Curioso: o escritor João Pinto Coelho aconselhou a leitura deste livro e hoje escreveu o seguinte:
Não venho para falar do livro que a Tânia Ganho escreveu, mas do livro que li - pode parecer, mas não é a mesma coisa.
Se calhar não devia fazer isto, mas não resisto a começar pela autora, adivinhar, mesmo que por aproximação grosseira, o seu estado de alma na altura em que o escreveu e como isso se relaciona não só com conteúdo, mas com a forma.
Recuemos então a esse momento em que a Tânia – de aqui em diante referida por T - decide pôr o luto por escrito.
A primeira dedução - admitamos, bem razoável - é que T sabe que tem de escrever, mas não sabe o que a espera.
Não sabe o que a espera… (experimentem perguntar a um escritor o que é que isto prenuncia).
Por um lado, enfrenta a experiência inaugural do luto por um pai.
Por outro, desconhece absolutamente a sua avalancha destruidora ou o seu poder reparador.
Dito de outra maneira, parte para a escrita de olhos vendados, mergulha às cegas.
Para os autores ambiciosos, o inexprimível é a matéria mais crítica da escrita.
Volto, como sempre, a Jorge de Sena, que lhe chamaria «o inabsorvível pela experiência da alma». E em T nós chocamos com esse inabsorvível, um inabsorvível que corresponde à tal ferida que reabre constantemente e para a qual ela se esforça para encontrar uma expressão. A única coisa que sabe é que tem de escrever e, mais crucial, que tem de escrever em carne viva.
Que tem de escrever em carne viva…
Daí o tom caótico, daí a pressa,
Não há uma sequência cronológica na narrativa, tudo resulta num bloco de notas, qualquer coisa que se expressa no correr das memórias, das angústias, das projeções que chegam e das que são rechaçadas, como se só pudesse escrever em tempo real e ao sabor das vagas, como se suspeitasse de que a proximidade temporal do desastre da morte de um pai fosse aquele comboio que passa de rajada e só uma vez, como se a lucidez cicatrizasse com a dor ou o simples correr do tempo.
Daí o tom caótico, insisto, daí a pressa, o fluxo de consciência que é respeitado na própria organização livro, nos quase setenta capítulos em menos de 200 páginas, o velório das primeiras, o velório pouco depois, o velório que regressa por volta do meio do livro, as férias na Madeira, a prótese da anca, o velório…
Porquê o caos? T saberá, mas suspeitamos que o processo de escrita tenha sido violenta e sucessivamente interrompido pelas turbulências do luto:
- pelas memórias - o pai melómano, o pai karateca, o pai que voava,
- pelas angústias – T que não se recorda da última vez que o pai a reconheceu; T que não sabe se, no pico da doença, o pai teve momentos de lucidez; T que não sabe se foi perdoada pelos curativos – o lar-hotel de quatro estrelas, limpo, quente, soalheiro, com médicos, enfermeiros, auxiliares carinhosas (tu não abandonaste o teu pai – tu salvaste a tua mãe).
Não, este livro não é só uma carta de amor, como outro dia, na Buchholz, lhe chamou a Lídia Jorge; não é só um desfiar de memórias ou contas a ajustar; este livro é um storyboard da desorganização narrativa da Tânia, e isso é, provavelmente, até pela honestidade, o seu mérito mais comovente.
Como se não bastasse, para o poder a que o livro ambiciona, T ainda nos sugere como é que as memórias definiram a mulher
que é hoje:
o rigor científico do pai que projetou o seu amor às palavras o primado da intuição que ele inspirou e (lamenta a própria) ignorado por T em certos momentos da sua vida,
Mas também tudo o que este penoso exercício de recapitulação lhe suscita, a relação primordial com o filho, mesmo sem saber se este a olhará como porto de abrigo, ou com que olhos será recordada.
Por fim, a confissão mais brutal da orfandade, ao admitir que, porventura, deixará, pela primeira vez na vida, que cuidem de si.
Mas chega de falar de T.
Vamos falar do livro e das três personagens que acho mais cruciais.
Nem sequer me encolho na hora de as classificar de acordo com a sua importância (para mim, leitor, como é óbvio):
em 3.º lugar, o Pai;
em 2.º lugar, a Tânia, em primeiro lugar destacado:
e
Sim, leram bem, eu mesmo.
Ou julgam que T entrou sozinha no quarto da clínica, quando encontrou o pai cadavérico, de boca afundada? Não estava só, eu entrei com ela, também para me despedir de alguém que, a dada altura, foi a pessoa mais importante da minha vida.
Diferenças? T foi esconder as lágrimas para a casa de banho, eu aguentei-as até ao carro.
Tudo para concluir que se, ao dobrar de cada esquina, ao virar de cada página, te encontras no livro que lês e és o protagonista, talvez tenhas entre mãos o livro da tua vida*
.
* O meu foi comprado em Lisboa e vinha com um diamante colado na capa, logo acima da cabeça do Pai que Voava. Dizem-me que se trata de um exemplar único, uma raridade. Deixo o resto à imaginação de cada um.
O Meu Pai Voava
de Tânia Ganho
editor: Dom Quixote, julho de 2024
Apontamentos sobre memória e luto – tributo a um pai.
Não sei para quem escrevo estas palavras.
Para ele, talvez.
Desde que morreu, escrevo sem parar.
Escrevo para recuperar o fulgor com que ele viveu.
A consciência do fim é algo que, por muito que achemos que estamos preparados para a enfrentar, a nossa condição de humanos não nos deixa nunca encarar de ânimo leve. Depois do fim, o luto é um lugar a que chegamos sem contar.
De repente, o luto
O meu pai voava
Há uma verdade muito íntima com que Tânia Ganho nos fala do período de luto pela morte do seu pai. Ninguém nos diz que vai ser assim, e por isso a ideia de que cada processo de luto é inigualável. A autora vai-nos contando cenas da sua vida ao lado de um pai muito presente, e a mácula que deixa essa ausência. Embora idoso e já num processo demencial avançado, a verdade é que nada disso interessa perante a ideia do desaparecimento, sempre súbito, sempre abrindo portas a uma divisão da casa que não conhecíamos. O livro, que se lê como uma respiração profunda, mostra-nos momentos de grande comoção e outros que conseguem ser divertidos, quando nos conta alguns aspetos do feitio do seu pai. No fim, a filha, a “menina do papá”, um retrato de uma beleza incrível sobre um momento triste, o tempo mais triste de todos.
*Enviado por José Rui Marmelo Rabaça
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