Começou a chover. Vejo pela janela e leio que a meteorologia lançou um aviso, prevenindo para bátegas fortes e possíveis inundações. Por isso, como por vezes sucede nas edições de sexta-feira do Macroscópio, hoje não me centrarei num único tema, antes vos chamarei a atenção para um conjunto de textos que vale a pena ler.
Uma das funções do jornalismo é ir um pouco mais longe na busca de explicações, um pouco mais fundo nas análises e reportagens, um pouco além da espuma dos dias. Mesmo quando os temas tratados são aquilo que muitas vezes designamos por “fait-divers” – pelo que é por dois “fait-divers” que vou começar. O primeiro deles é a saga de Pedro Dias, o presumível homicida de Aguiar da Beira que há dez dias escapa a todos os esforços das autoridades para o capturarem. A maioria de nós já estará até cansada dos directos em que nada acontece ou dos fóruns onde se debate o que não se conhece sobre a eficiência ou incompetência das autoridades. Por isso o trabalho de Liliana Garcia, O retrato do fugitivo e das suas vítimas, editado pelo Observador, é a vários títulos exemplar por nos revelar alguma coisa, mas com muito significado, sobre este estranho homem. Alguém que, por exemplo, apenas uma semana antes do crime de Aguiar da Beira, entrou num café de Arouca com a filha de 10 anos e emocionou-se ao olhar para uma fotografia dos filhos de Francisco, um amigo que morreu, de forma precoce, aos 39 anos. De tal forma que quem então o viu disse à jornalista que “Ele arrepiou-se todo”. Um homem que “se comove daquela forma, ao olhar para uma fotografia” não podia fazer mal a ninguém.”
Mas parece que fez. E muito mal mesmo. O que significa que sejam ainda muitas as perguntas sem resposta, como saber se estava sozinho quando foi abordado pela GNR ou porque é que a guarda o abordou, não tendo depois ripostado ao primeiro tiro. Estas são algumas das questões a que Sónia Simões procurou responder em Aguiar da Beira. Sete dúvidas que falta esclarecer.
Uma outra história humana que chamou a nossa atenção esta semana foi a de Volodymyr Lavriv, o jovem português que desapareceu em Londres e depois acabou por aparecer num hospital psiquiátrico. A Marta Leite Ferreira, também do Observador, procurou saber quem era este estudante de medicina brilhante e traça o seu retrato num trabalho exemplar, Do sumo de pêssego a um desaparecimento por amor. Descobriu que é um "nerd", um quebra-corações, impulsivo, inteligente, mas atencioso. E que foi a Londres à procura de uma rapariga mas as coisas não correram bem.
O noticiário dos jornais e televisões não se faz só de eleições americanas e metas orçamentais, estas histórias têm também o seu significado e importância, tal como muitos trabalhos que nos ajudam a ter uma vida melhor. Como, por exemplo, ajudando-nos a compreender e lidar com os nossos filhos. Aqui deixo-vos mais duas sugestões:
- Get Your Children Good and Dirty, um daqueles ensaios que o Wall Street Journal costuma publicar aos sábados, precisamente como leitura de fim-de-semana, e que neste caso nos conta como “Researchers are discovering how crucial microbes are to our health and to avoiding a range of newly common diseases. So it’s time to get dirty, eat better and stop overusing antibiotics”. Só posso dizer-vos que eu, a quem os meus pais só dar água destilada a beber até ao dia em que gatinhei, e depois chafurdei, num lago de patos, aqui estou para comprovar o que agora dizem estes investigadores…
- “Deixar um bebé sozinho a chorar durante a noite é como abandoná-lo”, em que a Rita Ferreira entrevistou para o Observador Helen Ball, uma antropóloga e especialista em sono do bebé que lhe explicou a importância de os pais saberem que é normal os bebés acordarem durante a noite e como é mau não atender ao choro. Mais concretamente: “O sono dos bebés não progride de forma linear, o bebé não vai dormindo cada vez mais e mais e mais. Às vezes ele dorme, outras vezes não. O sono do bebé, enquanto ser individual, varia de mês para mês e comparar o nosso bebé com o bebé de outra pessoa não serve de absolutamente nada.” Pois é. Ainda me recordo do que custava acordar várias vezes por noite, mas quando tinha de ser, tinha mesmo de ser.
Vou passar agora a algumas sugestões na área da História e da Ciência, pois o saber não ocupa lugar e não há nada como mantermos sempre viva a curiosidade por sabermos mais para compreendermos melhor. Aqui fica uma meia dúzia de boas leituras de fim-de-semana:
- How the First Farmers Changed History, um trabalho do New York Times sobre como a agricultura mudou a forma de vida das comunidades que viviam no chamado “crescente fértil”, uma região que hoje coincide com o conturbado Médio Oriente. Contudo, há dez mil anos foi lá que a História começou (lá e noutros vales férteis, mais a Oriente). E o curioso é que a invenção da agricultura pode não ter sido obra de uma só comunidade, se bem que o tema seja controverso: “Dr. Zeder said that ancient DNA supports a scenario where farmers across the Fertile Crescent independently invented agriculture, perhaps repeatedly. But Ofer Bar-Yosef, an archaeologist at Harvard, argues that full-blown agriculture evolved only once, and then quickly spread from one group to another.”
