domingo, 5 de março de 2017

Brasil. O AUDITÓRIO CARTA MAIOR E O ENREDO “LULA LÁ”

Quando o espontâneo supera o organizado, coisas extraordinárias podem acontecer em uma nação. O carnaval de 2017 deveria preocupar o conservadorismo

Saul Leblon – Carta Maior

Sim, uma festa popular não tem a articulação, os objetivos, nem a organização de uma agenda política.

Não autoriza ilações descabidas.

Sendo popular, porém, e mais que nunca massiva, como revelou a impressionante explosão de blocos nas ruas de SP, arrasta graus variados de percepção da realidade omitidos pelo noticiário conservador.

E mais que isso:  a contramão da ordem por vezes revela energias subestimadas pelas próprias organizações contrárias à ordem.

O que se viu nas ruas deste carnaval é o corolário barulhento de uma rejeição silenciosa ao golpe de agosto de 2016, que raramente ocupa as manchetes dos noticiosos.
Sondagens dobram a curva de uma reprovação da ordem de 70%, mas o tratamento dispensado ao desastre-Temer é benevolente, para dizer o mínimo.

A rua fantasiada escrachou essa cumplicidade do jornalismo que pretende esconder um país inteiro dele mesmo.

O desabafo irreverente revelou a saturação com a espiral de sobressaltos, desmonte social e esmagamento nacional que há oito meses transforma o país em suco.

Com a mesma sutileza com que tratou o primeiro comício massivo de 300 mil pessoas pelas Diretas, em São Paulo, como parte das ‘comemorações pelo aniversário da cidade’, em 25 de janeiro de 1984, a mídia tentou também diluir o refrão dos blocos em 2017.

‘Festa em São Paulo’, disse o apresentador Marcos Hummel, do Jornal Nacional, em 1984... ‘Bem, vamos ficando por aqui’, repetem sem graça repórteres, em 2017, enquanto o áudio é invadido pelo ‘Fora, Temer!’ antagônico à blindagem vendida como notícia.

Fatores objetivos explicam a ‘Quaresma’ antecipada do golpe.

Um deles resume todos os demais.

O país tem hoje o maior bloco de desempregados da sua história.

Formado por 13 milhões de pessoas, o corso atinge um contingente superior a 24 milhões de brasileiros e brasileiras quando é engrossado pelo cordão dos que vivem de bico.

Agora compare.

Em 2003, quando Lula iniciou seu primeiro governo, a taxa de desemprego deixada pelo PSDB beirava os 10% da população economicamente ativa.

Em 2014, ao final do primeiro governo Dilma, havia recuado a menos da metade, 4,5%.

A partir do cerco golpista, que levou à desastrada rendição ao ‘ajuste Levy’, a maleita social retornou para chegar agora a 12,6%.

Pior.

Na faixa entre 18 a 24 anos já se transita em padrões gregos: desemprego de 25,9% no 4º trimestre de 2016, contra 19,4% em igual período de 2015.

O ciclo iniciado em 2003 criou vinte milhões de vagas com carteira assinada em todo o país.

Tirou cerca de vinte milhões de brasileiros da pobreza.

Deu mobilidade a outros trinta milhões na pirâmide de renda.

Estendeu o reajuste pleno do salário mínimo –e acima da inflação—para os 9,4 milhões de aposentados do campo.

Uma mudança social na vida de oitenta milhões de pessoas, sem considerar seus dependentes, em apenas uma década, num país de 200 milhões de habitantes.

 A inclusão foi tão expressiva, e o naufrágio atual tão abrupto, que mesmo sob o bombardeio impiedoso do monopólio midiático, Lula irrompe como o bote de salva-vidas que parte com 30% dos votos para a viagem a 2018.

A direita sabe que em se tratando de um adversário ferido, magoado e enxovalhado, sem espaço de resposta, esse pode ser apenas o chão do seu potencial.

Portanto, o tiro ao alvo na cabeça encomendada para figurar na parede dos abates ilustres, desde Getúlio, não vai cessar.

Cada vez que a rua se enche de protestos como neste carnaval, porém, os direitos políticos de Lula ganham uma sobrevida.

Assim será de agora em diante.

Dito de outro modo: a força e a blindagem dessa candidatura vai refletir a capacidade de mobilização da proposta progressista para reordenar o Brasil pisoteado pelo golpe.

Adicionar esperança ao grito espontâneo de basta ecoado da folia carnavalesca é o desafio.

Lula tem uma história de conquistas e realizações que o avalizam na memória popular como alguém capaz de conduzir melhor um país que a elite prefere destruir a compartilhar.

