Que Black Mirror é uma série tão “Black Mirror” a gente já sabe. É impossível assistir os episódios da série e não ficar mobilizado por alguma questão relatada. Algumas pessoas juram que a série trata sobre a tecnologia. Eu discordo, acredito que Black Mirror se utiliza da tecnologia para “esfregar” na nossa cara questões sociais, emocionais e de relacionamento que já estamos vivendo. Mesmo não tendo acesso a toda tecnologia (ainda) apresentada no seriado.
É pensando nisso que irei falar de uma questão muito bem retratada sobre relacionamento entre pais e filhos , sobre cuidados parentais e sobre a dificuldade em deixar com que o filho passe por experiências que em um primeiro momento pode parecer algo maléfico para a formação da criança ou do adolescente.
O segundo episódio da quarta temporada dirigido por ninguém nada menos que Jodie Foster mostra a relação entre mãe e filha . A trama revela uma mãe comum, que trabalha, cuida da filha e tem um relacionamento tranquilo com o pai. A filha também: começa com ela criança e depois a típica adolescente, crescendo, fazendo o que pode para se desviar das limitações da sociedade e da própria família.
A relação parece ser plausível dentro daquilo que podemos chamar de normal. Uma mãe que não mede esforços pare proteger e cuidar da filha. Entretanto , não é bem assim que acontece. A simbiose entre mãe e filha é elevada a um novo patamar . Para pais preocupados, uma empresa oferece um sistema que é inserido no cérebro da criança. A partir dali, é possível, em um tablet, observar os sinais vitais e a localização do filho, aplicar filtros de desfoque de visão em momentos estressantes do pequeno e literalmente enxergar pelos olhos do jovem. O total controle tranquiliza inicialmente, mas, claro, aterroriza pouco tempo depois.
A distância dos momentos considerados estressantes que são bloqueados pela mãe através do filtro do dispositivo influencia no desenvolvimento da menina. Ela passa a apresentar comportamentos agressivos e de automutilação em resposta a falta de maturidade que seria adquirida pelas experiências que lhe foram privadas. A mãe então desiste do dispositivo — até Sara chegar à adolescência.
Winnicott, psicanalista inglês em sua teoria vem trazer a definição do que é a “mãe suficientemente boa”. Contrariando o próprio senso comum de que a mãe boa é aquela que ama , protege e assegura que na caminhada do seu filho ele encontrará o menor número de adversidades e frustrações possíveis, Winnicott vem trazer luz a essa definição.
Segundo o psicanalista a mãe suficientemente boa não é aquela mãe perfeita, porque essa não existe. Mas é a mãe que sabe a hora certa para favorecer a ilusão no bebê e, logo após, a desilusão.
A ilusão é criada quando a mãe se adapta às necessidades do bebê e este projeta o que ele mesmo criou daquilo de que ele necessita. Aliás, o bebê percebe a mãe dele como sendo parte sua: os dois são um só – o que dá sustento ao pensamento de dependência para com a mãe. Winnicott escreveu em O Brincar & a Realidade: “A mãe, no começo, através da adaptação quase completa, propicia ao bebê, a oportunidade para a ilusão de que o seio dela faz parte do bebê, de que está, por assim dizer, sob o controle mágico do bebê.” É este o período de dependência absoluta, que vai de 4 a 6 meses. É importante notar que o bebê não tem percepção dessa situação, mas adquire uma sensação de onipotência.
Logo após esse período, é tarefa da mãe desiludir a criança, não atendendo tudo tão prontamente. Ou seja, a mãe, progressivamente, começa a fazer com que a criança suporte algumas frustrações. De confrontos em confrontos, o desenvolvimento do ego da criança será facilitado e ela passa a esperar certas atitudes que anteriormente queria na hora.
Em outras palavras a mãe suficientemente boa é aquela mãe que ama, cuida, protege, mas frustra o filho. Ela permite que o filho saia do estado de dependência rumo à independência.
Nesse episódio vemos justamente o oposto disso. Vemos uma mãe insegura, que utiliza da tecnologia como uma desculpa para suprir seus medos de perder essa filha. Mas observe que não é uma perda real, é uma perda imaginária de uma falsa ilusão que dá a essa mãe a falsa onipotência de poder cuidar e proteger essa filha. Onipotência essa que vira onisciência e onipresença e portanto se torna sufocante, opressora.
O resultado é catastrófico: a filha não amadurece porque sua mãe está sempre “filtrando” o que ela pode ver e com isso não permite que a filha enfrente o mundo real. Com todos os seus percalços e adversidades.
Vale aqui algumas reflexões sobre como o cuidado materno e também paterno pode ser algo que prejudica. Prejudica quando não dá a liberdade para o filho escolher e errar. Não permite o filho se machucar. A aprender com a vida. Vida essa que no futuro, quando esses mesmos pais não estiverem vivos não irá protegê-lo.
O episódio nos faz refletir mostrando que não é o excesso de controle que protege. O controle deve existir desde que não invada a liberdade ( liberdade essa de acordo com a idade). O que protege a criança , como Winnicott demonstra em sua teoria é o amor, o cuidado e a disciplina ( a frustração, o não para a criança). Esses três elementos juntos faz com que o filho se sinta amado e confiante de que ele pode errar e que sempre que isso acontecer, ele terá um para seguro para voltar . Afinal, ninguém é totalmente independente. Vez ou outra precisaremos de um colo de mãe.
Debora Oliveira
Psicóloga Clínica
CRP:06/123470
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