Diante
de acontecimentos que surgem esporadicamente na imprensa, sobre filhos que
mandam matar os pais, netos que degolam avós, pais que matam filhos e toda
sorte de crimes entre parentes próximos, algumas pessoas podem estar pensando
que esse conjunto de factos e de fenómenos denuncia uma alteração cultural ou
indícios de alguma crise da própria civilização.
O
assunto é antigo, vem desde a briga entre Caim e Abel. Por isso, talvez, o
problema não deva ser exclusivamente na sociedade ou civilização. Em tese, o
enfoque deveria ser dirigido à pessoa, que junto com outras tantas acabam
compondo a sociedade, mas também não acredito que a pessoa em si, sua
constituição bio-psicológica, tenha estado diferente do que tem sido há,
digamos, uns 10 mil anos. Talvez o problema seja da imprensa e da mídia, essa
estrutura internética e cósmica que nos oferece notícias em quantidade e
velocidade inimagináveis, fazendo-nos saber desses crimes mais do que
saberíamos em outras épocas.
O
que parece estar acontecendo é que os comportamentos, as normas e o sentido
global da vida individual e comunitária, não se inspiram em padrões éticos de
valores, preferindo aluir ao sabor de critérios imediatistas, consumistas,
hedonistas e pragmáticos. Num português mais directo, preferindo-se o que se
pode ter agora, consumir vertiginosamente, o prazer sem consequências e tudo o
que for mais fácil.
Embora
não se possa ter certeza de que a maneira da sociedade se conduzir, hoje, seja
diferente do que fora em outras épocas, pelo menos uma verdade se detecta: há,
actualmente, muito maior apelo ao consumo e ao prazer do que antes. Mas o ser
humano, em si, continua sendo o mesmo, tenha tido ele que usar da clava, da
espada, da caneta, ou do satélite, seus propósitos, anseios e paixões continuam
os mesmos.
O
ser humano normal sempre foi ávido de seus direitos
e, supondo ser correcto o ditado segundo o qual “o condenado se consola na dor do semelhante”,
há uma grande tendência das pessoas que não têm as mesmas coisas e os mesmos
prazeres que outras, desejarem ardorosamente uma equiparação. Talvez, em outras
épocas, as pessoas não tivessem informação ou noção do que se pode ter na vida.
Actualmente, através da mídia, o cidadão normal vê em sua televisão, no cinema
ou nas revistas, tudo aquilo que poderia usufruir e a “vida lhe nega”.
A
pessoa normal se frustra muito mais sabendo dessas coisas do que as ignorando
e, a partir desse conhecimento, começa a querer também, começa a achar que seu
DNA não pode ser tão diferente do DNA daquele seu “semelhante” que vive
nababescamente. Se princípios éticos não forem acrescidos à formação dessas
pessoas desde o berço, os meios para conquistar a pretendida igualdade
tornam-se eminentemente pragmáticos e aéticos.
Talvez
a poção mágica que está transformando nossa sociedade seja composta de uma
perigosa combinação entre a vitrine do prazer e do consumo, oferecida pela
mídia, com o fascínio da liberdade plena, pretensamente virtuosa em sua
essência. Talvez, também, se o slogan da Revolução Francesa tivesse sido “Liberdade
responsável, Igualdade de oportunidades e Fraternidade Tolerante”,
o mundo ocidental seria diferente.
Inculca-se
na pessoa desde criança, atendendo a uma leitura deficiente e incompleta de
algumas correntes psicologistas, um exercício da liberdade sem limites,
deixando de lado o ensinamento de que a dignidade desta liberdade reside na
responsabilidade, pois o exercício da liberdade deve ser a expressão do
respeito de cada pessoa em relação a si mesma e em relação ao seu semelhante.
Pois bem, primeiro a mídia apetrecha a consciência humana de tudo aquilo que é
possível ter, depois, a liberdade dá rédeas soltas aos meios de tê-las. Deu no
que deu.
A
imediatização da vida (repetindo sempre, estimulada pela mídia) exige meios
mais eficientes e rápidos para a aquisição do prazer, e a liberdade, destituída
de sua contrapartida que é a responsabilidade, dá, para pessoas órfãs de
princípios éticos, o aval de se poder fazer o que quiser. Nas pessoas bem
formadas surge uma enorme frustração em ver que os outros fazem tudo aquilo que
elas não se permitem. E essas pessoas estão órfãs de ética porque? Talvez
porque interesse ao mercado de consumo que as pessoas não pensem tanto, apenas
consumam...
A
conquista dos objectivos hedonistas através da liberdade plena, a ética, amoral
e estimulada pela glorificação do sucesso, fez surgir novos poderes,
fragilizando aqueles em que, tradicionalmente, se assentava a sociedade. Com
isso surgem sintomas de falta de confiança no sistema judicial, porque o que é
legal não significa, necessariamente, moral. Esse é, aliás, um sintoma
preocupante das sociedades ocidentais, onde a ordem legal se afasta, muito
frequentemente, da ordem ética. Surgem também sintomas de falta de garantias
dos direitos e da dignidade, sintomas de falta de referenciais morais, perda de
confiança nas instituições e nos valores.
A
liberdade sexual é, hoje, um tabu onde ninguém ousa tocar, pois o policiamento
dessa liberdade é extremamente opressor. Daí decorrem as doenças sexualmente
transmissíveis, aumento de adolescentes que engravidam, aborto complicado e
letal, medo dos relacionamentos duradouros e coisificação do amor. A
instituição social gasta milhões no tratamento da AIDS, orienta e oferece
preservativos gratuitamente, mas não se vê uma palavra sobre valores e
preservação da dignidade da pessoa, muito pelo contrário. A televisão mostra
cada vez mais cenas de sexo explícito entre pessoas que mal se conhecem,
tentando convencer que o facultativo é obrigatório, como um indispensável
passaporte para a modernidade.
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