terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Macroscópio – Eutanásia, morte assistida ou uma discussão que ainda agora começou

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


O tema foi lançado, ou relançado, por um manifesto, divulgado inicialmente pelo Expresso e pelo Público: Direito a morrer com dignidade. Assinado por mais de uma centena de personalidades, que cobriam um amplo leque político – João Semedo, Paula Teixeira da Cruz, Rui Rio, Alexandre Quintanilha, Sampaio da Nóvoa, Boaventura Sousa Santos, Mário Crespo, Mário Nogueira, Miguel Esteves Cardoso, Pilar del Río, Sobrinho Simões ou Mariana Mortágua – esse manifesto defendia que “O direito à vida faz parte do património ético da Humanidade e, como tal, está consagrado nas leis da República Portuguesa. O direito a morrer em paz e de acordo com os critérios de dignidade que cada um construiu ao longo da sua vida também tem de ser. É imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido, imposto em nome de convicções alheias. É urgente despenalizar e regulamentar a morte assistida.”

Nos dias seguintes os partidos da esquerda parlamentar – que dispõem de maioria para acolher esta reivindicação de uma alteração legislativa – vieram dizer que o tema, para já, não era prioritário (também aqui). O mesmo defendeu o PSD. Já Marques Mendes, no seu habitual comentário televisivo, lançou a ideia de um referendo sobre eutanásia, “à semelhança do que aconteceu com o aborto”, pois este é um tema que divide a sociedade. Por fim o Presidente eleito, Marcelo Rebelo de Sousa,indicou que iria deixar o Parlamento decidir.

Entretanto começaram a surgir tomadas de posição públicas, como a dos médicos e juristas católicos – os primeiros manifestando-se contra “tornar legal que os médicos matem, a pedido, determinados doentes”, debaixo de “uma capa de compaixão”, os segundos considerando que se trata de “um passo na progressiva eliminação dos mais fracos, dos mais doentes” – ou a da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos – que se interroga: “Saberão os profissionais de saúde o que são os cuidados paliativos? Saberão os signatários o que são? Será normal e aceitável não saberem, uns e outros? Porque não atuamos a este nível?

A propósito destas últimas dúvidas, é bom clarificar aquilo de que se fala, e para tal uma boa introdução é a que Raquel Moleiro escreveu no Expresso Diário, Afinal de que se fala quando se pede para morrer sem culpas para quem mata?(paywall). Aí se abordam os diferentes conceitos, tentando explicá-los: Morte assistida; Eutanásia passina (ou Ortotanásia); Distanásia; Testamento vital (ou manifestação antecipada de vontade); Consensimento informado; Direito de recusa de tratamento e Cuidados paliativos.

Seja lá como for, e mesmo estando, para já, adiada qualquer decisão política, o debate começou a ocupar as páginas dos jornais, e estes a realizar trabalhos sobre eutanásia e morte assistida. Desses trabalhos destaco dois:
  • Eutanásia. E quando quem quer morrer não tem os dias contados?, um especial de Tiago Palma no Observador que aborda o problema dos casos-fronteira. Isto é, do caso de pessoas que não estão em estado terminal, mas que querem ser ajudadas a morrer, por outras razões. Serão válidas essas razões? E quais os limites? Um desses casos, que foi muito discutido na altura, foi o de “Laura”: “O nome é fictício, a história real. “Laura” sofria de uma depressão profunda, confessava ter pensamentos suicidas desde a infância, tentou pôr termo à vida inúmeras vezes e, apesar de ser acompanhada por um psiquiatra desde os 21 anos, quis morrer. E os médicos que avaliaram o seu caso clínico concederam-lhe o direito à morte por eutanásia.” Um trabalho que mostra, pelo menos, que a realidade não é a preto e branco, como às vezes parece ouvindo as discussões mais acaloradas.
  • Morte assistida: o lugar do sofrimento e da dignidade em vidas prolongadas pela ciência, um trabalho de Catarina Gomes no Público que ouviu três filósofos e um especialista em bioética para tentar responder às seguintes questões: “Será preciso “descristianizar a morte” para que a eutanásia seja um dia descriminalizada? Pode o “corpo-carne” ser considerado vida? O que é o direito “à morte livre”? Pode um doente terminal ser livre na sua decisão de pôr termo à vida?”

No que respeita a textos de opinião, a publicação do manifesto suscitou sobretudo textos críticos, mas antes de irmos a eles referência para alguém que há anos vem, insistentemente, fazendo da eutanásia e da morte assistida a sua causa. Estou a falar de Laura Ferreira dos Santos, que há muito escreve no Público sobre o tema. Algumas referências: Governador da Califórnia aprova a morte assistidaMiguel Torga, o abafador e a eutanásiaTestamento vital: um modelo confuso? ouEutanásia para menores: os belgas enlouqueceram?

