Hoje fomos surpreendidos pela morte de Nicolau Breyner. Deixou-nos sem aviso prévio e de imediato começou a receber as homenagens que merecia. Sexta-feira deixara-nos Maria de Fátima Patriarca, uma historiadora notável que nunca conheceu a fama mas que, como escreveu uma outra historiadora, Fátima Bonifácio, “Muita gente tem dificuldade em convencer os outros; a maior dificuldade da Fátima Patriarca era convencer-se a si mesma. O que é ilustração prática da ética do cientista, que ela cultivou sem falhas.”
Não vou falar-vos da morte de Nicolau, pois disso se ocupou longamente o Observador – e entretanto terão até recebido uma newsletter especial a dar conta dos principais trabalhos que elaborámos –, mas recordo-o nesta abertura, tal como recordo Fátima Patriarca, porque ambos sempre deram sinais de se preocupar com o nosso destino colectivo. Nicolau chegou a ser candidato autárquico, Fátima esteve empenhada noutras causas, mas não me enganarei se vos disser que seguiam sofregamente a actualidade, uma actualidade que na Europa destes dias não pode deixar de nos causar preocupações.
Hoje, na nossa paróquia, a manhã foi ocupada com jogos florais em torno das normas orçamentais que permitirão a Portugal cumprir as suas obrigações de solidariedade com a Grécia e com a Turquia, até que lá se encontrou uma solução engenhosa para o problema sem necessitar dos votos do PCP e do Bloco. O que se passou levou contudo Paulo Trigo Pereira, deputado independente pelo PS, a notar no Observador, em(Sur)Realpolitik: Grécia e Turquia, que “Aquilo que não me parece apropriado doravante é que se usem os assuntos europeus para quebrar um largo consenso nacional sobre a integração europeia. Seria um erro estratégico grave. Porque ninguém se iluda: Portugal ainda vai precisar de solidariedade europeia.”
Um outro colunista do Observador, João Carlos Espada, ia porventura ainda mais longe ao assumir logo no título do seu texto as suas Preocupações euro-atlânticas e institucionalistas. Preocupações que derivam de estarmos “a assistir paulatinamente ao crescimento eleitoral de partidos extremistas na Europa e de candidatos extremistas nos EUA e no Reino Unido”. Acrescentava a seguir ser “importante discutir os factores que poderão estar na génese deste fenómeno”, tal como “saber ouvir e decifrar a mensagem dos eleitores”, só que, “ao mesmo tempo, é preciso denunciar a mensagem política dos extremistas. Para a denunciar, é preciso resistir ao instinto tribal de cada partido central para atribuir as culpas do extremismo ao partido central do lado rival.”
Este texto ainda faz contudo referência aos resultados das eleições regionais de ontem na Alemanha, onde importa olhar para Os números da subida da extrema-direita (e não só) nas eleições regionais na Alemanha. Tudo isto tendo como pano de fundo a política de imigração da chanceler Merkel, uma política que ela já disse que não iria alterar.
A chefe do governo alemão vive contudo, no seu país e na Europa, dias especialmente difíceis, tão difíceis que a revista Der Spiegel vai ao ponto de escrever que ele está Alone in Berlin: How Merkel Has Gambled Away Her EU Power. Isto porque, “With her refugee policies, Chancellor Merkel has isolated Germany to a greater degree than any of her predecessors. The Balkan Route has been closed down against her will and many EU leaders believe her overtures to Turkey are delusional.”
A Spiegel refere-se em particular aos resultados da cimeira europeia da semana passada, uma cimeira que chegou a um pré-acordo que o eurodeputado do PS, Francisco Assis, considerou “sórdido” na sua coluna no Público, O colapso moral da Europa?Justifica assim esse seu diagnóstio: “O espectáculo de contradições, ameaças e divisões que nos foi dado observar nos últimos meses parece ter agora um epílogo sombrio. Invocando-se o propósito de desmantelar o tráfico de refugiados por via marítima, que tão catastrófico se tem revelado, opta-se pela via da devolução à Turquia de milhares de seres humanos já instalados em território europeu. O simbolismo de tal decisão assume uma dimensão trágica.”
