Confesso a minha crescente perplexidade: quando mais leio sobre os desenvolvimentos do Brexit mais dificuldade tenho em perceber como poderá terminar o processo. Depois do chumbo do acordo conseguido por Theresa May no Parlamento britânico, a primeira-ministra conseguiu vencer uma votação que lhe dava poderes para regressar a Bruxelas e renegociar as condições da saída do Reino Unido. Ainda os deputados de Westminster não tinham voltado a sentar-se nos seus lugares e já lhe diziam que, no que tocava à União Europeia, nem uma vírgula mudaria no que tinha sido acordado. Entretanto estamos a menos de dois meses da data de saída do Reino Unido, 29 de Março. Quem tem margem de manobra? E quem está a fazer bluff? Ou será que, como noutros momentos, todos caminham como sonâmbulos para uma saída sem acordo que todos dizem não desejar e que muitos anunciam apocalíptica?
Primeiro que tudo, o que é que se passou no Parlamento britânico? O que é que se retira de um conjunto de votações que, nalguns casos, parecem anular-se mutuamente? Cátia Bruno tentou explicar o melhor possível tudo isso no especial do Observador O Reino Unido quer negociar o Brexit outra vez. Até quando é que o relógio vai continuar a contar?, fazendo-o com a ajuda de Simon Usherwood, um professor da Universidade de Surrey que estuda o euroceticismo britânico há anos e que resumiu assim o que aconteceu nos Comuns: “As divisões no Parlamento são tantas que a prioridade agora é encontrar uma posição que consiga união em vez de ser encontrar uma posição que a UE aceite.” Acontece porém que, até ao final de Março, os britânicos têm de se decidir: “aceitarão o acordo que está em cima da mesa, preferirão antes voltar atrás e sair sem acordo ou aceitarão o adiamento do Artigo 50 que agora recusaram? “Seguindo a lógica, uma destas três coisas terá de acontecer até 29 de março”, relembra Simon Usherwood. “Cada uma delas parece improvável neste momento, mas uma delas vai ter de acontecer.” Ou, como dizia o filme, alguém tem de ceder.”
Mas quem é que vai ceder? Ontem, no londrino The Times, escrevia-se que a chanceler alemã não quer ser a primeira a dar sinais de fraqueza e que prefere mesmo ir até à beira do abismo. Em Merkel will push Britain to the brink in Brexit showdown with May escrevia-se mesmo que “Angela Merkel will “go to the edge of the precipice” with Theresa May as the European Union prepares to reject any change to the withdrawal agreement in time for a crucial vote in two weeks. Diplomatic sources said the German chancellor believed that people needed “to look into the abyss before a deal is done at five to midnight — that is how she works”. The next summit at which European leaders could agree any changes to the agreement or an extension to the negotiating period to avoid no deal is on March 21, only eight days before Britain is due to leave the EU.”
Sabemos que foi assim que Merkel fez com a Grécia, por exemplo, mas o Reino Unido não é a Grécia, e um dos temas de debate dos últimos dias nas televisões e nos jornais é até que ponto são os britânicos resilientes. O Financial Times, em Myths about resilient Brits, defendeu a ideia de que não terão assim tanta resistência a coisas tão simples como a falta de legumes frescos nas prateleiras dos supermercados, pelo menos de acordo com a experiência da polícia. Contudo esse mesmo artigo citada quem entusiasticamente sustentasse o contrário. Dois exemplos:
- On BBC Question Time from Lincoln last night, an audience member said: “In this country we are resilient, we are going to find a way around these problems, it is going to take a little bit of time, there will be some disruption, but we have got companies and corporations who have already found ways not to pay taxes in this country, are you telling me they are not going to find a way to get a few lettuce from Spain to England?” As Jack Blanchard notes in Politico Playbook, this was met with enthusiastic audience applause.
- Charles Moore, the journalist and biographer, takes a similarly optimistic view in the current Spectator about how the British would cope. He writes that in his part of the south coast “we have a centuries-old tradition of smuggling (‘brandy for the parson, baccy for the clerk’), and are ready to set out in our little ships to Dunkirk or wherever and bring back luscious black-market lettuces and French beans, oranges and lemons.”
Mas se no Reino Unido se debatem abertamente as dificuldades por que o país passará no caso de não haver acordo e a saída da UE for abrupta – o famoso “Hard Brexit” –, na maior parte dos restantes países da União não existe consciência de que podem vir aí dias difíceis. Essa é uma das razões que levam Teresa de Sousa a defender, no Público, que os parceiros europeus e a comissão têm de mudar de atitude em relação às negociações com o Reino Unido. Em Quebrar a lógica do braço-de-ferro no "Brexit"recapitula a estratégia seguida até agora para concluir que “Os 27 não querem uma saída sem acordo, porque as consequências económicas e sociais seriam muito pesadas. Mas, mais do isso, muitos governos europeus podem não ver qualquer vantagem de dar de si próprios aos eleitores uma imagem de intransigência, quando se aproximam eleições europeias em que muita coisa está em causa para o futuro da Europa, e não pelas melhores razões. Seria dar argumentos aos movimentos nacionalistas antieuropeus que gostariam de fazer do “Brexit” um exemplo para mostrar até que ponto existe uma “ditadura” de Bruxelas que não admite aos seus povos o direito de escolher onde querem ou não querem estar.”
