sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Macroscópio – A Venezuela devia ser uma lição

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
A tragédia venezuelana conheceu nestes últimos dias novos desenvolvimentos e nada garante que tenha um final feliz. As gigantescas manifestações a pedir a destituição de Nicolás Maduro não comoveram o líder bolivariano. As Forças Armadas mantêm-se por enquanto do seu lado. E se o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se auto-proclamou presidente interino e foi logo reconhecido pelos mais importantes vizinhos, ninguém está interessado em intervir no país. Isto mesmo e muito mais se explica no apanhado de textos que reunimos neste Macroscópio, onde também se recorda a tragédia de uma Venezuela que ha destruido la mitad de su economía en seis años, como recordava o espanhol Cinco Dias.
 
Deixem-me começar por recordar que há exactamente duas semanas já dedicara parte desta newsletter a este drama – Como se destrói um país seguido de outras histórias –, sendo que quem na altura não leu três artigos aí referidos tem neles bons pontos de partida para entender o grau de desespero que levou o povo a sair à rua e a enfrentar uma repressão que já fez 26 mortos. São eles o trabalho do  Washington Post Latin America has never seen a crisis like Venezuela before, o especial de João de Almeida Dias no Observador Venezuela até ao fundo: os números do país de Nicolás Maduro e a entrevista de Edgar Caetano, também no Observador, ao investidor financeiro Russ Dallen, “A Venezuela tornou-se o sonho de Pablo Escobar.” A estes três trabalhos que permitem perceber a dimensão do desastre acrescento agora mais uma referência, esta do New York Times, um pouco mais antiga mas muito completa: How Venezuela Stumbled to the Brink of Collapse.
 
Quanto ao momento que hoje se vive, o editorial do El Pais, Hora decisiva en Venezuela, sintetiza o essencial: “La gestión de Nicolás Maduro al frente de Venezuela no puede ser calificada sino como lamentable desde prácticamente todos los puntos de vista. A la catástrofe económica que ha hundido a la población en una miseria material inimaginable hace pocos años en uno de los países con más potencial material y humano de América, se ha unido un retroceso inaceptable en el ámbito de las libertades individuales y colectivas con la instauración de facto de un régimen autoritario, aunque pretenda guardar una apariencia democrática.”

 
No mesmo sentido se expressa o editorial do Wall Street Journal, Revolt in Venezuela, onde se faz um paralelo com outras revoltas pela liberdade: “Around the country rich and poor used the anniversary of the 1958 fall of military dictator Marcos Pérez Jiménez to call for a return to democracy. Like the “people power” rebellion in the Philippines in 1986, and the “color” revolutions in Europe, this is a revolt that has more democratic legitimacy than Mr. Maduro, who stole last year’s election with the help of the Cuban intelligence services.”
 
Mas se é relativamente estar de acordo sobre a necessidade de afastar Maduro e realizar eleições realmente livres e democráticas, a verdade é que são muitas as dúvidas sobre se será possível chegar lá na sequência de mais este levantamento popular. Há contudo alguns trabalhos jornalísticos que dão pistas interessantes:
  • A Short, Simple Primer on What’s Happening in Venezuela, a newsletter The Interpreter do New York Times, da responsabilidade de Max Fisher e Amanda Taub, organizada em perguntas e respostas. Eis um desses blocos, um dos mais pertinentes: “What will happen next? There are two sets of actors who could force Mr. Maduro to step down. The first includes members of Mr. Maduro’s own government, though the crisis has grown so bad that many of them probably fear prison or worse should they lose power. And they would lose their access to handouts, sending them into the same bread lines as everyone else. The second contains members of the Venezuelan military, which Mr. Maduro has, perhaps wisely, avoided ordering to crack down on protesters. Some low-level officers have moved against Mr. Maduro, but the rest have remained loyal. The military benefits tremendously from the status quo; Mr. Maduro has allowed them take control of black marketeering and some trade in natural resources. If neither group removes Mr. Maduro and he refuses to step down, it is very hard to say what will happen. History provides few obvious parallels.
  • Golpe de Estado, guerra civil ou transição? Seis respostas para perceber o presente e o futuro da Venezuela, um especial de João de Almeida Dias no Observador, onde se abordam estas seis questões:
  1. Quem manda agora na Venezuela?
  2. Com que legitimidade é que Guaidó é proclamado Presidente interino?
  3. O que vai Maduro fazer para continuar no poder?
  4. Qual é a probabilidade de uma intervenção militar dos EUA na Venezuela?
  5. De que outras formas, além da intervenção militar, pode a comunidade internacional pressionar o regime de Maduro?
  6. A Venezuela encaminha-se para uma guerra civil?

    De todas seleccionei um extracto da resposta à relativa à legitimidade de Guaidó, pois julgo que será uma questão que pode estar a suscitar dúvidas a muitos leitores. A resposta remete para o texto da Constituição de 1999, a que está em vigor e já foi aprovada depois da subida ao poder de Hugo Chavez: “O que diz, então, o Artigo 233 da Constituição da Venezuela? Que são consideradas “faltas absolutas do Presidente da República”, entre tantos, o “abandono do cargo, declarado como tal pela Assembleia Nacional, assim como a revogação popular do seu mandato”. Ora, se a Assembleia Nacional não reconheceu a tomada de posse de Nicolás Maduro como Presidente no passado 10 de janeiro, passou desta forma a preencher o “vazio” que entende haver no poder presidencial venezuelano. E o que o Artigo 233 diz sobre os passos a tomar nesse caso é que “quando se produzir a falta absoluta do Presidente eleito ou Presidente eleita antes de tomar posse, produzir-se-á uma nova eleição universal, direta e secreta dentro de 30 dias consecutivos seguintes. Até que se eleja e tome posse o novo Presidente ou a nova Presidente, a Presidência da República será da responsabilidade do presidente ou da presidente da Assembleia Nacional”.
 
