COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA
Fernando Portela Câmara
Prof. Associado, UFRJ
O transtorno de personalidade antissocial ganhou a imaginação popular na figura estereotipada de criminosos frios nos romances, novelas e filmes, que tornaram a personalidade antissocial uma caricatura de criminosos desalmados, assassinos frios, terroristas desumanos e empedernidos. Não é bem assim. Dificilmente esses tipos serão classificados como antissociais ou psicopatas. A maioria dos sociopatas não é consciente de suas dificuldades e age por impulso e sem censura aos seus desejos socialmente prejudiciais. Os mais esclarecidos procuram saber o que acontece com eles, quando tem insight suficiente para correlacionar algumas de suas dificuldades com a sua forma de ser, chegando a entender o seu caráter e estabelecendo alguns limites que lhe proporcionem uma vida social mais equilibrada. Isso não é muito comum. O transtorno pode também se atenuar com a idade madura, quando a reflexão passa a ganhar mais espaço na vida do individuo. Um sociopata pode procurar um psicoterapeuta para discutir dificuldades que ele mesmo não sabe ser decorrente da personalidade, mas nem sempre o psicoterapeuta perceberá o transtorno e frequentemente encaixará suas queixas em algum transtorno do eixo I. No Brasil, o elevado nível de violência e delitos no cotidiano das pessoas reduz a visibilidade deste transtorno de personalidade, e o sociopata só será visível dentro de um cenário forense, ao ser confrontado por um psiquiatra experiente num ambiente controlado. Este expediente, contudo, seleciona somente os sociopatas que se encaixam no constructo forense de “psicopatia”, na verdade uma subpopulação do transtorno antissocial. O sociopata não deve ser considerado um “criminoso nato”, destacando-se nesse caso suas tendências sádicas, narcisismo elevado, falta de empatia, oportunismo e insensibilidade ao sofrimento alheio, fatores que frequentemente levam a conflitos com familiares e colegas. Entretanto, a associação entre sociopatia e problemas com a lei é significativamente maior na população prisional em comparação com a população geral, isto porque, neste caso, é a subpopulação de psicopatas que está prevalecendo. A maioria dos sociopatas está entre nós, criam muitos conflitos, mas não chegam a ultrapassar o limite o comportamento criminoso. Demonizar o sociopata é um erro que pode trazer graves consequências, tais como usar o estigma para prejudicar moralmente adversários e desafetos, como hoje se observa (muitas vezes o próprio acusador pode esconder sob o ato difamatório sua própria sociopatia). Esse afrouxamento do conceito desociopatia faz com que a visibilidade do transtorno seja prejudicada em nosso meio.
A característica que mais se destaca na personalidade antissocial e da qual deriva este designação é a sua dificuldade de respeitar as normas sociais. Eles não introjetam o princípio da lei e ordem como norma de convivência social, e por isso incitam e deflagram impulsivamente arruaças, agressões, depredações, provocações e outros atos considerados ilegais e prejudiciais à ordem social. As frequentes arruaças e depredações ocorridas no Brasil recentemente são manifestações antissociais, mas não se pode dizer que todos os seus participantes sejamsociopatas. Uma minoria o é, e esta deflagra a violência social contagiando inocentes ociosos excitados pela situação do momento e desejosos de aventuras, frequentemente malogrados em prisões e processos. Fica assim difícil caracterizar o sociopata nesse cenário, e uma investigação forense seria demorada e muito trabalhosa, sem nenhum utilidade dado que se trata de manifestações políticas frequentemente organizadas para envolver uma grande parcela de jovens idealistas e sonhadores. A maioria da população é sugestionável, e a excitação coletiva leva a um abaissment do niveau mental em que passa a predominar uma inteligência de enxame, primitiva, anônima e animal.
