sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O Povo e o Estado

“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, (...) do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo”. (Bertold Bretch).
Basta olharmos à nossa volta, para logo chegarmos à conclusão de que a maioria das pessoas vive absolutamente alheada do Estado. Para muitos, quiçá trata-se de um gigantesco edifício. Com diversos compartimentos, por onde circulam muitas pessoas nos corredores a tratar dos seus negócios (interesses); tem os seus passatempos, vivem e morrem sem se preocuparem ao menos um pouco pela casa; só pagam a renda combinada para poderem continuar a viver nela. Não se preocupam pela casa em si.
Para outros, o Estado é o mesmo que empregados, autoridades, todos aqueles que têm alguma coisa a dizer em tom de voz autoritária. Os outros têm de se conformar em serem bons cidadãos, isto é, hão-de fazer o que a autoridade impor, recorrendo por vezes à repressão.
Outros ainda, concebem o estado como um poder inimigo, que os violenta, que lhes levanta entraves à liberdade de iniciativa e lhes consome os resultados do seu trabalho. Mantém com ele uma luta singular, titânica, procuram arranjar maneira de o evitar e têm por lícitas, feitas a ele, coisas que de outra sorte seriam bastante reprováveis.
Pensemos bem nisto: o Estado é realmente uma coisa má, ridícula? É uma coisa que está aí, por onde os homens entram e saem, ou contra a qual dirigem uma peculiar campanha, como se este ente «Estados» fosse uma coisa para si, independente de nós e sem interesse algum?
Decerto que não? O Estado não vive por si. É verdade que tem raízes próprias e que a sua autoridade dimana, em última instância, de Deus em conformidade com algumas teorias teológicas, só assim se compreende a razão por que muitos nos momentos da tomada de posse juram cumprir os seus deveres com a mão encima da Bíblia Sagrada. Mas acabará por converter-se numa indignante tirania se se esquece que também assenta sobre a nossa livre decisão. O Estado nasce da livre actuação de cada particular. É o que cada um faz dele. O Estado tem as suas raízes em mim, em ti. Luís XIV disse um dia, com a auto-suficiência do monarca absoluto: «O Estado sou eu». O mesmo podemos dizer em rigor todos nós. Isto deveria encher-nos de responsabilidade. O Estado não é uma coisa já acabada, que está aí; é uma coisa que incessantemente se faz. E faz-se não por si mesmo, como uma planta; tem de ser feito. Mas quem o há-de fazer? Não um «alguém» misterioso, impessoal, mas tu e eu!
É natural que, no Estado, tenha de haver uma ordem; de outra maneira, estaria tudo estragado. Essa ordem, porém, há-de encarnar em pessoas que saibam que não mandam em escravos, mas que tutelam a ordem estatal no confronto de homens livres, e além disso, que os que lhes devem obedecer não são criados, mas, pessoas responsáveis perante Deus.
Pode muito bem acontecer que o Estado oprima o particular. Repete-se continuamente o caso de o Estado, em nome do bem comum, minimizar a dignidade do individuo. Já tem chegado a fazer uso das violências, violando os direitos privados e destroçando muitas vidas inocentes. Os últimos anos deram-nos a este respeito amargas lições. Apesar disso, o Estado é, no seu ser mais genuíno, uma missão imposta ao homem por Deus; missão que, se chega a consumar-se, constitui uma das supremas criações do poder humano.
Não podemos considerar o Estado como uma máquina que funciona às cegas, embora tenhamos essa percepção. Nem como um edifício firme, que está aí, por dentro do qual toda a gente circula; nem como uma mera ordenação de afazeres em que se insere a vida dos cidadãos. É certo que muitas vezes, não vai além disso: longe de nós deitarmos terra nos olhos, para não vermos semelhantes aberrações. Algum motivo haverá para instintivamente nos defendermos dele. Mas, apesar de tudo, não nos é lícito subtrairmo-nos à sua esfera de competência.
Prescindindo inteiramente de que possa ir parar às mãos de quem faça dele um negócio ou o converta em instrumento da sua imaginação, havemos de pensar sempre na sua íntima verdade: o Estado tem de ser diferente, qualquer coisa de vital, contrapeso do nosso individualismo pessoal, uma construção poderosa, um organismo activo, prodigioso, onde encontre expressão, não o indivíduo, nem o reduzido círculo de amigos ou da família, mas, o povo. Semelhante Estado, porém, só se torna vital quando nós nos comportamos para com ele, não de uma maneira meramente passiva, deixando-o estar aí simplesmente, ao deus-dará, abandonando-o às mãos de políticos e funcionários irresponsáveis, sem escrúpulos, mas de uma maneira activa, trabalhando-o nós próprios; quando nasce vitalmente da tua e da minha atitude, quando é «Estado em ti e em mim».
Para isso, falemos das obrigações cívicas e da maneira das realizar; isto é, da formação cívica, que tem sido descurada há muitos anos a esta parte. A palavra encerra vários sentidos. A maioria das vezes significa que a gente deve saber o que é uma Constituição, que leis e autoridades há e o que é que um cidadão tem de fazer. Tudo isto é bom e seria insensato menosprezar esses conhecimentos.
Um homem, que me fez vislumbrar pela primeira vez o que significa propriamente o trabalho no Estado, disse-me um dia: «É indignante que pretendam formar o Estado pessoas que nem sequer sabem o que é que fazia um corregedor». Esta frase vem-me à cabeça com frequência, sempre que tomo conhecimento das manifestações políticas da juventude e de outros sectores da sociedade. Naquela altura, senti uma grande vergonha das parvoíces sem conta que costumava dizer por um mero «impulso criador» nas minhas reflexões para a comunicação social.
Na verdade, alguns fariam bastante melhor se acabassem com os péssimos discursos e se pusessem a estudar a história da competência do então corregedor, embora saibamos que se encontre ultrapassada, porém, não deixaria de ser interessante. Mas neste capítulo entendo por formação cívica outra coisa, disso falarei no próximo artigo.
“Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Indiferença é apatia, parasitismo, covardia. Não é vida. Por isso, abomino os indiferentes. Desprezo os indiferentes, também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Vivo, sou militante. Por isso, detesto quem não toma partido. Odeio os indiferentes.” (António Gramsci (1891-1937), pensador italiano).

Por: J. Carlos


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