Um ponto comum a todos os cenários desenvolvidos nos diferentes órgãos de informação é a descrição da aparente fidelidade, pelo menos por agora, da alta hierarquia militar, ao regime de Maduro. É certo que isso pode coexistir com alguma tensão, como nos relata do El Espanol, em Generales contra capitanes: Maduro y Guaidó se disputan el control del Ejército: "Los cuadros de arriba están comprometidos con Maduro. Los mandos intermedios o bajos, los que pasan hambre y están oprimidos, pueden dejar de obedecer órdenes arbitrarias para no estar comprometidos ante la nueva situación", advirtió a EL ESPAÑOL este miércoles una fuente conocedora del Ejército venezolano. Al igual que las demás infraestructuras del país, las instalaciones militares están decayendo y los salarios desaparecen rápidamente en medio de una brutal inflación.” Mesmo assim importa perceber o porquê da fidelidade dos generais.

 
No Observador João de Almeida Dias aborda de forma detalhada esse tema no especial Petróleo, ouro e poder: como Maduro comprou os militares e garantiu (até ver) o seu apoio. Mesmo assim, apesar de todos os esquemas para aliciar os militares, a verdade é que continuar a ser necessário recorrer à intimidação, sendo que “2018 foi, como nenhum ano dos quase 20 que o chavismo já leva, aquele que levou a uma maior onda de repressão e detenções dentro das forças armadas venezuelanas — com a jornalista Sebastiana Barráez, especializada em temas militares, a referir em setembro do ano passado que, desde janeiro e até à data, tinham sido presos 60 funcionários militares e 82 sob suspeita de planearem levantamentos contra o regime. Outras estimativas à altura eram ainda mais expansivas, apontando para um total de 185 oficiais sob investigação e a serem interrogados por atentarem contra o chavismo.
 
Para levar a bom porto o controlo das Forças Armadas o regime bolivariano conta, desde os tempos de Chávez, com o apoio inestimável de Cuba, como conta Juan Jesús Aznarez, do El Pais, em El enigma militar en Venezuela: “Siempre en prevención, asesorado por Cuba, el chavismo somete a las principales guarniciones a estrecha vigilancia y a una ideologización que trufa socialismo, marxismo leninismo, nacionalismo y antimperialismo. La depuración y arrestos por supuestas conspiraciones fueron frecuentes con Chávez y lo son con Maduro. (...) La penetración uniformada en la gestión del Estado es tan profunda que en 2017 casi la mitad de los ministros, 14 de 33, pertenecía a las Fuerzas Armadas. Además de las operaciones de intermediación financiera, el Banco de la Fuerza Armada Bolivariana completa la sinecura de las tres armas.
 
Para o Wall Street Journal não será mesmo possível pensar numa transição pacífica em Caracas se Havana continuar a ter a influência que tem, como se defende no editorial Cuba Out of Venezuela. Aí, depois de recordar que “Cuba controls Mr. Maduro’s personal security detail and has built a counterintelligence network around the high command. Venezuela’s 1,000 or so flag officers operate in silos and are spied on by minders. An officer who sides with the opposition is putting his life and perhaps his family at risk”, conclui-se: “Cuba is the imperial power in Caracas, not the U.S., and the only recent “development” in Venezuela has been malnutrition. Russia certainly wouldn’t mind a Syrian-style civil war in Venezuela that spread more chaos in the Americas and more opportunity to undermine democratic governments.”
 
É assim que, a fechar este Macroscópio e para não fugir à tradição de uma recomendação próprio de um fim-de-semana, que convida a leituras mais longas, não podia esquecer um ensaio muito a propósito de José Carlos Fernandes, O Globocop vai mesmo arrumar as botas ou vai intervir na Venezuela? A história dos EUA enquanto polícia do mundo. O seu ponto de partida é simples: “Para enquadrar a posição de Trump é instrutivo recuar até aos primórdios da história dos EUA e acompanhar a luta entre as tendências “isolacionista” e “intervencionista” até ao nosso tempo. Se, ou quando, for preciso tomar uma decisão difícil sobre a Venezuela, uma delas vencerá.” O seu desenvolvimento permite-nos recuar até aos acontecimentos da Costa da Berbéria, em 1801, quando a jovem república interveio militarmente em defesa dos seus interesses muito, muito longe do seu território, mais precisamente deste lado do Atlântico. Foi apenas a primeira de muitas intervenções, que vêm até à mais recente na Síria, porventura muito mais aventuras militares do que aquelas de que o leitor se recordará, uma história que vale a pena recordar, tudo num texto bem ilustrado que se lê com prazer e com o qual se aprende. Mesmo.
 
De resto, despeço-me com votos de um bom fim-de-semana a que, acrescento, desta vez, votos de felicidades para os que na Venezuela lutam pela liberdade. Eles merecem e precisam.
 
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