Nos países com normas sociais bem definidas e socialmente estruturadas, o comportamento antissocial é punido com medidas judiciais agravadas com a reincidência. No Brasil, a falta de percepção do sistema legal para a inibição da sociopatia com medidas punitivas severas, a excessiva liberalidade para com criminosos reincidentes, e a dissonância cognitiva generalizada do conceito social da autoridade, fazem com que o ativismo sociopático seja endêmico. Nos países judicialmente funcionais cresce a discussão sobre a possibilidade de se detectar precocemente a personalidade sociopática, dado que é considerada um transtorno global de personalidade, mas o conceito é insuficientemente definido para que se possa incluir nesse transtorno crianças e adolescentes jovens. Há correntes psiquiátricas que admitem a existência de sinais precoces, mas enquanto os determinantes e fatores de risco desse transtorno não forem esclarecidos e comprovados, tudo não passa de especulação. A personalidade infanto-juvenil é demasiadamente proteiforme para atribuirmos a ela características patogenéticas estáveis e globais. Crianças com comportamento antissocial na escola ou praticante de bullying não devem ser consideradas sociopáticas. “Comportamento antissocial” não é a mesma coisa que “personalidade antissocial”. Em sociedades cuja ordem social é frouxa e a autoridade vacilante, o comportamento antissocial é largamente incentivado entre jovens.
A personalidade sociopática só tem visibilidade nas sociedades em que a conduta antissocial é culturalmente detectada e punida severamente. Em sociedades tolerantes como a nossa, o transtorno não é visível e frequentemente desconstruído no jargão da “exclusão social”, “sociedade injusta”, “vítima sociais”, etc. sem um critério bem definido biopsicossocialmente. Impressiona a proporção de autoridades políticas, judiciárias e educacionais que confundem sociopatia com “desassistência social”.
O sociopata apresenta déficits sociais que inevitavelmente o leva a transgredir as normas, desafiar a ordem e margear as franjas da lei. Esses déficits podem ter uma base neurobiológica, mas não existem ainda trabalhos suficientes para decidir sobre essa questão, especialmente num momento em que a neurobiologia virou modismo e chavão para explicar todo tipo de problema psíquico, social e até mesmo econômico! A pertissocial é tipicamente narcisista, imatura, insensível, impulsiva e parasitária, mas a sua detecção não deve se basear em um ou dois dados, mais em um conjunto de atitudes comportamentais características emolduradas em um histórico convincente. Relacionamos abaixo algumas características da personalidade antissocial frequentemente observadas no nosso cotidiano, insistindo que uma característica tomada isoladamente não tem valor taxonômico.
A tendência a correr riscos desnecessários, sem se preocupar com sua segurança e a dos outros, são tidas geralmente como um traço de personalidade antissocial. Um traço antissocial característico é o sujeito que dirige seu carro de forma imprudente na cidade e na estradas, sem se importar com os outros motoristas, pedestres ou regras. Entre esses destacamos os que dirigem alcoolizados, sabendo que isso pode trazer graves prejuízos a si e a outrem, mas não estão preocupados com os dados que possam causar, pois não pensam nessa direção, mas na facilidade que podem dispor para escapar à lei. Esse comportamento não é percebido em nosso meio como sociopático, pois nossa cultura não parece assimilar este conceito na ordem social, e uma prova disso é a tolerância aos episódios frequentes de vandalismo que há pouco mais de um ano vitimizam nossa sociedade, superpondo-se aos legítimos movimentos de protestos da população contra adebacle político-moral da sociedade brasileira contemporânea.
A irresponsabilidade é uma marca na personalidade sociopática, especialmente porque o sociopata atua em direção à satisfação imediata dos seus desejos, não pesa as conseqüências dos seus objetivos. É um traço infantil, denotando imaturidade dessa personalidade, que inclusive se estende a certos aspectos físicos. A incapacidade de adiar o desejo leva tais indivíduos a cometerem pequenos delitos tais como furtos, mentiras, falsificações, manipulações enfim tudo que proporcione a satisfação imediata de seus desejos. Essa versatilidade é típica dos criminosos sociopatas, e também é essa impulsividade que os levam a reincidir. São escravos dos seus impulsos, não aprendem com a experiência, para eles os fins justificam os meios.