Passando agora a alguns dos textos que têm procurado contrariar os argumentos do manifesto:
  • Se não há nada a fazer, mata-me!, de Laurinda Alves, no Observador: “O debate sobre a eutanásia promete ser aceso, mas não pode passar ao lado de uma realidade ainda mais urgente e fracturante: se todos temos cuidados ao nascer, também temos que ter cuidados ao morrer.”
  • Dignidade em fim de vida? Sim, sem eutanásia, de Isabel Galriça Neto (médica, deputada do CDS, diretora da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz e presidente da Competência de Medicina Paliativa da Ordem dos Médicos), no Expresso: “Ao viabilizar uma lei que “garanta a opção por escolher morrer”, mais não fazemos do que, através de um outro eufemismo, pretender viabilizar o direito a que um médico acabe com a nossa vida, num acto que contraria uma ética médica milenar e que distorceria completamente a relação médico-doente.”
  • A morte não é direito, de Henrique Neto, no mesmo Expresso: “Uma coisa é a família em articulação com os médicos decidir desligar a máquina que suporta um homem inconsciente; outra coisa é uma pessoa escolher a morte no cardápio do hospital. A primeira é orgânica, indireta e nasce numa decisão colegial. A segunda é direta e parte de uma decisão desesperada que não pode ser legitimada pela lei.”
  • Eutanásia: uma compaixão falsificada, do médico Pedro Afonso, de novo no Observador: “A legalização da eutanásia conduz a um caminho perigoso, pois há quem defenda, perante os custos crescentes de saúde, que a medicina deveria suspender os tratamentos mais onerosos a alguns indivíduos (provavelmente começando-se pelos idosos, doentes incuráveis, etc.), concedendo-lhes uma morte abreviada. Por detrás desta aparente morte misericordiosa, há o risco de surgirem interesses economicistas, pois o Estado vê-se livre destes encargos de saúde.”
  • Isto não é uma guerra campal nem um jogo de computador, de Raquel Abecasis, na Rádio Renascença: “Está ainda o país abananado com estas decisões parlamentares e já outro tema quente entra na agenda. A eutanásia. Para percebermos a discussão que se avizinha basta atentar nos pressupostos dos subscritores da proposta: “Trata-se de uma questão de direitos individuais, que não deve levar em conta convicções religiosas nem ser submetida a referendo”. Ou seja: “Não estamos interessados em ouvir a opinião dos que não pensam como nós”.

Interessante também é a discussão constitucional, e mais uma vez não há unanimidade entre os constitucionalistas, como constatou o Diário de Notícias em Morte a pedido viola ou não a Constituição?. De facto, os “Constitucionalistas ouvidos pelo DN dividem-se: Costa Andrade, Isabel Moreira e Bacelar de Vasconcelos dizem que não, Paulo Otero e Jorge Miranda pensam o contrário.”



Sobre este tema fico-me por aqui. Por hoje, pois a discussão apenas se iniciou. Mas o Macroscópio não fica, pois quer deixar-vos ainda mais três sugestões de leitura muito diferentes, para acrescentar alguma variedade e maus "food for thought":
  • Putin is No Ally Against ISIS, de George Soros para o Project Syndicate, onde se defende que o líder russo é mais perigoso para a Europa do que os extremistas do Daesh: “The leaders of the United States and the European Union are making a grievous error in thinking that President Vladimir Putin’s Russia is a potential ally in the fight against the Islamic State. The evidence contradicts them. Putin’s current aim is to foster the EU’s disintegration, and the best way to do so is to flood the EU with Syrian refugees.”
  • Four signs another eurozone financial crisis is looming, de Wolfgang Münchau no Financial Times: “Version 2.0 of the eurozone crisis may look less frightening than the original in some respects but it is worse in others. The bond yields are not quite as high as they were then. The eurozone now has a rescue umbrella in place. The banks have lower levels of leverage. But the banking system has not been cleaned up, there are plenty of zombie lenders around and in contrast to 2010 we are in a deflationary environment.”
  • The Sexual Misery of the Arab World, um texto muito frontal de Kamel Daoud no New York Times: “What long seemed like the foreign spectacles of faraway places now feels like a clash of cultures playing out on the West’s very soil. Differences once defused by distance and a sense of superiority have become an imminent threat. People in the West are discovering, with anxiety and fear, that sex in the Muslim world is sick, and that the disease is spreading to their own lands.”

Suponho que esta última sugestão seja a mais controversa de todas – e já está de resto a suscitar controvérsia no mundo árabe, mas é um texto que me pareceu bastante oportuno depois de, este fim-de-semana se ter celebrado nas redes sociais o facto de, afinal, dos 58 acusados de agressões sexuais na noite de ano novo junto à estação central de Colónia, na Alemanha, só três serem refugiados. Isto quando a maioria dos restantes são magrebinos…

E por hoje é tudo. Reencontramo-nos amanhã. Tenham bom descanso.

 
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