Só mesmo Passos se atreveria a deixar cair o GES com tamanho estrondo – e esse é bem capaz de ser o maior legado dos seus quatro anos à frente do país.
João Miguel Tavares |
Da boca de Ricardo Salgado, Pedro Passos Coelho recebeu o maior dos elogios: “Qualquer outro Governo com o mínimo de responsabilidade e sem intuitos populistas teria evitado a resolução de um banco com a dimensão do BES.” Isto disse Salgado numa entrevista ao suplemento económico Dinheiro Vivo. Esqueçam o “mínimo de responsabilidade” e os “intuitos populistas”. O que interessa é isto: “Qualquer outro Governo teria evitado a resolução de um banco com a dimensão do BES.” Como é óbvio, Salgado está cheiinho de razão. Aliás, eu próprio já o afirmei várias vezes nesta página, pelo que me resta agradecer a Ricardo Salgado a amabilidade de confirmar essa minha convicção. Seja porque Passos Coelho é teimoso, desligado do mundo, apreciador de férias em Manta Rota ou ligeiramente autista, só mesmo ele se atreveria a deixar cair o grupo Espírito Santo com tamanho estrondo – e esse é bem capaz de ser o maior legado dos seus quatro anos à frente do país.
Dizer isto não é isentar de erros Carlos Costa, Cavaco Silva, Maria Luís Albuquerque ou o próprio Passos Coelho. Uma resolução como a do BES é de tal forma complexa, e teve de ser executada com tal rapidez, que muitos erros terão sido cometidos. Além disso, não restam hoje quaisquer dúvidas de que o Banco de Portugal terá compactuado com Salgado durante demasiado tempo, apesar dos inúmeros alertas e do obsceno recebimento de “liberalidades”. Contudo, é muito fácil apontar alternativas depois dos factos consumados. Independentemente de ser possível fazer melhor, o que me interessa sublinhar aqui é esse “não” central, inédito e relevantíssimo ao Dono Disto Tudo, que conduziu à destruição, nas suas próprias palavras, “do nome Espírito Santo”, apagando “das fachadas dos prédios uma marca com mais de 140 anos”. A importância desse gesto não pode ser desvalorizada: a aparatosa queda do BES é a destruição da impunidade mais desbragada e de uma certa forma de fazer negócios, que dominou o país durante pelo menos duas décadas.
Ver agora Salgado, numa evidente estratégia de autoimbecilização, desresponsabilizar-se sem pudor e diminuir voluntariamente o estatuto que construiu para si próprio ao longo dos anos – “nunca dei qualquer instrução para manipulação de contas e desconhecia qualquer irregularidade das mesmas”, afirmou com a seriedade própria de um Richelieu da Comporta –, mostra bem a mediocridade da personagem. Mas há quatro anos ninguém se atreveria a tratá-lo com tal. Ele via, ouvia e sabia tudo. Estava em todos os negócios relevantes e transformou o BES na cantina financeira da oligarquia nacional.
Disse ainda na entrevista: “não houve até hoje na Europa nenhuma resolução de um banco que tivesse 20% de quota de mercado, que representasse 27% das operações com as PME, tinha 30% no financiamento do comércio internacional… e 2 milhões de clientes.” Aquilo que Ricardo Salgado declarou é que ele acreditava que o seu banco era too big to fail, e que na hora em que o barco se estivesse a afundar o governo acabaria por, de alguma forma, lhe dar a mão – nem que fosse só para manter o prestígio da família e o nome Espírito Santo na fachada dos edifícios. A tudo isto Passos Coelho disse “não” – um dos “não” mais limpos e decentes da democracia portuguesa. Claro que os problemas na banca persistem. Mas o nível de impunidade caiu a pique e o crédito bancário foi obrigado a assumir a seriedade que nunca teve desde 1974. Não é coisa pouca – e merece ser reconhecido por toda gente.
Fonte: Público
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