segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Macroscópio – Depois do Natal, infelizmente com pouco espírito natalício

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

 
Foram dias tranquilos – ou quase. Quem vive há muito tempo a lufa-a-lufa das redações sabe que é frequente a actualidade pregar partidas por alturas do Natal. Assim, de repente, recordo-me do tsunami de 2004, da tempestade que deixou sem electricidade no dia de Natal milhares de lares na zona de Torres Vedras em 2009, da demissão de Guterres em 2001 (esta poucos dias antes do Natal), da renúncia de Gorbatchov em 1991 (precisamente no dia de Natal), da execução dos Ceausescu em 1989, da invasão do Afeganistão em 1979 e por aí adiante. Este ano não houve assim “grandes notícias”, apesar do Banif, apenas alguns temas que, muito justamente, mobilizaram as nossas atenções. Entre todos eles, destaque para a discussão sobre as circunstâncias da morte de David Duarte no Hospital de São José.
 
É sabido como temas como este – a ocorrência de uma morte que, teoricamente, poderia ter sido evitada se uma equipa médica tivesse realizado uma operação de urgência – são capazes de acender paixões. Não vamos por aí, até porque há ainda demasiadas questões por esclarecer para que se possam tirar conclusões. Algumas delas suscitadas nos textos que cito a seguir.
 
A primeira reflexão para que chamo a atenção é a de Paulo Baldaia, no Diário de Notícias: Hipócrates. É um texto que deixa três perguntas que me pareceram especialmente pertinentes:
1 - Fontes hospitalares garantem que a morte de David Duarte foi a quinta, desde que deixou de haver equipa ao fim-de-semana. O que levou médicos e enfermeiros a não denunciarem cada uma destas mortes, procurando assim evitar as que se seguiram?
2 - Tendo já havido quatro mortes por não resistirem à espera do fim-de-semana e sabendo a gravidade do estado de saúde de David Duarte, por que razão não foi chamada de urgência uma equipa para o operar?
3 - Já depois dos cortes correspondentes a cerca de 50%, por cada dia de piquete, um enfermeiro recebia 130 euros e um médico 250, mesmo que não tivessem de ir ao hospital se não houvesse cirurgias para fazer. Morreram cinco pessoas "em consequência dos cortes cegos, insensatos e absurdos" como acusa o bastonário dos médicos, José Manuel Silva?
 
Na verdade, como referiu o novo ministro da Saúde (e bem podia ter ido por outro caminho), o que se passou com David Duarte não pode ser resumido a uma questão económico-financeira ou à habitual conversa sobre “cortes”. Por isso vale a pena dar a palavra a dois médicos, por coincidência ambos médicos patologistas, que produziram reflexões interessantes aqui no Observador e no blogue Defender o Quadrado:
  • S. José ou a irresponsabilidade, de Luís Carvalho Rodrigues: “O ministro, o presidente da ARS e as administrações hospitalares não podem furtar-se a responsabilidades. Mas acho estranho que os responsáveis pelos serviços e pelas equipas presentes naquele fim de semana se mantenham agora calados e invisíveis. Claro que haverá inquérito, apuramento de factos e contraditório. Todos terão argumentos e justificações. E é assim que deve ser. Mas é difícil fugir a uma ideia essencial: quem se refugia atrás de “ordens superiores” em casos como este não merece ocupar o lugar que ocupa.”
  • Da responsabilidade colectiva, de Sofia Loureiro dos Santos: “A forma como se actuou na saúde, aliás como em muitos outros sectores, foi criminosa. Mas os cortes existiram em todo o País, pelo que não pode ser apenas essa a justificação de tanta incúria e desleixo. O sistema falhou não uma mas, pelo menos, 4 vezes e ninguém atuou nem ao fim da primeira, nem da segunda, nem da terceira, nem da quarta. E a única razão de ter sido divulgada agora é a existência de uma queixa dos familiares da última vítima, um homem de 29 anos. É demasiado mau, demasiado grave, demasiado triste, demasiado assustador.”
  • SNS eficaz e sustentável - concentração das equipas, da mesma Sofia Loureiro dos Santos: “Se calhar não haveria necessidade de ter 3 ou 4 centros hospitalares na Grande Lisboa (…) com equipas de urgência a funcionar em prevenção. Porque não haver uma ou 2 equipas formadas por médicos, enfermeiros e técnicos que pudessem usar um ou os vários centros hospitalares, conforme fosse mais exequível? Estou apenas a dar um exemplo, não faço ideia se seria uma boa solução, mas a verdade é que provavelmente não se justifica ter equipas de cirurgia neurovascular (ou de outras especialidades) em todas as unidades hospitalares.”
 
