Pedro Marques Lopes |
Aqui há atrasado, um amigo jurista garantia-me que se o Ministério Público o acusasse de um crime de homicídio em Bragança, havendo cem testemunhas que garantissem que à hora do crime ele estava em Vila Real de Santo António, a primeira coisa que faria era fugir do país o mais depressa possível.
Desconto o exagero, mas que ouvimos demasiadas histórias de demasiadas arbitrariedades, de julgamentos com erros gigantescos, é inegável, como também é inegável que cada vez que temos contactos diretos ou por interpostas pessoas as experiências estão, a todos os níveis, longe de ser satisfatórias. A forma como já assumimos que os processos podem durar décadas, como lidamos naturalmente com atitudes desrespeitosas da Justiça face a direitos fundamentais, como encolhemos os ombros com as execuções, como rimos do tempo que os tribunais administrativos levam a julgar o mais simples dos casos, como aceitamos sem rebuço as mais absurdas sentenças, diz bem da forma como olhamos para a Justiça em Portugal. Admito, claro está, que nem tudo esteja mal, que os erros tenham mais impacto do que as condutas certas, mas que a perceção e, infelizmente, muita da realidade é assustadora e difícil de negar. E se dúvidas existirem, basta falar meia dúzia de minutos com gente que lida mais de perto com o sistema judicial.
De vez em quando, seja por se passarem todos os limites seja porque alguém tem mais acesso à comunicação social, temos conhecimento de uma coisa do género da dos inefáveis Neto de Moura e Maria Luísa Arantes (não sei se é mais grave uma juíza assinar de cruz um acórdão ou assinar aquele acórdão) e a compreensão deles por alguém que agride a mulher com uma moca de pregos ou do inesquecível acórdão do Supremo sobre a coutada do macho ibérico.
A gravidade dos dois acórdãos chegava para que questionassem inúmeras coisas sobre o nosso sistema de Justiça, mas, como nada se passou com o dito acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, estou seguro de que daqui a uns dias ninguém com responsabilidades mexerá uma palha e aquela coisa da Relação do Porto será esquecida. Basta observar que os abusos constantes e as discricionariedades se repetem. Dizem-se umas coisas, há um maior ou menor tumulto e tudo fica na mesma.
A reação do presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao acórdão criminoso do senhor Neto e da senhora Arantes diz muito. António Henriques Gaspar afirmou que "a violência das críticas" feitas nos últimos dias ao acórdão da Relação do Porto não é um bom serviço nem para a justiça "nem para a defesa das vítimas". Ou seja, o senhor conselheiro acha que um acórdão que considera fonte de direito a Bíblia e um código do século XIX, que não respeita a lei, que cospe na Constituição da República, não devia ter sido violentamente criticado. Que criticar um acórdão que insulta todas as mulheres, que promove um crime infame que é a maior causa de homicídios e ofensas corporais e morais a mulheres em Portugal não é um bom serviço à Justiça nem às vítimas. Pois claro, senhor presidente do Supremo, o melhor era ficarmos todos calados. Está tudo bem, não é? Nada se compara à nojice daquele acórdão, mas a reação de António Henriques Gaspar faz-lhes concorrência. A crítica mais contundente que conseguiu proferir foi aconselhar "prudência na linguagem". Nada que surpreenda. Se, há décadas, toda a gente olha para o lado enquanto a nossa Justiça se vai degradando, porque diabo o Conselheiro Gaspar faria diferente?
A própria Procuradoria-Geral da República anunciou que não ia recorrer do acórdão, nem sequer se preocupando em explicar porque não o fazia. Para quê explicar?
A lei parece ser hoje em dia um adereço que muitos juízes e procuradores utilizam ou não. Troca-se o valor da lei pelos valores, convicções ou simples opiniões dos juízes. A preocupação do cidadão não é saber se a lei está do seu lado ou não, mas quem vai ser o juiz. Como se o juiz não fosse um aplicador da lei, mas uma espécie de deus que pode decidir o nosso destino. E, claro, temos os sindicatos de juízes e de procuradores a proclamarem a superioridade moral dos seus membros, a anunciar a chegada da república dos juízes e a acusar tudo e todos das maiores vilanias. A propósito, a Associação de Juízes protestou contra o aproveitamento deste caso para descredibilizar a Justiça. Houvesse um imposto contra a falta de vergonha e esta associação pagava o défice.
A palavra-chave é confiança. A comunidade perdeu a confiança na Justiça e não há nada de mais preocupante numa democracia. O estado da Justiça é o maior problema estrutural do nosso regime. Aliás, a única instituição que regrediu em Portugal desde o 25 de Abril foi a Justiça.
Enche-se a boca com reformas estruturais disto e daquilo mas no que realmente interessa ninguém se atreve a mexer, nem sequer se chega a abordar o tema - aliás, a sensação que passa é que há medo dos operadores judiciais e não pelas razões certas. Umas proclamações anuais na abertura do ano judicial, umas afirmações tímidas de cada vez que aparecem na comunicação social barbaridades da dimensão deste acórdão, uns artigos tímidos de meia dúzia de pessoas do setor e tudo fica na mesma.
Até à próxima sentença aberrante, até ao próximo ataque a garantias, até à próxima arbitrariedade. Enquanto nada se fizer, teremos muitas mais e os culpados não serão só maus juízes, maus procuradores e o corporativismo, serão sobretudo os nossos representantes. É que convém não esquecer: não há assunto mais político do que a Justiça.
Fonte: DN
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