Mas parece que na Alemanha também há quem defenda ideias semelhantes, como nos relatava ontem no Telegraph Ambrose Evans-Pritchard em German anger builds over dangerous handling of Brexit by EU ideologues: “A group of top German economists has told the EU to tear up the Irish backstop and ditch its ideological demands in Brexit talks, calling instead for a flexible Europe of concentric circles that preserves friendly ties with the UK. Brussels must “abandon its indivisibility dogma” on the EU’s four freedoms and come up with a creative formula or risk a disastrous showdown with London that could all too easily spin out of control.” Fui até ao site do Instituto que de onde saíram essas opiniões, e apesar de não as encontrar muito desenvolvidas confirmei que Clemens Fuest, presidente do CESifo Group, considera que New Negotiations Needed to Avoid Hard Brexit. Na pequena notícia também se referia que “Ifo trade expert Gabriel Felbermayr understands the rejection of the Brexit deal by the House of Commons. "British MPs' rejection of the separation agreement is perfectly understandable because it would downgrade Britain to the status of a trade colony. It would not stand to gain trade autonomy and its territorial integrity would be called into question," notes Felbermayr.”
Não se esperaria de um alemão a avaliação de as imposições europeias correspondem a uma humilhação para o Reino Unido, mas trata-se de uma linha de argumentação que vem ao encontro daquela que Daniel Hannan, um defensor do Brexit de longa data, sustenta num artigo publicado no site Conservative House, What is driving this chaos? I’ll tell you. The EU is determined to punish us. O texto dá vários exemplos de como as negociações podiam ter corrido de outra forma, para concluir: “Sadly, our negotiators never faced up to the fact that Brussels did not want a mutually beneficial deal. Eurocrats could hardly have been clearer. Theresa May kept saying she wanted the EU to succeed; her EU counterparts kept responding that they wanted Brexit to fail. And yet, absurdly, we pursued a strategy of being nice in the hope that our goodwill might be reciprocated. We agreed to the EU’s sequencing, we wrote a cheque with no trade deal in return, we accepted non-voting membership (the “implementation period”, though no one now pretends there will be anything to implement), we swallowed the backstop. In each case, the EU pocketed the concession without softening.”
Um contraponto radical a este artigo é o comentário de Philip Stephens no Financial Times, um texto onde critica a estratégia seguida desde a primeira hora por Theresa May e sustenta que esta, ao abandonar agora o acordo a que chegou com a União Europeia, deve ser por sua vez abandonado pela União Europeia. Em The EU cannot rescue Britain from Brexit chaos defende-se que “May’s government has shown it is not to be counted on any longer as a trusted partner” e que isso acontece também porque “Britain’s European partners are neither blind nor stupid. Watching the antics in the House of Commons, they know well that winning a single vote with a slender majority of 16 has not given the prime minister anything resembling a sustainable negotiating mandate. The support of the hardliners will be withdrawn as and when it suits them.”
A posição da The Economist que hoje chegou às bancas fica algures a meio caminho entre estes dois extremos, se bem que seja mais dura para com a confusão britânica do que para com a intransigência europeia. De resto, em How Brussels should respond to Britain’s confused demands, até se defendem algumas das opções do acordo chumbado em Westminster – “The backstop thus exists as a logical consequence of Britain’s own negotiating objectives, not European caprice. By definition, it expires when someone comes up with a way to carry out customs checks with no border infrastructure. Hardline Brexiteers’ calls for the backstop to be time-limited are thus not just unrealistic but nonsensical.” É neste quadro que a sugestão que segue para Bruxelas é relativamente soft: “It is possible to imagine a deal being done, but not in the two months remaining. With more time, Parliament may yet feel its way to a solution. Brexit is a British problem that only Britain can fix. But the eu can give it the time it needs—and it must.”
Entretanto o relógio continua a contar e os dias a passar, sendo que uma das coisas que, a par com a persistente desordem britânica, porventura a outra coisa que mais surpreende é a incompreensão mútua, algo que me parece resultar bem descrito no texto de um americano que vive em Paris, Christopher Caldwell, e que na Spectator escreve que Europe still thinks Britain will come out worse from Brexit, defendendo a tese que “the EU still doesn’t understand the 2016 referendum result”. É curioso o testemunho que dá sobre a forma como o debate público decorre em França, tal como é muito frontal a forma como olha para o significado do Brexit, nos antípodas da forma de pensar dominante nos corredores do poder nas capitais europeias: “What did Britons vote for in 2016? Did they vote to leave the EU? Or did they vote to ask for permission to leave the EU? Obviously the former. If you have the right to negotiate for your sovereignty, you’re sovereign. If you can’t walk away from the negotiating table, you’re not. When the two parties sat down at the table, Britain had already exited the EU. This is an appropriate place to negotiate the best relations possible with allies and partners. But at the end of the day, all sovereignty is no-deal sovereignty. Britain has it. It is now debating whether to surrender it.”
Terminada esta visita a um conjunto de textos que ajudam a pensar, dão informação mas que, julgo eu, não permitem ver como se sairá do actual caos – já que é quase cada cabeça sua sentença – queria terminar este Macroscópio com uma sugestão totalmente diferente: um vídeo do YouTube. Curtinho, mas precioso. Trata-se de What's Happening in Venezuela?: Just the Facts onde a comediante venezuelana Joanna Hausmann explica de forma cristalina (e sentida) o que se passa no seu país. Muito bom.
De resto, desejos um bom fim de semana, de preferência ao abrigo do mau tempo que por aí anda.
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