunicação que, pelo seu formato profundamente caduco e conservador, sempre falharam em ser uma plataforma de recenseamento crítico.
Uma obra (ou um evento) que não é objecto de crítica é uma obra que não sofre o peso da responsabilidade, que não defende a sua autoridade. É fácil de perceber como se entra na "no man's land" de Morin, em que o que acontece não é inscrito, não tem peso, não tem continuidade, não estrutura, não causa, não opera. Há uma sucessão de efemeridades de objecto artístico e cultural que não chegam sequer a acontecer entre si e para si - não podendo acontecer assim para a massa pública a que são destinadas.
É, sim, verdade que Aveiro é uma cidade onde não existe uma esfera pública responsável pela Cultura contra-corrente e marginal essencial à sua dinâmica, pelo détournement do já instituído, das políticas culturais passivas e bacocas, dos meios de comunicação mais datados que trocam espaço noticioso por assinaturas anuais ou que fazem de press-releases alheios o conteúdo ad verbum do seu expediente, dos (raros) equipamentos culturais fossilizados no pós-CEE das vacas gordas, mas a culpabilidade da inexistência dessa massa crítica activa não pode pertencer ao público passivo em gestação, é um contra-senso. E apontar-lhe o dedo parece-me o mesmo que acusar os melros de não acertarem nas balas.
"O Teatro Académico não é o tio desempregado dos núcleos universitários, que vem às festas de família contar piadas e pôr nariz vermelho. (...)
O Teatro Académico é Teatro."
O Teatro Académico é Teatro."
Mais ainda se poderia escrever sobre o capital humano que os estudantes universitários trazem à cidade e que tem sido continuamente desvalorizado pela falta de estratégia cultural da dita Universidade e da falta de visão dos (alguns) já idos agentes culturais. Um futuro regional, qualquer que seja, passará sempre em primeira instância pela inclusão destes milhares de jovens nas suas dinâmicas culturais, e só depois se pode pensar no resto de uma cidade que começou por estar entre o Porto e Coimbra e hoje em dia está entre Estarreja e Ílhavo. Não se compreendem algumas vozes que acusam os estudantes, mormente os estudantes, de não quererem saber da Cultura. Ninguém quer saber da Cultura até estar envolvido nela, é quase o mesmo que o paradoxo da força e da vontade nietzscheana: o que se interessa pela Cultura é a Cultura.
Vivemos talvez uma oportunidade de excepção. Não me lembro de outro tempo onde houvesse tão fácil acesso a uma programação tão variada (pegando ainda no caso de Ílhavo aqui tão perto); temos um Teatro Municipal que parece finalmente seguir uma lógica de programação e que parece, volvidos anos, ter começado a oferecer o patamar que faltava a pretensas vozes da região; um Grupo Experimental de Teatro a rebentar pelas costuras, a oferecer formação que nunca tão pouco houve na cidade e a provar, evento após evento, que falta de público é o que não existe; atrás disto sinais de mudança naquilo que nunca se julgou de outra forma, a entidade responsável por quinze mil jovens, a AAUAv; o aparecimento de iniciativas privadas e individuais que a muito custo pessoal vão sendo um luxo, como o caso da recém-nascida VIC; por mais fátuas que algumas se adivinhem e mais ingénuas que outras ainda sejam, a recente criação de várias plataformas (digitais e em papel) que se propõem a fazer o trabalho que o jornal dito regional menos faz; e ainda o surgimento de eventos contra-corrente a quem talvez caiba o trabalho mais duro de todos, como o caso do Aveiroshima.
E se tudo isto é ainda manifestamente pouco, é porque ainda nos falta a nós, criadores e agentes culturais, fazer manifestamente muito. O público de 2017 não é o mesmo de 1990 e idos longos passos, cabe-nos a nós encontrarmos estratégias diferentes – podíamos começar pelo nosso discurso. Fica aqui a minha cuspidela.
"O Teatro Académico não é o tio desempregado dos núcleos universitários, que vem às festas de família contar piadas e pôr nariz vermelho. O Teatro Académico não é uma palhaçada. O teatro não é uma palhaçada. O Teatro Académico é Teatro. O Teatro Académico não é Teatro Amador. O Teatro Académico é Académico porque deve, antes de tudo, funcionar como uma academia, como uma escola. A definição de uma escola não está no seu recreio, está no que ensina e na qualidade com que ensina" - 1ª Edição da Revista Matriz
Fonte: Universidade
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