- Así se creó el Estrecho de Gibraltar hace seis millones de años, um trabalho do El Pais sobre um estudo com novas revelações sobre a forma como se formou e, depois, como se abriu o arco de Gibraltar, “uno de los accidentes geográficos más peculiares de la Tierra porque tiene la curvatura más cerrada de todos los que existen”. Nele ficamos a saber (quem não sabia) que o Mediterrâneo já foi um imenso lago quase seco, um imenso Mar Morto pois a água dos rios que nele desaguavam não compensava a evaporação, tendo o seu nível descido até 1500 a 1700 metros abaixo do actual. Mas este é apenas um aperitivo para o muito que aqui se pode descobrir.
- Lenin’s long train ride into history sobre a viagem de comboio através da Alemanha que permitiu ao chefe da Revolução Russa chegar a São Petersburgo – ou Petrogado, como então se chamava a cidade –, viagem realizada em condições aparentemente mais confortáveis dos que se pensava. Partindo do livro Lenin on the Train, de Catherine Merridale, André Van Loon recorda-nos que, por exemplo, a viagem pode acontecer porque “Germany thought Lenin’s arrival in Russia could mean an early end to the war, as he had so often denigrated the imperialist-capitalist war effort. In fact, they were spectacularly wrong, because the Bolsheviks proved to be as militaristic as their autocratic predecessors.”
- Alfred Rosenberg: o diabo da caneta, um especial de Bruno Vieira Amaral no Observador que tem como ponto de partida a edição portuguesa de O Diário do Diabo – Alfred Rosenberg e os Segredos Roubados do Terceiro Reich(Temas e Debates). É um texto que permite revisitar a história de uma das figuras simultaneamente mais misteriosas e mais sinistras do nazismo, e seu principal teórico. O sei livro O Mito do Século XX era de leitura obrigatória e nele não só se teorizava o ódio aos judeus, como se fazia a defesa da poligamia, da esterilização forçada e a divulgação de um “quinto Evangelho que alegadamente revelaria a verdadeira natureza de Jesus Cristo.” Ou seja, era também um “ataque duríssimo ao cristianismo moderno”.
- Papa João XXI. O português mais poderoso de sempre antes de Guterres, um ensaio de Armando Norte, um historiador que acaba de publicar a biografia João XXI – O Papa Português (Esfera dos Livros), conta em exclusivo para o Observador a misteriosa história da vida e morte de Pedro Hispano: padre, médico, filósofo, alquimista com fama de mago e Papa que entrou em divergência com D. Afonso III e manteve a excomunhão ao rei português.
- Jérusalem victime d'un révisionnisme historique?, um texto indignado de Gilles-William Goldnadel na revista francesa Le Point a propósito de um conjunto de textos da Unesco onde se pretende negar a ligação ao judaísmo de alguns dos seus lugares santos, incluindo o Muro das Lamentações, em Jerusalém: “le mur des Lamentations, dont tous les archéologues admettent qu'il fait partie du grand temple édifié par Hérode 100 ans avant J.-C., était rebaptisé Al Burak, appellation arabo-islamique, alors même que l'islam est apparu 600 ans après la naissance du Messie des chrétiens”. Tudo isto numa altura em que foram encontrados vestígios de batalha em que romanos conquistaram a cidade, depois de um ataque à terceira muralha que rodeava a cidade, no ano 70.
Esta última referência, já mais ligada a um tema da actualidade, proporciona uma boa passagem para a batalha que se trava em redor de Mossul, a cidade que caiu em poder do Estado Islâmico e que agora vários exércitos coligados procuram reconquistar. As coisas são contudo muito mais complexas, como muito bem se explica em The Terrible Battle for Mosul, um ensaio de Joshua Hammer para a New York Review of Books e também no último Conversas à Quinta, Mossul, Aleppo e a nova “guerra dos 30 anos”, onde discuto a situação no Iraque e na Síria com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, aquela espécie de guerra de todos contra todos que faz lembrar o conflito que, no século XVII, devastou a Europa Central e se prolongou por três terríveis décadas (podcast aqui). No fundo, como escreve Joshua Hammer, “The three main forces advancing toward the city—the Iraqi army, the peshmerga, and the coalition of independent Shiite militias, some backed by Iran—are in conflict about their parts in the coming liberation.”
Para acabar por hoje e por esta semana, nada melhor do que recomendar-vos dois conjuntos magníficos de imagens. O primeiro mostra-nos como Neal Slavin fotografou Portugal em 1968 e voltou para ver (e fotografar) as diferenças, um especial do Observador onde se conversa com o fotógrafo norte-americano e se mostram as extraordinários imagens que ele fez de um país que hoje temos dificuldade em reconhecer, um país cinzento e a preto e branco, um país que aqui se revela com muita sensibilidade mas sem qualquer pieguice neorrealista. Como disse Neal Slavin a Rita Garcia, falando sobre os tempos de então e de agora, “Os portugueses de 1968 mantiveram-se estáveis durante este tempo. Até que aparecem os jovens desta geração e há um corte por causa da Internet, da comunicação, o mundo está mais pequeno, sabemos o que acontece em toda a parte. É esta geração que pode pôr Portugal no mapa. Porque o país ainda é desconhecido para a maioria das pessoas. O que se sabe é que é barato e que a comida é boa.”
A fechar, outro fotógrafo americano, George Steinmetz, autor de um fabuloso ensaio fotográfico para o New York Times, Super Size - The Dizzying Grandeur of 21st-Century Agriculture que nos mostra o gigantismo da produção agrícola e pecuária nos Estados Unidos. Inimaginável. A imagem que reproduzo a seguir é uma pequena amostra do que este trabalho revela sobre a grande agricultura industrializada.
Tenham um bom fim-de-semana, com boas leituras longe da chuva que se anuncia. Até para a semana.
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