quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Macroscópio – Intervalo para algumas obsessões e umas diversões

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Passadas as eleições presidenciais, começamos a entrar no terreno das discussões em torno do próximo Orçamento do Estado, mas teremos muito tempo para dele falar. Hoje o Macroscópio vai retomar alguns temas que por aqui já andaram – e perdoem-me os leitores se alguns deles correspondem quase a obsessões pessoais, isto é, a preocupações recorrentes com os caminhos deste nosso mundo.

Comecemos fora de portas – ou cá dentro se pensarmos que, agora, a nossa casa é cada vez mais a Europa. E começo pela reportagem de fundo que foi tema de capa da última edição da revista alemã Spiegel: The Isolated Chancellor: What Is Driving Angela Merkel? O isolamento, como adivinharão, é uma consequência da sua política de portas abertas na crise dos refugiados, uma política que permitiu que a Alemanha tivesse recebido um milhão de deslocados no último ano. A reportagem começa com uma pequena história que vale a pena reproduzir. Passou-se quando Merkel encontrou um velho companheiro das lutas pela democracia na antiga RDA, o pastor luterano Rainer Eppelmann, durante um concerto em Berlim:
At the concert, Eppelmann told Merkel how courageous and wonderful he thought her refugee policies were. Given the situation in which Merkel is now in, Eppelmann said, he finds himself thinking often about his favorite quote from the former Czech president and writer Vaclav Havel. "Hope is not the conviction that something will turn out well, but the certainty that something makes sense, regardless of how it turns out." The concert began and Merkel listened to a melancholic Chopin ballad in G-minor. When the intermission arrived, she jumped up from her chair and walked directly over to Eppelmann. She asked: "How did that quote about hope go again?"

O texto da Spiegel mostra como Merkel começa a perder o controlo político no seu país, mas não é só isso que corre mal na relação da Alemanha com os refugiados. Do outro lado também há queixas, como as registadas por João Almeida Dias num especial do Observador: Quatro meses depois de chegar à Alemanha, Issam desespera: “Já não consigo aguentar isto”.

Continuando na Alemanha, mas mudando radicalmente de tema, salto para um outro Especial aqui da casa, um trabalho de Alexandre Homem Cristo que junta o recentemente desaparecido David Bowie e Bruce Springsteen, até porque este virá este ano cantar a Lisboa (estará no NOS Alive). O que aí se conta é como a música ajudou a derrubar o comunismo. Algo que o governo alemão não esqueceu, pois fez questão, aquando da morte de Bowie, de agradecer o seu contributo para derrubar o Muro de Berlim. No caso de Springsteen, o que ninguém esquece é o concerto que deu na RDA, onde cantou “Born in the USA” numa celebração da liberdade: “O concerto de Bruce Springsteen foi, de longe, o maior da história da RDA. Mas o que o tornou memorável não foi a dimensão da plateia. Foi que, durante aquela noite de 19 de Julho de 1988, deixou de haver RDA ou muro. Ali, naquelas três horas, todos foram livres. Naqueles corações, já não havia como voltar atrás.”



O segundo tema deste Macroscópio é quase uma obrigatoriedade. Hoje é 7 de Janeiro, Dia Internacional de Recordação do Holocausto, passam 71 anos sobre a libertação do campo de extermínio de Auschwitz, e não era possível passar ao lado de um tema que continua a obrigar-nos a pensar, numa tentativa de compreender, como se isso fosse possível. Três destaques, dois deles de textos que hoje foram recuperados dos arquivos:
  • Ao lado do “Anjo da Morte”, um texto já antigo de Adam Pieczynski que o Expresso colocou de novo em destaque no seu site. Nela conta-se a história de Ella Lingens, uma médica austríaca que acabou em Auschwitz, a trabalhar sob as ordens do temível “Anjo da Morte”, Josef Mengele, apesar de ter escondido e salvo judeus das perseguições. Pequeno extracto: “Auschwitz foi a experiência central da vida de Lingens, e os fantasmas das pessoas que conheceu na fábrica da morte acompanhá-la-ão até ao fim dos seus dias. Havia médicos pouco escrupulosos que exigiam que os doentes com malária lhes dessem a sua porção de pão, a troco de quinino. E houve mulheres que se transformaram em prostitutas no bordel de Auschwitz, porque assim tinham direito a uma melhor ração alimentar, a um duche diário e a uma habitação mais confortável.”
  • Auschwitz, pelo menos uma vez na vida, um Especial do Observador que eu próprio escrevi há um ano e onde combino recordações de uma visita ao campo de extermínio, visitas a vários museus que evocam o Holocausto, conversas com sobreviventes e uma reflexão sobre o significado daquele lugar. Desse trabalho extraí-se a centralidade de Auschwitz, daquele lugar, em todo o trabalho de memória: “A centralidade de Auschwitz I, o campo onde ainda hoje se entra passando sob as ignominiosas palavras – Arbeit macht frei, o trabalho liberta – e que é o museu do horror, com os seus milhares de próteses, de sapatos, de despojos, com as suas amostras de tecidos feitos de cabelos humanos ou com o seu pequeno crematório. Sobretudo a centralidade de Birkenau, onde quase nada há para além da imensidão do espaço, das ruínas, da linha de comboio, e que é o horror em estado puro. Em todo os outros lugares podemos tentar uma explicação racional do mal – em Birkenau é impossível. Porque nenhuma racionalidade explica que um Estado industrial, no auge de uma guerra de vida ou de morte, tenha, até ao último minuto, desviado uma parte dos seus ainda poderosos recursos apenas para exterminar, exterminar, exterminar.”
  • Recollections of a Sick Soul, onde o escritor e jornalista Bernard Avishai, na revista judaica Tablet, recorda Ilona Karmel, uma romancista que deveria ter morrido em Cracóvia, e depois em Buchenwald, mas que se salvou miraculosamente para, partindo da sua própria experiência, escrever algumas obras marcantes. É um texto muito pessoal e tocante: “Perhaps the most terrible confession she made to me during those early years was that there were times she missed the camp. “Things were simple in the camp … ” she said, and her voice trailed off into memory, of unimaginable horror, I inferred, but also—or so she clarified soon enough—of unimaginable moral certainty, something biblical characters could never have, something we could never have, not in our bourgeois opportunities and, at best, sincere struggle with our faults.”