 'O trade-off  é mais liberalismo em troca de mais eficiência e transparência, é preciso completar as reformas', dirão em 2018 os candidatos da ‘solução espírito santo, empertigados em uma pilha de 190 cadáveres acumulados na greve da PM capixaba.

Lula poderá perguntar-lhes docemente –‘mostre-me onde isso deu certo?’

Na Espanha? Na Grécia? Em Portugal?

Nos EUA de Trump? Ou na Inglaterra, onde a gororoba aplicada desde Thatcher (Blair incluso), conduziu a um sentimento de destruição social que levou ao Brexit?

‘Menos Estado em troca de mais distribuição’?

Trinta anos que não se faz outra coisa no planeta a não ser desregular mercados urbi et orbi.

O saldo não entregou o prometido.

Faltam empregos e o esgarçamento social tornou-se agudo para ficar apenas no que acontece entre as nações ricas.

O que falta para lubrificar a engrenagem emperrada?

Ademais da regulação do sistema financeiro, falta o que o Brasil tinha, mas a boa ‘ciência econômica’ aqui -- com o incentivo do ínclito  jornalismo especializado – achou indispensável liquidar, em vez de repactuar.

Mercado de massa em expansão, horizonte firme de demanda, investimento público, distribuição de oportunidades, de bens e de infraestrutura.

 A desregulação do mercado de trabalho e a destruição do pleno emprego, ao contrário, avançam e são festejadas.

No plano mundial foram justamente elas que pendoaram as sementes dessa que  é a mais longa, frágil e incerta convalescença de todas as crises capitalistas desde 1929.
 Mas não só no mundo rico.

O massacre da desproteção ao trabalho, na fórmula consagrada de empregos desqualificados associados à desindustrialização precoce, reveste também o fracasso pedagógico de um México, por exemplo.

O bom aluno da lição de casa reformista, evocada aqui como a redenção da lavoura, mantém 46,2% de sua população vivendo na pobreza (El País).

Repita-se: 46,2%

Assim: o salário mínimo local é o mais baixo da América Latina, um dos mais baixos do Ocidente e insuficiente para alimentar uma única pessoa por 30 dias.

A perspectiva dos que desejam fugir dele é trombar com o muro que o ‘parceiro’ norte-americano pretende erguer entre os dois países.

Mais: o México enterrou sua indústria; vendeu seu petróleo in bruto; não o vinculou a um impulso industrializante associado a exigências de conteúdo nacional na cadeia da exploração.

A nação de Cárdenas e Zapata é hoje um barracão de montagem de importados, com empregos de densidade salarial equivalente a sua apropriação tecnológica.

O crédito seria o oxigênio desse capitalismo asfixiado pela própria gula.

Mas como qualquer lenitivo, ele só mascara a doença.

Crédito em volume cada vez maior a tomadores cada vez mais descapacitados para pagá-lo redundou na fagulha das sub-primes, que acendeu o pavio da explosão mundial em 2008.

Sobrou o deserto do real.

Um imenso areal de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de milhões de famílias endividadas, outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o próprio sustento...

Brexit, Trump, xenofobia, protecionismo etc  ensejam a dúvida: o que é pior, um capitalismo entregue à própria sorte, ou salvo agora pelas manifestações mórbidas de sua podridão?

Quando o carnaval de rua grita ‘Fora, Temer!’ de norte a sul do país, é disso que se está falando na intuição irreverente de seus foliões.

Como ir da troça à disposição de sustentar um outro enredo de futuro?

Erguer essa linha de passagem é o requisito para dotar os direitos políticos de Lula de uma resiliência capaz de garantir seu nome na cédula de 2018.

Tarefa difícil?

Muito.

Uma das mais difíceis de todos os carnavais.

O golpe agiu para queimar as caravelas dessa travessia.

Subtrair qualquer instancia de comando da sociedade sobre o seu destino e o destino do seu desenvolvimento é o norte de sua bússola.

A ponte para o futuro deles implica interditar qualquer projeto organizado de futuro para a nação.

O país anterior ao golpe de agosto de 2016 foi  degolado, picado e salgado.

Até então havia razoável convergência em relação aos motores do próximo período.

O salto tecnológico acoplado ao impulso industrializante do pré-sal era um deles.

Os grandes projetos de infraestrutura pesada e urbana, outro.

A transição sustentável do desenvolvimento nas frentes da energia, da agricultura, do manejo florestal pavimentaria outro estirão de longo curso.

A destruição das ferramentas que estruturavam esse espaço de consenso foi a grande contribuição de Moro, Serra, Cunha, Temer, Jucá e Cia, efusivamente aplaudidos na mídia pelo conjunto da obra.

