quarta-feira, 16 de março de 2016

Macrocópio – Algumas heterodoxias. Ou texto fora da norma

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Quando se folheia jornais e se navega pela internet uma boa parte do dia verifica-se que, sobretudo em Portugal, é demasiado frequente encontrar demasiados a dizer quase sempre o mesmo. Por isso hoje, dia de aprovação do Orçamento, e até porque quase tudo já terá sido dito sobre esse documento, o Macroscópio preferiu escolher alguns textos, seleccionados na imprensa portuguesa e internacional, que de alguma forma saiem da norma.

Começo por uma crónica de João Miguel Tavares, no Público,Adeus, Paulo. Vai e não voltes, um texto que começa por escapar ao silêncio que rodeou o adeus de Paulo Portas à liderança do CDS. A ideia que o texto desenvolve é que “Portas fez muito pelo jornalismo português, mas muito pouco pela política portuguesa.”, mas a passagem que decidi seleccionar é quase uma nota à margem que me pareceu relevante: “Também o governador do Banco de Portugal apanhou por tabela. Já aqui disse várias vezes, e repito, que Carlos Costa terá certamente cometido muitos erros nos últimos anos. Mas quanto mais vejo políticos à esquerda (António Costa) e à direita (Paulo Portas) atacá-lo sem pudor, mais convencido fico de que o melhor para o país é que ele permaneça firme no seu lugar.” Eu acrescentaria: olhem para todos os outros que estão também em campanha contra o Governador, e meditem no argumento deste cronista.

Já Rui Ramos, aqui no Observador, procurou questionar as leituras mais comuns sobre a crise dos refugiados em A União Europeia como factor de instabilidade. E um texto onde nota como há muita hipocrisia nos discursos oficiais: “a suficiente para demasiados eleitores se sentirem enganados” Isto porque “anunciam-lhes refugiados, e recebem migrantes económicos (que, naturalmente, preferem a Alemanha à Turquia). Mostram-lhes mulheres e crianças na televisão, mas nas ruas das cidades cruzam-se sobretudo com magotes de homens. Prometem-lhes que os migrantes vão ser “integrados”, e depois há os guetos e o islamismo. O efeito desta dissonância é que cada abuso numa rua de Colónia ou cada terrorista originário de Molenbeek vale milhares de votos a Petry ou a Le Pen”.

A semana passada vimos como Marcelo Rebelo de Sousa foi levado em onbros pelo país e por quase todos os comentadores. Mas houve algumas excepções, e vou destacar uma delas: a protagonizada por José Gomes Ferreira que não gostou nada da ideia de uma Presidência de “afectos”. Escreveu-o em Marcelo e o equívoco económico- financeiro em Portugal (acesso limitado, paywall). Eis o seu ponto:  “a declaração que melhor sintetiza o espírito destes dias da posse foi a de que esta pode ser uma nova era para a política portuguesa, de afeto, de capacidade de comunicação. Ora aí está: o período mais negro da História recente do país teve origem nos tempos em que os políticos nos governavam com afetos. Eram tantos afetos que todos os dias havia cocktails de inauguração de autoestradas, pontes, viadutos, centros de saúde, pavilhões desportivos (fechados logo a seguir) etc., etc. Todas as semanas havia festas municipais, febras e sardinhadas e excursões de terceira idade a Espanha pagas por juntas de freguesia – por nós, contribuintes.” O autor continua descrever “afectos” semelhantes, que nos levaram onde sabemos, para pedir quase o contrário: “Espero, espero mesmo, que Marcelo Rebelo de Sousa não me esconda, como cidadão, nunca me esconda a gravidade dos problemas do meu país.”

Mas mesmo sendo muitas as preocupações que o nosso país suscita, o que se está a passar no Brasil não deixa de nos deixar estupefactos. Um ex-presidente regressar ao governo como ministro da sua sucessora para fugir à Justiça? Parece impossível, parece demasiado a América Latina dos coronéis Tapioca, mas está a acontecer. Já dediquei, a semana passada, um Macroscópio à situação no Brasil, mas esta evolução obriga a mais umas referências. Começando pela Terceira carta do Brasil, de Maria João Avillez, que está em Brasília e assistiu ao vivo às grandes manifestações de domingo passado. Ainda antes de se confirmar que Lula iria para o Governo, já escrevia que “a pasta seria um salvo-conduto mas Lula precisa mostrar que esta vivo. Já não é o mesmo, envelheceu e perdeu qualidades mas ainda une o PT. Voltou agora à arena no papel de vítima. (…) Sim, Lula já não é o mesmo mas ainda une as tropas.Desgracadamente de resto, o que ele faz sobretudo é iludi-las: exibe-se como se trouxesse com ele a certeza da felicidade do povo; em nome do seu sonho de voltar a Presidência do Brasil, faz inventários enviesados do seu governo e promete tudo como se pudesse prometer e tivesse o que dar.”