Um outro eurodeputado, este do PSD, Carlos Coelho, também escreveu no mesmo jornal sobre o mesmo tema em Refugiados: para lá dos nossos muros! O tom do seu texto não é muito diferente, fazendo até uma comparação forte: “todos os Estados-Membros da UE ratificaram a Convenção de Genebra e os seus protocolos - os instrumentos mais importantes de direito internacional no âmbito dos refugiados. E a União Europeia tem um conjunto de regras mínimas europeias relativas ao asilo. Mas a Turquia não só não está abrangida pelo Direito Comunitário como só está obrigada a aplicar a Convenção de Genebra a refugiados... europeus. Esse é o modelo falhado de Guantánamo: enviar as pessoas para um território onde não haja os constrangimentos que existem no nosso.”
Podemos encontrar mais textos neste mesmo registo em boa parte da imprensa europeia, mas isso não impede que se mantenha a dissonância entre a opinião publicada, mesmo quando de eleitos de partidos com responsabilidades governativas, e as tensões sentidas no terreno. É mais fácil pregar a solidariedade do que praticá-la, sobretudo quando existe um evidente desconforto entre os eleitores. Mesmo assim devemos olhar com cuidado para os novos fenómenos políticos, como a AfD, Alternativa para a Alemanha, que entrou de rompante nos três parlamentos regionais que ontem tiveram eleições. Por regra classificamo-la como um partido de extrema-direita, mas as coisas podem ser um pouco mais complexas, até pela origem dessa força política. Por isso também escolhi para vos recomendar hoje uma análise do Telegraph que enfrenta o problema de frente: Is the far-Right on the rise again in Germany? A questão, como noutros países do Norte da Europa, é onde arrumar forças políticas que combinam um eurocepticismo conservador com propostas anti-imigração e um discurso por vezes islamofóbico. Algo porém é certo: o voto das classes baixas, nomeadamente um voto que antes ia para socialistas e comunistas, estará a contribuir tanto para o seu crescimento eleitoral como o voto de quem votada habitualmente na direita tradicional.
O pano de fundo de toda esta crise é, não o esqueçamos, a guerra na Síria, que amanhã entrará no seu sexto anos. Nestes primeiros cinco anos a devastação humana e cultural tem sido avassaladora, pelo que a data está a ser assinalada em boa parte da imprensa internacional com trabalhos especiais. O Guardian, por exemplo, seleccionou as suas melhores reportagens e agrupou-as numa página especial: Syria's civil war: five years of Guardian reporting. A escolha é grande, pois há textos escritos há quase cinco anos – como The first refugees, uma reportagem de 9 de Junho de 2011 – e textos escritos há apenas um mês – caso de Refugee exodus from the battle for Aleppo, de 12 de Fevereiro de 2016 –, textos curiosamente unidos pela temática dos refugiados, se bem que a maioria das reportagens nos conte histórias da guerra por dentro.
Entretanto a UNICEF publicou hoje um relatório – No Place for Children – com números impressionantes. Por exemplo: 306 mil crianças sírias já nasceram como refugiadas; só entre entre 2011 e 2013 morreram mais de 10 mil crianças e desde aí não existem registos oficiais; e metade de todos os refugiados são crianças.
Mas se o rasto de destruição é imenso, a verdade é que parece haver, como se escreve no New York Times, Signs of Hope Five Years After Start of Syria’s War. Na verdade, “The partial cease-fire in Syria has proved more effective and durable than expected, significantly reducing the violence since it began on Feb. 27.”
O maior interesse deste texto está contudo nos mapas que apresenta onde é possível ver com algum detalhe a forma como o território da Síria está hoje dividido entre as diferentes parte beligerantes: as forças fiéis ao regime, as áreas controladas pelos rebeldes, as zonas submetidas aos ISIS e os territórios controlados pelos curdos. É um puzzle complexo de que vamos continuar a ouvir falar, até porque é difícil imaginar como poderão vir a ser aplicados os acordos, sórdidos ou não, que estão a ser negociados. As massas humanas quando se põem em movimento são muito difíceis de parar, senão vejam mais este trabalho do New York Times, Europe Tries to Shut Down Routes as Migrant Flow Intensifies.
O nosso destino não nos é, como não lhes era, indiferente. Mas estes destinos também não. E não fazemos ainda a menor das ideias de como vamos encaixar uns e outros.
Despeço-me por hoje, com natural tristeza. Mas com a certeza renovada de que amanhã é outro dia, e assim o devemos encarar. Bom descanso.
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