Poupar a elite do imposto inerente a uma repactuação democrática e sustentável  do desenvolvimento estava na raiz desse mutirão.

Para entregar o serviço, a escória colocou o parlamento em assembleia permanente contra o povo.

O cerco da devastação exige desassombro para negociar o futuro com quem ainda quer conversar sobre soluções coletivas.

Quem não quer só o fará pressionado pelo bloco da rua.

O ‘consenso golpista’ vendido pelo martelete midiático não deve impressionar.

 A modelagem golpista choca um Brasil radicalmente diverso daquele que foi  reiterado pelas urnas por quatro vezes seguidas desde 2003.

Arrocho fiscal, revogação de direitos, aviltamento salarial, desemprego em massa, recuo do investimento público e entrega de patrimônio estratégico poderão redundar no enriquecimento de alguns.

Mas jamais conduzirão a uma sociedade convergente, próspera e fraterna como as urnas pediram em 2002, 2006, 2010 e 2014.

Em 2018 será preciso dizer a elas, explicitamente, que não, não será o ‘livre mercado’ do conservadorismo que produzirá aqui uma sociedade virtuosa.

Tampouco a panaceia da produtividade. Alavanca essencial do desenvolvimento, a produtividade nas fábricas nazistas era elevada, sem redundar em justiça social.

 Política é economia concentrada.

Quem produz o desenvolvimento convergente é a democracia encarnada em valores, conquistas, direitos, instituições, cultura, pluralidade midiática, consciência e organização social.

A ilusão economicista de que isso tudo poderia derivar das gôndolas para a correlação de forças foi o erro de inversão gigantesco cometido pelo ciclo progressista.

Não basta admiti-lo.

É necessário, entre outras coisas, repensar coletivamente velhos canais de participação democrática e abrir outros novos.

Carta Maior considera sua obrigação histórica contribuir para o enredo que pode colocar na rua um bloco progressista ainda mais forte em 2018

Para isso está adaptando a sua forma de atuação.

Inaugura em breve um auditório para 80 pessoas, destinado a promover debates semanais, diários –se preciso, para impulsionar a reflexão engajada que só se completa na ação.

A programação dos debates nesse novo espaço será informada em breve em nossa página.

Não será um salão de chá diletante, mas um acampamento de ideias para a ocupação da agenda política brasileira.

A decifração do passo seguinte do país não pode prescindir desses círculos de reflexão engajada e, sobretudo, de suas consequências organizativas e programáticas para 2018.

Repita-se: isso equivale hoje a semear sobre a terra arrasada.

Outros já o fizeram, no entanto, em condições tão adversas quanto, ou mais.

Roosevelt enfrentou uma encruzilhada paralisante nos EUA dos anos 30.

Parecia não sobrar um centímetro de chão firme para reerguer a nação, após o colapso de 1929.

Para arrancar a sociedade da depressão foi preciso capacita-la a se reerguer pelos próprios cabelos, como um barão de Münchhausen coletivo.

De certa forma, Roosevelt inventou um novo país para poder agir sobre os escombros do antigo, desordenado pela voragem especulativa.

O presidente que seria reeleito para mais três mandatos, disse a que veio com desassombro: alterou drasticamente o arcabouço institucional da economia, com incentivo ao consumo, disparou obras de infraestrutura e impôs corajosa regulação bancária, submetendo o capital ocioso aos desígnios da produção e do interesse coletivo.

Faria o mesmo com os pilares da democracia.

O incentivo à sindicalização em massa deu-lhe inimigos à direita, mas também um protagonista de peso como aliado. O ativismo radiofônico avant la lettre driblou o cerco da mídia para falar direto às famílias assalariadas e rurais.

Mutatis mutandis é um pouco essa a envergadura do que se exige de um projeto progressista, capaz de empolgar as ruas de 2018 e, mais ainda, mantê-las assim no day after de uma possível vitória.

Com um complicador adicional em relação aos anos 30.

Apenas religar o motor do crescimento agora já não atende mais à demanda por um ciclo sustentável de prosperidade e democracia.

A régua do debate subiu um degrau irreversível com o avanço da emergência climática.

A saturação hipercapitalista e seu vetor financeiro tornaram-se incompatíveis com a sobrevivência do desenvolvimento, da democracia e da natureza.

Repactuar o futuro de uma nação numa encruzilhada desse calibre requer a força e o consentimento de um projeto abraçado por um  imenso corso de votos e de organização popular

O Auditório Carta Maior se propõe, modestamente, a ser um dos barracões de construção dessa cenografia, capaz de levar Lula à vitória em 2018.

Créditos da foto: divulgação

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