Por fim, duas reflexões mais políticas, a primeira das quais de crítica ao aproveitamento político deste caso na campanha das presidenciais: Os saudáveis populistas, de Helena Matos, aqui no Observador:
Pensam estes candidatos à Presidência da República recorrer ao SNS quando tiverem problemas de saúde? Caso respondam afirmativamente, estimam viver quantos anos mais? É que para falar deste modo, como se não houvesse amanhã, tem de se estar dotado da forte convicção (eu diria antes fé) de que se vai gozar de uma saúde de ferro até àquele derradeiro momento em que a bondade de uma morte súbita porá fim a vida tão saudável. (De caminho também é indispensável estar disposto a descer moralmente muito para subir um pouco mais nas sondagens, mas esse é outro assunto.) Afinal a quem não sabe que morte o espera e de que doenças vai sofrer restas apenas uma pragmática certeza: todos podemos acabar num hospital. Que este se organize em função dos doentes ou das questões contratuais do seu pessoal não é a mesma coisa.
 
A outra remete apenas para o bom senso: é a de Francisco Sarsfield Cabral, na Rádio Renascença, Conhecer a verdade: “É fácil, mas demagógico e desonesto, concluir que a culpa da morte no S. José é dos cortes no financiamento da saúde. O ministro da Saúde do governo de Costa foi mais sério e referiu problemas de organização e gestão, que não acontecem no Norte e no Centro do país.”
 


Passo agora a outro tema que, mesmo tendo estado mais longe dos holofotes da nossa comunicação social, é de grande importância para Portugal: as negociações para a formação do próximo governo espanhol. Vou deixar-vos cinco referências que me parecem merecedoras de atenção.
 
A primeira centra-se na persistência da crise do euro e vem de um dos seus críticos mais persistentes, o influente Ambrose Evans-Pritchard do britânico The Telegraph, que considera que Political uprising in Spain shatters illusion of eurozone recovery. Na sua opinião, “Spain has been held up as the poster-child of austerity and reform in southern Europe. But while it is true that growth has rebounded, output is still 5pc below its previous peak. The deeper pathologies and imbalances of the pre-crisis era are still there.”
 
Esta situação fez, na sua análise, implodir o sistema bipartidário e tornar possível um governo de esquerda resultante de uma coligação PSOE-Podemos, cenário que “would also be foreign policy disaster for German Chancellor Angela Merkel, who has already lost Italy, Greece, and Portugal to the Left, and faces the growing risk of anti-austerity 'Latin bloc' led by the Socialists in France.”
 
