quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

MÉDICO DENUNCIA SNS “IMPROVISADO E REMENDADO” E CONFESSA MEDO COMO PAI E UTENTE


 
Ricardo Duarte (médico)
O médico Ricardo Duarte, que denunciou a existência de equipamentos avariados e a falta de medicamentos no hospital onde trabalha, confessa, em exclusivo ao ZAP, que, como pai e utente, tem “medo” de um Serviço Nacional de Saúde onde tudo é “improvisado e remendado”.
Foi um desabafo no Facebook deste médico, de 38 anos, que trabalha no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital do Funchal, na Madeira, que atirou novamente as más condições do Serviço Nacional de Saúde para a mesa de discussões.
Ricardo Duarte queixa-se da falta de medicamentos, de equipamentos de 30 mil euros avariados por falta de dinheiro e das más condições de trabalho, numa publicação que tem sido partilhada por vários utilizadores nas redes sociais e que já levou José Manuel Silva, o Bastonário da Ordem dos Médicos a elogiar-lhe a “coragem”.
O médico não veste a capa de herói e diz ao ZAP que “milhares de colegas” partilham dos seus lamentos, estando igualmente obrigados à improvisação no seu trabalho diário, fruto da falta de condições.
“Como profissional do SNS, dou o meu melhor todos os dias pelos meus doentes, tal como milhares dos meus colegas. E faço-o com condições longe das óptimas. Como pai e possível utente, tenho medo porque sei como tudo tem de ser improvisado e remendado“, assume Ricardo Duarte na conversa com o ZAP.
“Sinto que a Saúde das pessoas não é uma prioridade para quem nos governa”, desabafa ainda.

Médico não espera consequências do seu desabafo

No seu artigo no Facebook, Ricardo Duarte recorda o jovem que morreu no Hospital de S. José, em Lisboa, e lamenta que todos os dias precisa de tomar “decisões clínicas que determinam a vida e a morte de pessoas”, num ambiente de trabalho onde é obrigado a “improvisar a toda a hora”, fruto da falta de medicamentos e onde há “vários ventiladores de 30 mil euros avariados (um deles há mais de 1 ano) porque ‘ninguém’ pagou a manutenção”.
Isto numa região onde “se gastam muitos milhões em fogo-de-artifício e marinas abandonadas”, escreve também.
O Bastonário da OM já veio dizer no jornal Público que as denúncias do médico têm que “ter consequências”. Mas Ricardo Duarte não tem grandes esperanças nisso.
“Não sou ingénuo ao ponto de pensar que o que escrevi terá alguma consequência real”, refere ao ZAP, onde deixa contudo, a vontade do que há para melhorar.
“Quero ter profissionais de saúde satisfeitos e motivados para tratarem bem de mim e da minha família, no dia em que precisar. E quero que eles tenham condições logísticas e técnicas para o fazer o melhor possível”, constata.

“Um dos maiores retrocessos na saúde”