Outro tema recorrente no Macroscópio, como saberão os meus leitores, é dos desafios que o populismo coloca aos sistemas políticos na Europa, em especial aos partidos centrais que criaram o actual modelo europeu no pós-guerra. Há problemas à esquerda e problema à direita, às vezes muito semelhantes, mas para hoje seleccionei três reflexões sobre a pressão que se exerce sobre o centro-esquerda, um campo político que tem tido especial dificuldade em encontrar respostas novas para um tempo de crise em que deixou de poder prometer o mesmo que prometia no passado, isto é, mais redistribuição de uma riqueza crescente.

Começo por Portugal e por um texto que eu mesmo escrevi no Observador a propósito do resultado das eleições presidenciais,António Costa por entre as ruínas do PS. Partindo do mau resultado, em conjunto, dos dois candidatos que, de alguma forma representavam o PS e, ao mesmo tempo, do bom resultado de Marisa Matias, sublinhei que é maior a concorrência pelo eleitorado entre o Bloco e os socialistas do que entre o Bloco e o PCP, como às vezes se sugere. Sendo que dei razão a Francisco Assis no seu alerta para que “O Bloco de Esquerda vai progredindo à custa de um discurso muito perigoso. Está transformado no mais populista dos partidos portugueses.” É uma progressão que prejudica sobretudo o PS, alertando eu para o facto de que “O destino de um PS incapaz de combater o doce veneno do discurso bloquista pode ser o mesmo” de outros partidos da mesma área que definharam um pouco por toda a Europa.

É no quadro desta reflexão que é interessante ler o principal analista político do Financial Times, Janan Ganesh, quando ele nos fala sobre The UK Labour party’s farewell to the working class. Eis uma passagem especialmente interessante: “New Labour was always misread as a middle-class takeover of a working-class movement. It was something close to the opposite. By hardening its line on crime and defence, by cloaking it unsqueamishly in the British flag, by taking school standards and welfare abuse seriously, Tony Blair returned a party captured by the whims of the Brahmin left to actual working people.” Corbyn, como se sabe, está a seguir um caminho radicalmente diferente e, por isso, a perder muito do voto popular habitualmente afecto ao Labour e que agora se transfere para o UKIP.

Finalmente gostava de chamar a atenção para uma crónica de Brendan O'Neill na Spectator onde se analisa o fenómeno espanhol do Podemos e se defende uma tese que o título do artigo resume bem: Revolutionaries? Podemos belong to the ivory tower, not to the masses. Nesta análise recorda-se que o partido nasceu nas universidades e tem uma abordagem à política que rompe com a da esquerda tradicional: “Far from being fiery revolutionaries, Podemos plays down class. It takes inspiration from academic thinkers who insist the left should ‘no longer focus on class warfare’ and instead should seek to ‘unite discontented groups, such as feminists, gay people’ etc. Forget the working man — it’s identity blocs that matter now.” O que ajuda a explicar algumas das contradições destes novos movimentos: “Given their academic roots, both Podemos and Syriza inevitably contain the fatal contradiction at the heart of today’s left: they express disdain for Eurozone austerity while cleaving to the most austere ideology of our times — environmentalism.”



E agora a fechar uma coisa totalmente diferente, um pequeno brinde que o Observador ofereceu aos seus leitores no passado domingo mas que pode ter passado despercebido por ser dia de eleições. Cães. Quando os donos veem beleza nas “aberrações” é um trabalho de Vera Novais que nos fala de todos os problemas que podem surgem nas raças puras, sobretudo em algumas onde se sacrificou, por selecção artificial, características que são essenciais ao bem estar dos cães. Focinhos muito achatados, pernas demasiado curtas ou características anatómicas que nem permitem o acasalamento sem ajuda humana são “aberrações”, algumas delas desenvolvidas apenas para ganhar concursos. Vale a pena ler, mesmo que não ande a sonhar com cães de raça, sejam eles dálmatas, basset hound ou mesmo um comum pastor alemão. Mais: “Estima-se que os cães foram domesticados há cerca de 14 mil anos, mas os estudos genéticos revelam que a maioria das raças modernas se originaram apenas há cerca de 200 anos.”

Despeço-me por hoje, com votos habituais de bom descanso e úteis leituras. Até amanhã.

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2015 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário