Como se previa, e como fomos contando no Observador ao longo do dia, Mariano Rajoy perdeu a moção de censura, Pedro Sánchez é o novo Presidente do governo de Madrid. Tratou-se de um desenvolvimento surpreendente que poucos julgariam possível ainda há uns dias. Mas como se não bastasse a incerteza italiana (que dediquei o Macroscópio de ontem, A Europa começou em Itália. Estará a acabar em Itália?), Espanha passou a partir de hoje a contar com um governo que só tem o apoio de 85 dos 350 deputados do Congresso, dependendo para se manter do apoio dos votos de grupos políticos com agendas contraditórias e que vão desde os nacionalistas conservadores aos radicais de esquerda populistas.
Mas que foi que se passou para um executivo que tinha acabado de negociar e fazer aprovar um Orçamento de Estado ter caído tão estrondosamente? João de Almeida Dias procurou explicar tudo em Adiós, Rajoy. Hola, Sánchez. 8 perguntas e 8 respostas para entender o que se passou em Espanha, um especial do Observador. É uma história que começa com a sentença do caso Gürtel, um dos maiores escândalos de corrupção da democracia espanhola e que envolve o Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy e termina com a dúvida que todos os espanhóis têm: e agora quando é que vai haver eleições?
Até lá prevêem-se tempos de instabilidade e incerteza, mas antes de lá irmos comecemos por lembrar que esta crise ainda nos fica mais à porta do que a italiana, tanto mais que o nosso país tem como principal destino das suas exportações precisamente Espanha. Isso mesmo recorda Manuel Villaverde Cabral, no Observador, em É a vez da Espanha, um texto pessimista: “Não se sabe por quanto tempo, Portugal receberá da Europa meridional mais este presente envenenado que é a viragem à «esquerda» e/ou ao «populismo», do qual o «esquerdismo» de hoje mal se diferencia, na senda do proclamado «soberanismo» do «Brexit». Desde a Itália à Grécia, passando agora também pela Espanha, o conjunto da Europa do Sul, da qual a Inglaterra foi durante séculos o «patrono», entra todo ele em divergência política e, daí, financeira e económica, com a União Europeia, a qual não irá mudar de estratégia, por todas as visitas que a Chanceler Merkel nos faça.”
Ainda antes de ir a Espanha e aos editoriais inquietos, porventura até inflamados, da imprensa de Madrid, deixo-vos também a referência da análise de Jorge Almeida Fernandes, no Público, O passe mágico do PSOE onde se descreve a forma como os socialistas deram, por agora, a volta a uma situação que parecia desesperada, sendo porém certo que agora “O seu primeiro problema será “pagar a dívida” aos nacionalismos e ao Podemos”. Neste texto recorda-se porém que “Há três semanas, uma sondagem da Metroscopia colocava o PSOE em quarto lugar, atrás do Cidadãos, do PP e do Podemos. Os socialistas pareciam “fora de jogo”, enquanto o Cidadãos, de Albert Rivera, emergia como alternativa ao PP. Com uma simples jogada, Sánchez capitaliza a vaga anti-PP e afirma-se como líder da oposição. Sustém a pressão do Podemos, que continua a querer hegemonizar a esquerda, e responde à ameaça do Cidadãos, tentando apresentá-lo como derradeiro apoiante de Rajoy. O Cidadãos quer eleições o mais depressa possível, enquanto o PSOE e o PP querem atrasar o voto.” Quanto ao futuro e ao sentimento dos espanhóis escreve-se que “Uma sondagem de ontem (Yougov, para La Vanguardia) indiciava complicações. A grande maioria dos cidadãos quer o afastamento de Rajoy, mas 47% exigem eleições. Apenas 11% concordam que Sánchez governe com o programa que apresentou ontem no Parlamento.”
Mas, pelo menos para já, vai governar, pois a Constituição espanhola associa à votação de uma moção de censura a indicação de um nome para chefe do Governo, sendo que a transmissão de poder é automática e Sánchez tomará posse já amanhã de manhã. Será isso o prelúdio de uma solução governativa semelhante à portuguesa, com o socialista espanhol a inspirar-se no exemplo do seu colega português? Pedro Benevides e Rui Pedro Antunes andaram a ver, no Observador, Como Costa inspirou Sanchéz, mas chegaram à conclusão de que dificilmente virá aí uma jeringonzaà espanhola: “Desde logo porque em castelhano esta palavra nada tem a ver com o que significa em português – jeringonza significa linguagem de mau-gosto, codificada ou difícil de entender. A imprensa espanhola, que saudou friamente a vitória de Sánchez, preferiu colar-lhe outro cognome: o governo “Frankenstein”.