O sociopata tem dificuldade em introjetar moralidade pública e ética profissional em sua conduta, não tem a experiência interna de culpa e remorso, e não empatizam com o outro. O sociopata não é solidário com o sofrimento alheio, e por isso poderá infligir sofrimento nos outros sem culpa ou remorso, agindo naturalmente. Não se importa em ajudar alguém ferido ou acidentado, se tiver algo mais urgente a fazer. São incapazes de solidarizar-se e compartilhar, de respeitar a propriedade alheia, não hesitam em enganar as pessoas com quem convive para obter vantagens pessoais, e pode mesmo se fazer passar por outras pessoas ou usar identidades falsas com esse objetivo, tudo isso em função de alcançar a satisfação imediata de suas necessidades e desejos. A ingenuidade com que praticam tais atos, sem medir as consequências, faz com sejam facilmente descobertos, e mesmo que penalizados por tais atos, voltarão a delinquir naturalmente. Por não aceitarem o erro ou delito, se vêem como vítimas e defenderão essa atitude com veemência, não raro ganhando adeptos para a sua causa, tamanha a capacidade de convencimento que imprimem em seus protestos, inclusive juízes.
O caráter impulsivo desse transtorno de personalidade, sua irresponsabilidade para com os valores alheios e com o trabalho, sempre atuarão quando a necessidade ou a situação ative esse lado sombrio da personalidade. Assim, falsificarão resultados, relatórios, negligenciarão procedimentos, encobrirão erros que poderão prejudicar uma comunidade inteira, praticarão delitos sempre que a oportunidade os favoreçam, usarão a ingenuidade ou o amor dos outros para obter vantagens e até mesmo parasitá-los, e se descobertos ou responsabilizados se comportarão como vítimas, não porque sejam maquiavélicos (geralmente não o são), mas porque acreditam serem, de fato, vítimas da sociedade, do sistema, da perseguição dos outros, etc. pois não são modulados por sentimento de culpa ou remorso. Os sociopatas são geralmente indolentes no trabalho, rendem pouco, falsificam resultados, relatórios, despesas, são faltosos contumazes, criam conflitos no ambiente de trabalho, e mudam frequentemente de emprego, vivem frequentemente “encostados” no INSS, alternando com salário desemprego ou outras facilidades que satisfaçam o seu natural parasitismo. Identificamos tais personalidades muita vezes pelos seus resultados, que isso pode ser especialmente nefasto nos ambientes científicos, médicos, empresariais, e outros que exigem responsabilidade técnica, vital e credibilidade.
Não devemos confundir personalidade antissocial com psicopatia. Como já foi dito acima, a personalidade psicopática é um constructo forense restrito, uma subpopulação do transtorno de personalidade antissocial, portadora de um perfil criminoso comprovado pelo registro penal. Muitos portadores de personalidade antissocial convivem conosco trabalhando e cumprindo as normas tanto quanto possam, embora sejam, na maioria das vezes, fontes de conflitos crônicos. Eles podem ser ajudados quando percebem que se conduzem “algo errado”, e podem também se controlar em um ambiente onde haja supervisão de desempenho e exigência de conduta e decoro, mas soltarão as rédeas nas ocasiões permissivas. Enfim, eles se controlam quando sabem que terão uma boa chance de serem punidos se agirem “por instinto” próprio, ou se não puderem culpar alguém.
Por fim, os sociopatas emocionalmente instáveis, impulsivos e que exibem hostilidade aberta quando frustrados são sociopatas primários. Não sentem culpa ou vergonha e não formam laços afetivos. Os sociopatas secundários ou funcionais formam laços afetivos, embora peculiares e seletivos, são mais controlados e mais estáveis. De um modo geral, os sociopatas são astênicos, indolentes, algo apáticos, e se excitam com emoções novas e por isso buscam experiências excitantes.
Fernando Portela Câmara
Prof. Associado, UFRJ
NB: convidamos os leitores com especialidade em Psiquiatria|Psicanálise ou em Psicologia a participar enviando artigos sobre este tema ou outros que gostariam ver publicados.
J.
Carlos – Editor | Administrador do Litoral Centro
editorlitoralcentro@gmail.com
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