O ponto de partida deste Macroscópio é mais recente crónica de João Marques de Almeida no Observador. Ele, que trabalha e vive em Londres, que durante vários anos conheceu por dentro o funcionamento das instituições europeias pois foi assessor de Durão Barroso no tempo em que este presidiu à Comissão Europeia, abria logo como uma pergunta perturbante: Está a União Europeia a caminhar para o fim?
Vale a pena citar o primeiro parágrafo, que sustenta esta inquietação: “Daqui a 50 anos, os historiadores poderão olhar para a semana que passou como o obituário da União Europeia. Em França, os “coletes amarelos” acabaram com as reformas de Macron. No Reino Unido, o Parlamento não faz a mínima ideia sobre o que fazer com o Brexit. O conflito entre a Itália e a União Europeia agravou-se. Em Espanha, as eleições na Andaluzia acabaram com a excepção ibérica em relação aos partidos nacionalistas. Finalmente, na Alemanha, Merkel está cada vez mais perto do fim da sua vida política. Dos cerca de 510 milhões de habitantes da União Europeia, 320 milhões vivem nestes cinco países, mais ou menos 65%. As cinco economias valem ainda cerca de 75% do PIB da União Europeia. Se as coisas correm mal nos cinco maiores países europeus, a União Europeia enfrenta uma crise existencial. Não vale a pena ignorar a realidade.”
Passaram-se mais alguns dias. Macron ensaiou um recuo espectacular para tentar aplacar os “coletes amarelos”, não é certo que o tenha conseguido, mas entretanto abriu um buraco de mais de 10 mil milhões de euros no orçamento francês. Como se escrevia no Politico, Santa Macron blows hole in budget, e isso teve uma consequência imediata: “Europe's best friend handed Italian populists a helping hand by announcing a spending spree of his own”, como notava o mesmo site em How Macron gave Italian populists a boost.
Do outro lado do Canal da Mancha a novela do Brexit vai de drama em drama, ou de tragicomédia em tragicomédia, conforme prefiramos descrevê-la. Theresa May foi humilhada no Parlamento quando lá foi propor o adiamento da votação da proposta de acordo (que deveria ter tido lugar ontem, terça-feira, e agora terá de ser remarcada), depois ensaiou um tour pela Europa onde foi ouvindo que nada mais havia para negociar e esta quarta-feira começou com o anúncio de que enfrentará uma moção de censura na sua própria bancada, a qual será votada até ao final do dia (mas a que, pela contagem das lealdades parlamentares, sobreviverá). Isto quando no continente se começam a ouvir vozes a alertar para os riscos de um não-acordo para a economia global, e não apenas para a do Reino Unido,como se lê no Financial Times: “There is a real risk that a hard Brexit could tip the global economy into a crisis,” said Armin Laschet, prime minister of North Rhine-Westphalia, Germany’s most populous and economically powerful state. “It could be even more serious than the collapse of Lehman Brothers.”
Estamos pois perante uma realidade em movimento, com dados novos a acrescentarem-se a cada momento – uma realidade a queo ataque terrorista de Estrasburgo desta terça-feira, para mais realizado por alguém sinalizado como “muito perigoso”, só veio trazer mais tensão – optei hoje por reunir apenas textos da imprensa portuguesa onde notei, por fim, alguns sinais de alarme, vindos de todos os sectores. Eis um apanhado.
No Observador Miguel Pinheiro não gostou de ver o entusiasmo com que alguns receberam as manifestações violentas em França, algo que sublinhou de forma irónica em Os “coletes amarelos” dos outros são óptimos: “Esqueçam as poesias retóricas e as fantasias políticas: os “coletes amarelos” não são uma saudável revolta do “homem comum”. Vamos ver se nos entendemos: o “homem comum” não incendeia carros, não destrói estátuas e não bate em polícias. O “homem comum”, numa democracia liberal, argumenta, protesta e, num momento de solenidade e respeito, vota.” De resto o que se propõe dos documentos conhecidos “é um país que oscila entre o absurdo e o perigoso.”
Na verdade as soluções não são simples, sobretudo não são as propostas que passam por menos receitas fiscais e mais despesa pública. Como explica, também no Observador, André Abrantes Amaral, em A secessão das elites, em França estamos naquele ponto em que “Todos estão de acordo. O problema resume-se ao simples facto de o dinheiro não chegar. E nem acredito que haja cegueira sobre este assunto. Ele é conhecido e reconhecido por todos. Simplesmente, chegámos ao salve-se quem puder. Os ricos fogem do país e os pobres saem para a rua, mas vivem todos o mesmo problema.” É neste quadro que é necessário agir com prudência, pois há coisas a que já assistimos no passado, o que recomenda que não se repitam erros: “O certo é que vivemos tempos complexos para os quais muitos procuram soluções simples. A primeira é a divisão dos cidadãos entre bons e maus. A segunda, a deslegitimação do poder eleito. O terceiro, a imposição do caos para o estabelecimento de uma nova ordem. O procedimento não é de agora: encontra-se descrito e explicado em qualquer livro de história do século XX.”
Neste quadro há quem ache que precisamos sobretudo de mais do mesmo, cerrando fileiras. De certa forma é visão clássica do centro do poder europeu, bem expressa por Álvaro Vasconcelos num artigo no Público, Paris: A última barricada!, onde defende que a “França pode bem ser o campo de batalha onde se joga a sobrevivência da União Europeia”. Eis o que propõe para ganhar essa batalha: “Existe uma outra alternativa: perante o perigo existencial, a União Europeia deve anunciar uma reforma dos tratados que vá de encontro às exigências dos cidadãos, nomeadamente para rever os constrangimentos que coloca ao combate às desigualdades sociais, e que garanta o apoio necessário à transição ecológica sem a qual é a vida na Terra que está em risco.”