De facto, lendo os editoriais dos principais diários, não se encontra pinga de entusiasmo, nem sequer no El Pais, geralmente próximo dos socialistas. Numa texto bastante mais longo do que o habitual, o diário fundado por Juan Luis Cebrian considera que estamos perante Un Gobierno inviable: “Como se constató este jueves en el hemiciclo, ni el presidente del Gobierno puede continuar ni el líder de la oposición tiene la capacidad política de liderar un Ejecutivo estable y coherente. La gobernabilidad de España está a punto de pasar de las manos de un líder, Mariano Rajoy, culpable de esta crisis institucional por su incapacidad para afrontar su responsabilidad política, a otro, Pedro Sánchez, que rechaza acudir a la ciudadanía para obtener un mandato claro para seguir adelante.”
Depois de criticar duramente os dois líderes, “que se agarran desesperadamente entre sí ante el viento que los arrastra”, travando um duelo sem “la menor preocupación por los intereses ciudadanos”, este editorial prossegue defendendo que o novo governo não é sustentável: “Prueba de la artificialidad e inviabilidad del Gobierno que se propone es el programa que presentó Sánchez en el Congreso, que incluye la pretensión de gobernar con los Presupuestos Generales recién aprobados por el PP (...) y que fueron motivo de una enmienda a la totalidad de su partido por su carácter supuestamente antisocial y regressivo”. É por isso que conclui: “Desalojar a Rajoy, insistimos, es un imperativo. Intentar gobernar sin apoyos o, peor, con unos apoyos contraproducentes, una imprudencia. Tal y como hemos sostenido, en aras de evitar la inestabilidad y la deslegitimación del sistema democrático, apelamos a una pronta convocatoria a las urnas en fecha pactada por todos los grupos parlamentarios que quieran garantizar la estabilidad y la gobernabilidad y que piensen que la solución más eficaz y más democrática es dar la voz a los ciudadanos.”
No El Mundo, jornal que esteve durante muito tempo do lado de do Presidente demitido, a desilusão com a forma como este actuou leva a que, em Rajoy renuncia a evitar el desastre, se escrevam palavras muito duras: “¿Dónde queda el interés general? ¿Quién defiende hoy el bienestar de los españoles? Los cálculos partidistas se han adueñado una vez más de la acción política y la sensatez no tiene quien la defienda entre nuestra irresponsable clase dirigente. Empezando por Mariano Rajoy, cuyo empecinamiento en no dimitir nos aboca a una situación de extraordinaria inestabilidad, en un momento en el que España afronta nada menos que el golpe rupturista del independentismo catalán, que desde ayer se frota las manos sin disimulo.”
Por fim o conservador ABC dirige as suas baterias sobretudo contra o novo chefe do Governo num editorial cujo título é quase apocalíptico: El PSOE vende a España: “Con 85 de 350 diputados y tras perder dos elecciones, Sánchez entra en La Moncloa a hombros de los que apoyan el golpe en Cataluña, los proetarras, los populistas antisistémicos de Podemos y un desleal PNV, socios todos en la tarea de empeorar España.” Mais: “Los peores enemigos de España están esperanzados por lo que puedan rebañar de la debilidad de Pedro Sánchez, presidente títere de una coalición de partidos ansiosos por conseguir en La Moncloa lo que no les ha permitido el Estado de Derecho, la Constitución y la dignidad nacional.”
(Um dos colunistas de referência do ABC, Hermann Tertsch, vai talvez ainda mais longe em En el túnel, uma coluna em que também não poupa Rajoy: “Ayer se consumó lo que Jaime Mayor Oreja lleva advirtiendo desde hace tres lustros, un proyecto que comenzó con el siniestro Zapatero, el tripartito catalán y ETA, que no pudo concluir Zp por la crisis económica y que ahora lleva al poder a todos los separatistas, todos los comunistas, todos los antisistemas, encabezados por un pelele. Quieren destruir la nación. Sánchez no se lo va a impedir. Rajoy podía haberlo hecho. Primero con política. Fue incapaz. Ahora con su dimisión. Se ha negado.”)
Por fim chegamos ao El Español onde o protagonismo vai para Pedro J. Ramirez que, em dois pequenos vídeos, é especialmente acutilante. No primeiro, Rajoy-Nixon: así terminan los mentirosos, lembra como ele próprio foi vítima do líder apeado quando denunciou os casos de corrupção que agora o fizeram cair, enquanto no segundo, La audacia de Sánchez y el beneficio de la duda, dá conta das suas imensas reservas sobre a sustentabilidade da nova solução governativa, insiste na necessidade de convocar eleições mas mesmo assim dá a Sánchez o benefício da dúvida que considera devido a todos os que governam com legitimidade constitucional, o que é o caso.
