sábado, 31 de julho de 2021

A Igreja crê o que ela reza e reza o que ela crê

 

  • Padre David Francisquini*

Nos idos de 1950, ainda muito criança, todo lampeiro, ia aos domingos com meus pais assistir ao santo sacrifício da missa. Durante a celebração ficava observando os movimentos do sacerdote no altar, as formas e as cores dos paramentos litúrgicos, os cantos, além dos fiéis que, recolhidos, uniam suas intenções às do celebrante.

Não entendia grande coisa do que ali se passava, mas podia perceber que algo de muito transcendente se operava naquele culto prestado a Deus. Ao voltar para casa, juntos com os meus irmãos, num clima tão sério quanto o permitia nossa idade, sob os olhares comprazidos dos pais, porfiava com eles em imitar as palavras e os gestos do padre, à guisa de também “celebrar” a missa.

Alguma coisa de imponderável daquele ritual se prolongava em nossos espíritos, a ponto de o querermos alegremente imitar. Mesmo sendo em latim, por ser bem ordenado, sem pressa, e ao som de músicas e cantos que elevavam os corações a Deus, concorria para a atuação da graça divina em nós, alimentando a fé e o amor à verdadeira Igreja de Jesus Cristo.

Tratava-se da missa de sempre, hoje incompreensivelmente muito combatida e perseguida, por bispos e até mesmo por altos escalões da Igreja. É chamada ‘tridentina’ para diferenciar da nova missa instituída por Paulo VI em 1969. Foi a Missa a que assisti sempre, até me ordenar sacerdote em 1974. Por fidelidade à Santa Missa e aos ensinamentos emanados do Magistério da Igreja, tive de procurar seminários, um após outro, para me manter fiel à tradição.

Ao entrar no seminário, antes mesmo da realização do Concílio Vaticano II, a Missa tridentina era aquela que encantava todos nós, desejosos de um dia poder celebrar os mistérios divinos da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Perseguido com outros colegas de seminário, eu acabei parando em Campos (no norte Fluminense), onde permaneci como sacerdote que sempre só celebrou a Missa tridentina.

A liturgia dessa Missa, graças à sacralidade, elevação e beleza que lhe são próprias, enriquecida por seus paramentos, orações e gestos, marcou a vida da Igreja por séculos, atraindo graças eficazes para inculcar na sociedade reverência e amor a Deus. Contudo, depois do Concílio Vaticano II, houve uma transformação tal que culminou em uma como que apostasia e evanescência dos fiéis, em decorrência da perda generalizada da fé.

Por que “Missa tridentina”? Foi e continua sendo a missa que sempre gozou de cidadania na Santa Igreja. Ela atingiu seu apogeu no Concílio de Trento (1545-1563) [quadro ao lado], que teve como objetivo tomar posições referentes às críticas dos reformistas protestantes, além de unificar o culto católico, expurgando os abusos litúrgicos e doutrinários que ensejaram a rebelião de Lutero.

Esse concílio se deveu antes de tudo à preocupação dos Padres conciliares em combater, defender e explicitar a doutrina da Igreja para se premunirem da ameaça do luteranismo.

Na verdade, a reação aos abusos e à decadência religiosa da Renascença veio do Concílio de Trento, que contrapôs os golpes dos luteranos com a unificação da liturgia católica, relacionando o crer com aquilo que se reza, traduzido na máxima lex orandi lex credendi, ou seja, que a norma da oração estabeleça a norma da fé. A Igreja crê o que ela reza e celebra ou reza o que ela crê.

O propósito de São Pio V [quadro ao lado], fiel depositário das intenções daquele Concílio, não era compor livros litúrgicos novos, mas reproduzir a oração da Igreja já em uso. Restituiu ao missal a primeira regra de orar, retomando assim a primeira norma dos santos padres, que consiste em manter a unidade na celebração dos ritos. Tal unidade na Igreja ao perpetrar um rito é de máxima conveniência, pois remonta aos primeiros tempos da Igreja com a tradição apostólica.

Afinal, o zelo que remonta à tradição deve nos afastar de todo o prurido de novidades que grassa no mundo moderno, para darmos assim continuidade à Igreja por todos os séculos dos séculos. O tema da Santa Missa — a renovação incruenta do santo sacrifício do Calvário — não poderia ser mais excelso, e os tempos decadentes de hoje bradam aos céus por desagravo.

Brademos com Elias Profeta: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo Exercituum” (1 Reis, XIX, 1), ou seja, eu me consumo de zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos.

Espero poder voltar ao tema.

ABIM

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*Sacerdote da Igreja do imaculado Coração de Maria – Cardoso Moreria (RJ).

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