Confesso que numa altura em que na União Europeia se convencionou que não se revêem tratados para estes não terem de ser submetidos a qualquer sufrágio popular, pois há horror aos referendos, é difícil imaginar esse tipo de reforma, ou qualquer outra, sobretudo todas as que representem mais integração e “mais Europa”. Veja-se, por exemplo, o Manifesto para a democratização da Europa (aqui na tradução do Diário de Notícias), que esta semana foi divulgado e tem como primeiro subscritor o economista francês Thomas Piketty, e leia-se o que sobre ele escreveu, no Eco, Ricardo Arroja, em Salvar a Europa (do manifesto de Piketty)! Eis o seu ponto essencial: “A cooperação entre países é certamente bem-vinda e, neste aspecto, o mercado livre – e as quatro liberdades fundamentais da União Europeia (pessoas, capitais, bens e serviços) – continua a ser a maior conquista da Europa no pós-Guerra. Devemos preservá-lo e reforçá-lo nas áreas em que ele ainda está por implementar. Mas cooperação é diferente de coordenação, e é de coordenação que o manifesto trata. Excessiva coordenação traria centralização e centralização seria o oposto da descentralização que uma união de Estados soberanos, com culturas, idiomas e estágios de desenvolvimento diferentes, requer. Em suma, a proposta do manifesto, que é uma de coordenação e centralização políticas, associada infelizmente ao esbulho fiscal, é de rejeitar. O caminho é outro.”
De resto o problema da Europa é outro – é muito mais a divisão do que união, ainda menos a vontade de reforçar essa união. Dois lamentos recentes vindos de dois defensores de uma Europa mais integrada:
- Em A hora da verdade não chegou apenas para May Teresa de Sousa constata, no Público, o que se torna cada dia mais óbvio: “Como começa a ser regra, este Conselho Europeu realiza-se em condições que não eram sequer imagináveis há quinze dias. (...) O espectáculo de divisão dos países europeus sobre o Pacto Global para as Migrações (...) é mais um exemplo do profundo mal-estar que mina os fundamentos da integração. Foi a imigração que envenenou o "Brexit" desde a primeira hora, levando May a fazer da rejeição da livre circulação de pessoas o centro da negociação com Bruxelas. Os britânicos não querem imigrantes europeus? Não sabemos. O que sabemos é que ninguém está em condições de rir do vizinho do lado. O “Brexit” é apenas a manifestação mais dramática dos enormes riscos que a Europa enfrenta.”
- Em O descrédito da Europa é Francisco Seixas da Costa que comenta o fracasso da reforma do euro, malgrado todos os sorrisos de Mário Centeno: “A Europa trouxe, de facto, a paz e o desenvolvimento – desigual mas real. Mas o continente, ao autocontentar-se com o seu bem-estar, não se deu conta de que perdeu as armas competitivas para sustentá-lo no futuro. E o futuro não é dos que tiveram a memória da guerra real ou da Guerra Fria, é dos que, no dia de hoje, pretendem viver bem e dão as vantagens do passado como adquiridas. Esta Europa, pelo que veem no rosto de Centeno, não lhes traz as soluções. (Mas não se fala por aqui do Brexit, de Macron? Foi mesmo disso que falei).”
Termino com duas referências pouco frequentes nesta newsletter, mas que permitem perceber até onde vai a reflexão sobre o Brexit. Ambas são do Expresso diário de ontem:
- Brexit: excesso de calculismo é erro de cálculo, de Daniel Oliveira: “Podemos achar coisas muito diferentes sobre o futuro que as nações europeias terão nesta União Europeia. Eu acho que ela se tornou num dos mais poderosos fatores de desgaste das democracias na Europa. Podemos achar coisas muito diferentes sobre o direito de cada povo abandonar uma União de adesão voluntária. Eu acho que a maior tragédia da UE foi ter-se transformado numa inevitabilidade desagradável. A História é alérgica a inevitabilidades. Mas este processo é uma extraordinária lição política, seja qual for a nossa opinião sobre o estado atual do projeto europeu: como o excesso de calculismo pode afogar os calculistas no caos causado pelos seus próprios cálculos.”
- O perigo europeu não é Londres, de Francisco Louçã: “Uma expressão desta arrogância é a forma como os poderes europeus, ou seja Merkel e Macron, responderam ao referendo do Brexit, que aliás autorizaram e até estimularam, para depois, perante o resultado expectável, terem transformado a negociação numa demonstração de como será punido qualquer Estado que decida a saída. (...) O certo é que Paris e Berlim acharam, no vendaval do Brexit, a oportunidade de fragilizar uma grande economia concorrente e de atingir o poder político e militar que historicamente equilibrava as disputas continentais, e querem levar o ajuste de contas até ao limite.”
Sinto a fechar necessidade de regressar a João Marques de Almeida e ao texto que serviu de mote a este Macroscópio. Para vos deixar a forma como ele o rematava: “A salvação da União Europeia exige realismo político e o abandono da ideologia europeísta que impede muitas das elites políticas europeias de entenderem os desafios que enfrentam. A insistência na ideologia europeísta apenas levará à derrota, como se vê com Macron em França. O confronto entre o europeísmo e os nacionalismos terá um desfecho inevitável: o fim da União Europeia. Onde estão os líderes realistas? Só eles e elas poderão salvar a União Europeia. E a paz, a democracia, a liberdade e a prosperidade na Europa.”
Será que estamos a aprender alguma coisa? Esta semana volta a haver Conselho Europeu, veremos que sinais dele nos chegarão. Por hoje, e até lá, tenham bom descanso e boas leituras.
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