A situação em Espanha está naturalmente a ser acompanhada de perto pela imprensa internacional, sendo que esta converge na leitura de que foram os casos de corrupção e em especial a dura sentença judicial do caso Gürtel que precipitaram a queda do Governo, precisamente o que descreve o Guardian em The fall of Rajoy: how Gürtel affair brought down Spain's great survivor: “Far more damning was the court’s ruling that the PP had profited, albeit unknowingly, from the an illegal kickbacks-for-contracts scheme. Not only did the judges order the party to pay a €240,000 fine, they also expressed doubts over the credibility of the testimony Rajoy had given last July when he became the first serving Spanish prime minister to give evidence in a criminal trial.”
Para ter uma ideia de como a imprensa anglo-saxónica está a seguir Espanha veja-se ainda o relato do Financial Times, Pedro Sánchez grasps his moment to seize power in Spain, e a análise mais longa e detalhada do New York Times, Mariano Rajoy Ousted in Spanish No-Confidence Vote.
Quanto a uma explicação mais detalhada do que foi este caso Gürtel é possível encontrar muita informação na imprensa espanhola, mas seleccionei para esta newsletter alguns trabalhos do El Pais: Cronología: ocho años de la Gürtel; o vídeo Quién es quién en el Caso Gürtel e o trabalho multimédia Reconstrucción del ‘caso Gürtel’. Os mais interessados podem saciar nessas páginas a sua sede de informação.
Por fim apenas algumas breves referências à forma como o líder que sai e o líder que entra são retratados pela imprensa de Madrid. De novo é evidente a orientação contrastante dos diferentes diários, com o El Pais a escolher para título do seu perfil de Rajoy Mariano, el señor registrador de la política – “A ese señor de Pontevedra (...) le gusta transmitir la idea de que es una persona normal, cabal, moderada, sensata, equilibrada, con mucho sentido común y aparentemente sin grandes ambiciones (...). En la cara más oculta de Rajoy se esconde un político pragmático, sin ataduras ideológicas ni sentimentales, encantado de conocerse, que ha hecho buena profesión de su innegable sorna y sarcasmo, y al que no le gustaría nada pasar a la historia como el primer presidente del Gobierno en ejercicio que perdió una moción de censura, que tuvo que declarar como testigo en un juicio de corrupción en la Audiencia Nacional.” – e o ABC a falar-nos já com nostalgia dele em Mariano Rajoy, el ocaso del gran resistente – “Oriundo de Santiago de Compostela y pontevedrés de juventud y corazón, ha hecho de su origen gallego firma y estandarte de su forma de hacer política. Su carácter prudente y su fama de hombre tranquilo han marcado una carrera que se fraguó primero en Galicia y más tarde en la esfera nacional.” Difícil é contestar que tenha tido uma saída pouco elegante, sobretudo por ter estado ontem ausente dos debates parlamentares toda a tarde e hoje só ter chegado para fazer a sua intervenção final e votar. Por isso regresso ao El Pais e ao comentário Después de mí, el diluvio onde se nota que “Saber irse no es fácil; pero hay que tratar de dignificar el trance. “Yo voy a seguir siendo español” espetó desabridamente. Y acabar con un gag es siempre una mala idea.”
Já o novo Presidente do Governo é apresentado pelo El Mundo como un superviviente osado. Político que não teve uma carreira fácil, que teve de se levantar depois de várias derrotas e desilusões, tem surpreendido pela sua capacidade de sobrevivência, mas não pela sua coerência política. Isso mesmo se recorda neste perfil onde, depois de se recordar como conseguiu reconquistar a liderança dos socialistas, se escreve que “Aquella victoria épica estaba cimentada sobre el "no es no" a Rajoy, que ha mantenido de forma inquebrantable. En casi todo lo demás ha cambiado de opinión: defendió una reforma constitucional que ahora no concreta; prometió la derogación de leyes -como la reforma laboral o de las pensiones- que no ha citó durante la moción de censura; y abrazó la plurinacionalidad para terminar defendiendo con ahínco el 155.”
E é porventura na forma como gerir a aplicação do famoso artigo 155 da Constituição que permitiu a Madrid impedir a independência unilateral daquela região que Pedro Sánchez se definirá. E que dará ou não razão aos que viram na sua vitória de hoje, conseguida com o apoio dos independentistas, um passo que pode levar à fatal desintegração de Espanha.
Tempos complexos estes, imprevisíveis e perigosos. A Europa do Sul está afinal a dar os problemas que se esperava chegassem da Europa do Norte. Mas fiquemo-nos por esta constatação com a promessa de regressarmos para a semana. Tenham bom descanso e melhores leituras.
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