sábado, 30 de novembro de 2019

Opinião | Refeições sem convívio diante de uma tela digital voltamos à pré-história

A reunião em torno da mesa, que uniu os seres humanos, pode desaparecer
Luis Dufaur

A reunião em torno “da lareira, da panela e da mesa comum, que uniu os seres humanos durante pelo menos 150.000 anos, poderia desaparecer”, segundo o historiador inglês Felipe Fernández Armesto [foto abaixo]. 

O paradoxo é que esse retrocesso é obra da tecnologia. 

O Prof. Felipe é autor do ensaio Comida, culinária e civilização (ed. Tusquets), sobre a história da refeição, no qual demonstra que “se comermos sem contato de alma em frente das telas digitais, voltaremos três milhões de anos atrás”. 

Professor convidado de universidades e institutos de pesquisa, Fernández Armesto é autor de um grande número de obras concernentes à história com uma perspectiva sociológica e cultural. 

“Se deixarmos a mesa familiar, se comermos na frente das telas ou caminhando isolados pelas ruas, voltaremos a um estágio na história próprio dos hominídeos pré-civilização. A um sistema de vida semelhante ao de dois ou três milhões de anos atrás, dos hominídeos catadores que comiam desesperadamente, sem pensar nas possibilidades de usar a mesa para criar sociedade, promover afeto e planejar um futuro melhor”, disse, em entrevista ao jornal “La Nación” (11-10-19).

Fernández Armesto observa que “não pode haver convívio sem refeição partilhada”, da mesma maneira como é “impossível imaginar uma economia sem dinheiro” ou sem intercâmbio. 

Portanto, é “legítimo considerar a refeição como o momento mais importante do mundo: é o que mais ocupa a maioria das pessoas na maioria das vezes”, deduz ele. 

Segundo o pesquisador, as causas que contribuem para o desaparecimento gradual do hábito de se sentar juntos para comer e conviver são “mudanças sociais paradigmáticas” que causam danos que “estão ocorrendo”. 
Família “feliz” pelo contato com o smartphone, mas cessou o relacionamento de alma

Quais? — O “desligamento familiar, golpes intergeracionais, anomia, rejeição de tradição, abandono do senso de pertencer à mesma família humana, no bom sentido da palavra, a predominância de um individualismo existencialista alheio à necessidade humana de manter relações vivas com outros seres humanos de carne de osso”. 

O autor se posiciona num ponto de vista sociológico e ético. Porém, se analisarmos os ensinamentos do catolicismo, encontraremos momentos religiosos nos quais Deus escolheu refeições para marcar momentos augustos da Revelação. 
Jesus escolheu refeições para o início de sua pregação até a Ultima Ceia (Bodas de Canaã, Gérard David (1460 — 1523), Museu do Louvre.

Nosso Senhor Jesus Cristo começou sua vida pública participando de um grande banquete: o das bodas de Canaã. Ali fez seu primeiro milagre para um grande número de pessoas: transformou a água das ânforas num precioso vinho. 

Quando chegou a noite junto ao Lago de Galileia e Jesus percebeu que as multidões estavam sem comer. Ele sentiu que passavam fome como um rebanho sem pastor, multiplicou os pães e peixes e mandou os Apóstolos distribuí-los com tanta abundância que sobraram cestos repletos. 

Simbolizou que a Igreja deveria alimentar os povos com a palavra do Evangelho e que os Apóstolos voltariam com tantas conversões que encheriam cestos. 

Quando os judeus saíram da escravidão do Egito, a primeira instrução de Moisés foi que jantassem bem. É a origem da ceia pascal que repetimos até hoje no Domingo de Páscoa. 

E foi precisamente durante uma ceia pascoal que Jesus instituiu a Missa e a Eucaristia, cujos significados místicos são frequentemente associados à alimentação em torno de uma mesa, obviamente sagrada: o altar. 

Outra prefigura eucarística é o maná que alimentou os judeus no deserto. 

Após a Ressurreição, Jesus se tornou patente aos apóstolos na hora de partir o pão na mesa em Emaús. E assim poderíamos prosseguir com numerosos exemplos. 

Basta mencionar que as grandes festas litúrgicas ou religiosas são acompanhadas com nobres, mas deliciosas refeições em comum, familiares e sociais, como no Natal, na Páscoa, nas festas dos santos padroeiros etc. 

Porém, o professor que citamos observa que sob o pretexto de progresso e modernidade estamos regredindo ao primitivismo. Morre o convívio, apaga-se a religião no lar e na sociedade, se estiolam a cultura e o contato entre as almas com a morte dos almoços e jantares em que predomina o contato de alma a alma entre familiares. 

Essa decadência está sendo feita sob o pretexto, continua o ensaísta, de “mudanças tecnológicas que facilitam o abandono social: uma rede eletrônica que não aperta sua mão nem beija seu rosto; formas de entretenimento solitário, sem trocas emocionais com outras pessoas”. 

Quantas vezes num bar vemos grupos de rapazes e moças que não trocam uma palavra sequer, cada qual grudado em seu smartphone? Ou estudantes e até professores universitários que na mesa não falam nada e no máximo cada um exibe uma imagem ou uma mensagem de texto que apareceu em seu dispositivo móvel? 

No livro, o Prof. Fernández Armesto trata da história da conversa e do convívio nas refeições como assunto inseparável de outro tipo de relacionamento entre os seres humanos entre si e com a natureza: o nível da culinária que desperta a inteligência. 

Ele traça conexões em cada estágio entre a comida do passado e a maneira como é consumida hoje.

Os belos serviços e talheres desaparecem e vai ficando o sanduíche dentro de um envelope num McDonald, ou fast-food equivalente, e um copo de plástico descartável sem muita preocupação se a mesa fica suja ou não, e se o conviva sentado em frente se sentiu atendido ou interpretado. 

Por isso, o professor acha que é possível identificar na história dos povos civilizados oito revoluções na história da refeição. Essas afetaram outros aspectos da história da humanidade, tornando-a ou mais convivial e amável, ou mais insensível e brutal.

ABIM

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