Ricardo Duarte revela ao ZAP que a “gota de água” para a publicação do seu desabafo foi o facto denão ter conseguido vacinar o filho contra a difteria, o tétano e a tosse convulsa, no Centro de Saúde, por não haver vacinas.
Esta “incapacidade de garantir a vacinação universal” é “revoltante”, diz o médico, considerando que é “um dos maiores retrocessos na saúde de uma civilização”.
No seu texto, Ricardo Duarte queixa-se por ganhar apenas “nove euros por hora”, “menos de metade do que há oito anos”, e ao ZAP admite que já pensou em emigrar e diz que tem até “Licença para exercer no Reino Unido”. Mas o coração mantém-no em casa, perto dos pais e dos sogros “velhinhos”.
Quanto às denúncias que fez, diz que até ao momento não sofreu “qualquer tipo de retaliação”, nem espera nada deste género porque refere não ter revelado “nada que não seja mais que conhecido”.
“Trabalho nos cuidados intensivos e na emergência, pelo que sei muito bem do que falo”, diz ainda o médico que trabalha no Funchal desde 2002.
Leia na íntegra o texto que o médico partilhou no Facebook:
“Estou desmotivado… mais! Estou revoltado!
Porquê? Tentando fugir a toda e qualquer subjetividade, vou-me restringir a factos (sem respeitar um acordo ortográfico que assassina a minha língua materna):
1. Tenho 38 anos, sou Médico há 15 anos. Possuo uma especialidade em Anestesiologia, uma subespecialidade em Medicina Intensiva e a competência em Emergência Médica. Gosto do que faço!
2. Recebo menos de metade de quando acabei a especialidade há 8 anos. É um facto. Para receber o meu ordenado base limpo tenho de acrescentar em média 100 horas extras por mês. Trabalho assim 65 horas por semana a uma média de 9 euros por hora. É um facto.
3. Este ano estive de serviço no dia de Natal, o ano passado fiz o 31 de Dezembro. É um facto. Nesse dia de Natal fui insultado pelo familiar de um doente que não concordou com o horário da visita do meu serviço. É um facto. Tenho um filho com 5 anos e não tenho dinheiro para pagar o infantário a um segundo que não tenho. É um facto.
4. Pertenço à minoria de Portugueses que paga impostos, e como sou considerado rico o meu filho paga mais na creche que muitos outros… pelo mesmo serviço, porque não come mais, nem come antes. É um facto.
5. Todos os dias tenho de tomar decisões clínicas que determinam a vida e a morte de pessoas ao meu cuidado. É um facto. Hemorragias aneurismáticas, como as do mediático caso do David, são apenas um exemplo das situações que eu e os meus colegas temos de tratar o melhor que sabemos e podemos. É um facto.
6. Mesmo sendo médico limito-me a comentar profissionalmente situações que são da minha área de diferenciação. A Medicina é tão vasta que se comentar situações ou acontecimentos de outras áreas sei que vai sair asneira. É um facto.
7. Vivo num País em que quem comenta o penalti e o fora de jogo acha que sabe o suficiente para ditar o certo e o errado naquilo que faço todos os dias. Em que aqueles técnicos de ideias gerais, a quem chamamos jornalistas, e os seus amigos comentadores profissionais, se sentem à vontade para “cagar lérias” sobre aquilo que desconhecem e não têm capacidade técnica para apreciar. É um facto. Por mais de 9 euros à hora… Julgo eu, porque nunca me mostraram o recibo de vencimento!
8. Trabalho num serviço de saúde onde tenho de improvisar a toda a hora porque o fármaco x e y “não há” (Ups… estamos proibidos de dizer que não há!). É um facto. Onde temos vários ventiladores de 30 mil euros avariados (um deles há mais de 1 ano!) porque “ninguém” pagou a manutenção. É um facto. Eu levo o meu carro à revisão todos os anos e pago. É um facto.
9. No dia em que o que me pagarem para ir trabalhar não for o suficiente para a despesa da gasolina e do estacionamento ( como concerta acontece com algumas equipas de prevenção específicas do SNS), não o farei. É um facto. Isso não retira qualquer valor ao juramento de Hipócrates, nem a Lei obriga (ainda!) ao trabalho escravo. É um facto.
10. Se eu estiver doente e precisar de assistência prestada pelos meus colegas no SNS tenho de pagar taxa moderadora, ao contrário de muitos outros… É um facto. E se andar de comboio, como não sou trabalhador da CP também pago. É um facto.
11. Eu e os meus colegas trabalhamos mais doentes que muitos doentes que são vistos no serviço de urgência. É um facto. Vivo numa região em que qualquer dor de dentes, grão no olho ou escaldão da praia vai para a urgência do hospital numa ambulância de emergência médica. Muitas vezes com a família no carro imediatamente atrás da ambulância. E sem pagar um tostão. É um facto.
12. No hospital em que trabalho existem mais de 100 camas de agudos ocupadas com as chamadas “altas problemáticas”. Situação que se arrasta há vários anos e legislaturas e cuja resolução (política) escapa aos mais dotados. É um facto.
13. Vivo numa região em que se gastam muitos milhões em fogo de artifício e marinas abandonadas, sem existir contudo dinheiro para um monitor e um ventilador de transporte para a sala de emergência de um hospital dito central e centro de trauma certificado. É um facto.
14. A descoberta das vacinas constitui um dos maiores avanços da Medicina do século XX e a implementação de um plano de vacinação global para a população é um marco histórico de qualquer civilização, contribuindo para a redução da mortalidade infantil e aumento da esperança de vida. É um facto. Vivo num país que já não consegue garantir uma cobertura vacinal completa e atempada às sua crianças. Um retrocesso de gerações… um sistema podre e decadente. Não vejo os noticiários abrirem com esta notícia. É um facto. O meu filho não fez a vacina da difteria, tétano e tosse convulsa aos 5 anos. Não há… Talvez para o ano. É um facto.
15. E por tudo isto estou revoltado… É um facto.
Funchal, penúltimo dia de 2015.
Ricardo Duarte. Cédula da Ordem dos Médicos 41436″
SV, ZAP

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