Muito significativa também a análise do grande especialista do El Pais em América Latina, Miguel Angel Bastenier, que escrevia nesse diário que Lula se cae del caballo. Aí nota, por exemplo, que “la corrupción es un mal endémico en un país con un Congreso habitado por 28 partidos, donde hay que estar tejiendo y destejiendo alianzas para gobernar” e que o próprio Lula o terá admitido “aunque presentándose como víctima de lo irreparable en una conversación con José Mujica, que recogen los periodistas Danza y Tulbovitz, en la que, según relata el expresidente uruguayo, tuvo “que lidiar con cosas inmorales, porque era la única forma de gobernar… con angustia y un poco de culpa”.

Ainda uma pequeno nota para o que se escreve no Brasil, onde se é taxativo: Acabou o governo Dilma. Quem o escreve é Clovis Rossi na Folha de São Paulo, que explica com que planos expansionistas e populistas Lula chega de novo ao poder, mas considerando depois que “Não me pergunte de onde sairá o dinheiro para medidas desse gênero. Não sei nem vejo de onde, talvez o próprio Lula não saiba. Mas ele sempre foi voluntarista, confiante em que vontade política —palavra mais que desgastada - basta para produzir mágicas. Parte importante do pacote Lula é intangível: a saliva. (…) Se vai ou não dar certo, só o tempo dirá. Mas essa fuga para a frente, seja pela nomeação de Lula, seja por planos mais ou menos heterodoxos, significa também declarar guerra aos mercados.”

Deixo agora o Brasil para seguir para outro tema que concentra as atenções, o caminho aparentemente imparável de Donald Trump em direcção à nomeação pelos republicanos como candidato à Presidência dos Estados Unidos. Ainda esta noiteganhou em mais quatro estados e viu um dos seus adversários desistir. Duas referências que me pareceram mais interessantes:
  • The frightful prospect of Trump as commander in chief, um texto de um colunista conservador, Jennifer Rubin, no Washington Post onde se escreve, por exemplo, comparando Trump com um outro candidato na corrida, Ted Cruz: “To state the obvious: Cruz knows a president cannot order the troops to commit war crimes. He knows one cannot “police” the Iran nuclear deal (as both Trump and Hillary Clinton want) since the mullahs use it to advance Iran’s hegemonic interests and its ballistic missile program (not to mention, to get to nuclear breakout in 10 years). He knows you cannot slap a 45 percent tariff on goods from China without whacking American consumers. He knows Vladimir Putin and the Chinese Communists are not admirable because they are “strong.” He knows we are not at war with all Muslims, and all Muslims are not Islamist terrorists. He knows we cannot assume a “neutral” position with regard to Israel and the Palestinians, and that, in any case, there will be no peace deal so long as Palestinians refuse to accept Israel as a Jewish state with secure borders.”
  • Aiding and Abetting: How an Uncritical Media Helped Trump's Rise, um ensaio do correspondente-chefe da Spiegel nos Estados Unidos. Eis um extracto (desta vez um pouco mais longo), onde se refere a forma como o candidato explora as redes sociais: “Trump has also understood better than any other candidate how to harness social media in order to circumvent the critical public sphere. On Twitter he now has 6.7 million followers, and over 1 million on Instagram. The New York Times, in comparison, has a total circulation of about 2 million. Trump recently claimed that having his Twitter account was "like owning the New York Times without the losses." He has made it his policy to entertain his followers regularly, sometimes with over 20 tweets per day, allowing him to create his own stream of news.The calculus behind this is simple: With Twitter and Facebook, the traditional media have partly lost their function as gatekeepers. Social networks allow direct communication between politicians and the people. Journalists no longer have a monopoly on information and communication. That isn't a bad development per se. The direct communication made possible by the Internet is, of course, technically democratic -- even egalitarian. But it can also result in the loss of the context, the discourse and the fact-checking normally associated with political debate. It also erodes the filtering function of the media.”

Finalmente, a fechar, uma última referência a um dos editoriais de hoje da edição europeia do Wall Street Journal, Deadlocked in Dublin, onde se constata como está a ser difícil formar governo na Irlanda depois de umas eleições nas quais a coligação no poder perdeu a sua maioria mesmo reunindo mais votos do que a oposição. A comparação tornou-se assim inevitável: “So add Ireland to Portugal and Spain on the list of countries where voters don’t seem to want to take growth for an answer.” Depois de analisar a forma como a economia irlandesa começou a recuperar, deixava a seguinte conclusão: “The lesson for the rest of Europe is that while faster economic growth is paramount, it also matters how that growth is achieved.”

Não deixa de ser surpreendente num mundo onde ainda muitos políticos pensam que a frase “it’s the economy, stupid!” explica tudo. Não explica. Mas chega por hoje. Tenham bom descanso, reencontramo-nos amanhã.

 
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