Bernardo Pires de Lima |
Parece
que foi há uma eternidade que um filho de refugiados russos foi
eleito presidente da Áustria, ainda por cima com um percurso nos
Verdes e não num dos principais partidos. Na altura mereceu uma
atenção mediática superior à importância que o cargo encerra,
com um ângulo preferencial de análise pelo que conseguiu fazer à
extrema-direita: derrotá-la, travando a sua ascensão onde ela tenha
de acontecer. No fundo, o olhar sobre Alexander van der Bellen não
vinha do facto de ser de uma esquerda considerada meio perdida no
meio da evolução das esquerdas europeias das últimas duas, três
décadas, sobretudo entre partidos socialistas e sociais-democratas,
mas porque era o opositor do candidato nacionalista. O epílogo
provou o raciocínio: meio mundo respirou de alívio, mas perdeu
pouco tempo com o vencedor. E sobretudo com as transformações que
essa tal esquerda meio perdida das últimas décadas está a
atravessar.
O
caso dos Verdes é um dos mais interessantes e ao mesmo tempo o mais
desvalorizado. Na Alemanha, por exemplo, estiveram no governo entre
1998 e 2005, até Merkel vencer a primeira eleição. Durante esse
período tiveram pastas como os Negócios Estrangeiros, Transportes,
Agricultura, Proteção do Consumidor e Ambiente, reforçando assim
os temas mais fortes da sua agenda ao mesmo tempo que ganhavam
estatuto na dimensão externa, com particular relevância para o
federalismo europeu de Joschka Fischer e o ceticismo quanto ao
envolvimento das forças armadas alemãs no exterior durante as
guerras no Kosovo e no Afeganistão.
De
qualquer forma, mesmo não fazendo parte de nenhuma das coligações
lideradas por Angela Merkel, os Verdes estão hoje coligados em 11
dos 16 governos estaduais alemães, sendo mesmo o partido mais votado
no Baden--Wurttemberg, o terceiro mais populoso do país. É verdade
que em oito desses lander a coligação é feita à esquerda,
sobretudo com o SPD, mas há também dois casos em que a CDU é
parceira e um em que tanto a CDU como o SPD são aliados, o que
mostra algum pragmatismo em detrimento de uma excessiva cultura
ideológica sem espaço para o compromisso. As sondagens
estabilizaram os Verdes nos 7%/8%, praticamente iguais ao Die Linke e
à AfD. Bem sei que não é muito comum prepararmos cenários
políticos nesta Europa habituada a correr atrás dos factos
consumados, mas valia a pena pensar que uma vitória de Martin Schulz
pode não perpetuar a "grande coligação", mas sim
reavivar a fórmula em curso em tantos estados alemães, incluindo
até o Die Linke.
Preparar
um cenário não é o mesmo que apostar todas as fichas nesse
desfecho, significa apenas que governos, empresários, investidores e
analistas, que naturalmente colocam a Alemanha no epicentro das
políticas europeias, devem começar já a avaliar as consequências
de um executivo como aquele. Defenderá outra flexibilidade para os
devedores da zona euro? Acelerará os círculos de integração num
federalismo voluntarista e sem rede democrática que o suporte?
Quererá uma defesa europeia robusta e com capital político
reforçado, ou antes a recuperação de um modelo de segurança
normativa tão em voga na década de 1990? Confundirá a um extremo
irrecuperável a relação com Donald Trump e a relação com os EUA?
E sobre a política de asilo e imigração comuns, será uma
prioridade numa nova influência de Berlim na Europa ou foi até aqui
uma mera bandeira política de algibeira? E o mercado único
energético é uma primazia? E o que fará para que seja exequível a
curto prazo? E a defesa de um desenvolvimento urbano sustentável é
um padrão-modelo civilizacional na primeira linha das políticas
públicas europeias, ou uma mera premissa oca para contentar
eleitores descontentes com a ausência de agenda por parte de muitos
partidos sociais-democratas? O caso da influência dos Verdes na
Alemanha merecia até um acompanhamento próximo sobre o que têm
feito nos governos locais. A transposição dessa postura para uma
política de Estado e, necessariamente, europeia justifica essa
atenção. Há vida para lá do simplismo agressivo dos
nacionalistas.
É
dentro da esfera cosmopolita, enquanto contraponto a uma
internacional nacionalista, que o eleitor dos Verdes se posiciona:
preferencialmente abaixo dos 35 anos, maioritariamente feminino, com
educação superior, aberto ao mundo e aos fluxos migratórios, com
uma consciência ecológica acentuada mas não necessariamente oposta
a uma globalização mais institucionalizada, partidário de um
federalismo europeu com uma expressiva legitimidade democrática,
liberal nos costumes mas defensor de impostos altos que sustentem uma
presença forte do Estado nas várias políticas públicas. Se
persistir a erosão de alguns partidos sociais-democratas,
cristalizados por desadequação programática, enredados por
caciquismo e corrupção, quais marcas gastas da política
tradicional, então pode haver espaço para o regresso do
cosmopolitismo ecológico, chamemos-lhe assim, como lugar mais
interessante aos novos eleitores.
Não
quero com este raciocínio atribuir uma relevância absurda ao que os
Verdes têm hoje, afinal de contas estão apenas em coligações de
governo na Suécia e no Luxemburgo. O meu ponto é de acompanhamento
para não nos surpreendermos com a eleição de um presidente na
Áustria ou a chegada a um governo alemão ou holandês, cenários
que não são improváveis. A tecnologia, a bulimia energética e a
necessidade de manter as economias a carburar estão a mudar as
agendas políticas por todo o mundo, numa globalização das ideias
que vai deixar partidos para trás, outros à tona e espaço aos
demais. À esquerda e à direita há quem esteja a perceber isto e
não é necessariamente quem costuma abrir os noticiários.
Fonte: DN
05 DE MARÇO DE 201700:01
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