Atribuído ao rei Salomão, o Eclesiastes destoa dos outros livros da Bíblia. É o relato de um rei cansado, que afirma: nenhum ser humano é original, a humanidade é irrelevante e tudo o que se pode fazer na vida é procurar a própria felicidade
Não existe, na Bíblia inteira, um livro como o Eclesiastes. O tom do texto, o estilo da linguagem e, principalmente, as opiniões difundidas pelo autor, fazem pensar: afinal, por que os editores incluíram esta obra? Os intérpretes tradicionais se desdobram para encontrar uma lição de moral positiva para o livro. A verdade é que ele parece um alien. Um estranho no ninho, pessimista e rabugento.
São menos de 10 páginas em apenas 12 capítulos. Começa com “palavras do Sábio, filho de Davi, rei em Jerusalém”, o que indica que o autor seria o rei Salomão. O que se segue são reflexões sobre o sentido da vida. “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade”, o texto crava, logo no versículo 2. “Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol? Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.”
Nós nascemos, sofremos, trabalhamos, sofremos alegrias e decepções. Nada disso importa, diz o autor: vamos todos morrer. Feitos pessoais, vitórias militares, glórias, sucesso, dinheiro. Tudo é vaidade, tudo passa, vira pó. Nem mesmo a sabedoria e as conquistas de Salomão fazem o menor sentido diante da enormidade do planeta, que continua a girar do mesmo jeito que giraria se nós humanos não existíssemos. E mais: nenhum ser humano é original em nada. Tudo o que acontece, ou vai acontecer, já aconteceu antes. “O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi”.
Nem mesmo a sabedoria conquistada ao longo de uma vida importa – e isso nas palavras do rei que, segundo a tradição judaica, foi um dos homens mais sábios que já existiram. “Apliquei o meu coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras, e vim a saber que também isto era aflição de espírito. Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta a dor”.
Por que viver, então? Existe uma alternativa: buscar a própria felicidade a todo preço, aproveitar do dinheiro que vem do trabalho para comprar prazer. “Não há coisa melhor (…) do que alegrar-se e fazer bem na sua vida (…) Todo o homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho”. Até porque acumular dinheiro não leva a nada. “Doce é o sono do trabalhador, quer coma pouco quer muito; mas a fartura do rico não o deixa dormir”.
A relação do autor com Deus é turbulenta. Ele prega obediência à santidade e, é claro, às autoridades – nada mais previsível, sendo ele um rei. Finaliza o livro pedindo que as pessoas temam a Javé e obedeçam seus mandamentos. É uma conclusão conformista, que não parece escrita pelas mesmas mãos que escreveram tudo o que veio antes.
Em capítulos anteriores, existem vários trechos que questionam seriamente a justiça divina. “Tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio, ao bom e ao puro, como ao impuro; assim ao que sacrifica como ao que não sacrifica; assim ao bom como ao pecador.” O autor reclama que o criminoso comete crimes porque sabe que, se temer a Deus, tudo dará certo. E diz que já viu pessoas que fizeram muito mal em vida serem enterradas e, na volta do cemitério, as pessoas a elogiarem. “Também isso é vaidade”.
O Eclesiastes faz parte de um grupo de livros que comenta e retoma a trajetória do povo hebreu narrada desde Gênesis até Crônicas. São obras que enriquecem enormemente a Bíblia, como Jó, Salmos, Provérbios e Cântico dos Cânticos. Antecedem os livros atribuídos a profetas, desde Isaías até Malaquias. Este miolo do Antigo Testamento é poético, controverso, contraditório, rico. São os livros menos sagrados da Bíblia, por assim dizer. E por isso mesmo dão uma belíssima amostra da riqueza intelectual do povo que a escreveu.
Fonte: Ciências
e Espiritualidade
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