Numa altura em que prosseguem as negociações em Espanha e quando a extrema-esquerda catalã conseguiu empatar a formaçãode um governo naquela região autónoma, há dois textos do El Pais que vale a pena ler:
  • La gran coalición, de Mario Vargas Llosa, o grande escritor que defende “Un pacto entre las tres fuerzas inequívocamente democráticas, proeuropeas y modernas —PP, PSOE y Ciudadanos”. Isto porque tal coligação seria a que melhor traduziria a vontade dos eleitores: “Esto es perfectamente posible con un poco de realismo, generosidad y espíritu tolerante de parte de las tres fuerzas políticas. Porque este es el mandato del pueblo que votó el domingo: nada de Gobiernos unipartidistas, ha llegado —como en la mayoría de países europeos— la hora de las alianzas y los pactos. Esto puede no gustarle a muchos, pero es la esencia misma de la democracia: la coexistencia en la diversidad.”
  • ¡Todo el poder a los sóviets!, de Lluís Bassets, director-adjunto daquele diário que escrevia assim sobre a assembleia plenária do grupo anti-capitalista CUP, da qual dependia o futuro próximo da Catalunha e, também, de Espanha: “Una amplísima asamblea de militantes, lo más parecido que pueda haber en los consejos de obreros y de soldados que proliferaron por Europa en la segunda década del siglo pasado, decidirá hoy domingo si Artur Mas debe ser investido presidente de la Generalitat de Cataluña. Pronto hará cien años de aquel momento especial y peligroso en que se instalaron unos consejos en Turín y Munich, Berlín y Budapest, con el propósito de destruir el orden burgués e instaurar uno nuevo, proletario y revolucionario. Algunos fracasaron y fueron duramente reprimidos, otros tomaron el poder por las armas durante pocos días, pero ninguno se hizo tan famoso como el consejo —sóviet en ruso— de Petrogrado, almendra fundadora de la Unión Soviética, una de las dos experiencias totalitarias más sanguinarias y tenebrosas del sanguinario y tenebroso siglo XX.”
 
A Espanha parece, no entanto, mais depressa capturada pelo tipo de paixões que animaram a caótica assembleia “soviética” do CUP do pela cultura de compromisso necessária a um tempo que seria de uma “nova transição”. Por isso Espanha é uma das referências de Leo McKinstry, de novo no Telegraph, para reflectir sobre How the EU could collapse in 2016. Eis uma passagem muito significativa, que até cita o exemplo português:
But the political fallout from the eurozone could soon extend far more widely, ratcheting up the scope for conflict. Following elections in October, Portugal is now governed by a Socialist minority Government that is propped up by the Left Bloc, a movement that urges mass civil disobedience against austerity, and the Portuguese Communist Party, which takes a traditionally Marxist, anti-capitalist line. Spain is heading in the same direction after the recent General Election. The impending clash on economic policy will be compounded by the continuing migration disaster, which is threatening to tear apart the social fabric of Europe. Instead of defending European civilisation, the EU has been a vehicle for destruction of our heritage and identity through its obsession with open borders and cultural diversity.
 
Para terminar, um texto que de alguma forma procura fornecer referências para estas crises e traduz a inquietação que os mais recentes desenvolvimentos justificam. Refiro-me à crónica com que João Carlos Espada se despede hoje dos leitores do Público, A sociedade aberta e os seus inimigos, onde, depois de notar que “enquanto o discurso da esquerda continua a radicalizar-se contra a “direita neo-liberal”, uma velha direita autoritária, anti-liberal e xenófoba reemerge paulatinamente em vários países europeus, a começar pela França. Discursa contra os mercados, a concorrência, o comércio livre.”, deixa um alerta:
Perante estes sinais muito preocupantes, a direita e a esquerda democráticas fariam bem em parar para reflectir. Fariam bem em sublinhar o seu compromisso comum com a liberdade e a democracia ocidentais. Deviam recordar o alerta lançado por Elie Halévy, nas suas eloquentes Rhodes Lectures, em Oxford, em 1929, acerca da contribuição mútua da política revolucionária e da política nacionalista para a emergência do que chamou “a era das tiranias”.
 
E por hoje é tudo, ou quase. E digo quase porque não posso – modéstia à parte, desculpem os meus leitores – de referir uma das escolhas de Vasco Pulido Valente, também no Público, para os seus Os melhores do ano:
José Manuel Fernandes, Rui Ramos, David Dinis – Criaram o primeiro grande jornal online, o “Observador”. Numa altura em que toda a gente fala numa língua que não chega a ser português, é bom saber que ainda aparece quem escreva português e, às vezes mesmo, bom português.
 
Só posso agradecer o elogio e endereçá-lo a toda a equipa do Observador, que o merece como ninguém. Aqui continuaremos a dar o nosso melhor, todos os dias, todas as horas.
 
Tenham bom descanso, boas leituras, e até amanhã. 

 
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