sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Macroscópio – “Silêncio”, de Martin Scorsese. Que pensar de um filme que a todos perturba?

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Apostasia. Quantos sabem o que significa esta palavra? Contudo é ela que está no centro do mais recente filme de Martin Scorsese, que estreou a semana passada em Portugal. Apostasia, de acordo com o Dicionário da Academia das Ciências, é o “acto de renunciar a uma religião ou crença, de abjurar da fé”. E é em torno da apostasia de um missionário jesuíta português no Japão do século XVII, o padre Cristóvão Ferreira, que este filme roda, partindo do romance de Shusako Endo com o mesmo nome. Em “Silêncio” retrata-se um período muito particular da vida do Japão, algumas décadas depois da chegada dos portugueses e, com eles, dos missionários jesuítas. É um filme que retrata perseguições religiosas mas que nos fala sobretudo de fé e dos seus limites, sobre um pano de fundo onde se reconhece a impressão digital dos portugueses no longínquo império do sol nascente. Não sendo um filme fácil, para crentes como para não crentes, tem suscitado um interessante debate de que hoje vos trago aqui algumas referências.
 
Comecemos por tentar compreender o enquadramento histórico de “Silêncio”, e esse é o dos Jesuítas no Japão: de pregadores venerados a “bárbaros do sul”. Neste especial do Observador Maria José Oliveira recorda o encontro das duas culturas no século XVI e como estas acabaram nas perseguições do século XVII. Como ela nota, “A chegada dos jesuítas ao Japão permitiu aos japoneses a descoberta de um mundo para além do arquipélago: os portugueses introduziram no país as espingardas, as cadeiras, os botões e os óculos; ensinaram que existiam outros países, outras etnias. Ao mesmo tempo, aumentava o número de conversos. Numa primeira fase, de 1549 a 1570, terão sido convertidos aos cristianismo 30 mil japoneses, segundo os historiadores Arcádio Schwade e João Paulo Oliveira e Costa; nos últimos 25 anos do século XVI ascenderam a 150 mil (…) O clima de intolerância religiosa começou mesmo antes do fim de Quinhentos. O receio de uma eventual invasão por parte dos católicos portugueses e o temor em torno da influência dos jesuítas nos nativos, levou o xógum Toyotomi Hideyoshi a publicar, em julho de 1587, um édito anti-cristão, no qual se ordenava a expulsão dos padres e a proibição do culto.”


No espanhol El Mundo fechou-se um pouco mais o foco em Un jesuita 'perdido' en Japón: la verdadera historia del misionero de Scorsese. É um texto onde se recorda que “El escritor japonés Endo, posiblemente influido por su condición de católico, describe la apostasía de Ferreira como un acto de amor, semejante al de Cristo ofreciéndose a morir en la cruz para la salvación de los hombres, una renuncia a la gloria del martirio para librar a su grey de las espantosas torturas a las que les sometía el tirano Ieyasu. Pero el propio Ferreira, que llegó a decirle a su discípulo: "Si Jesús estuviera en esa situación habría actuado exactamente igual que yo", también se preguntaba a sí mismo si todas esas palabras y razones exculpatorias no serían en el fondo nada más que un hermoso pretexto para justificar su cobardía.”
 
Mais próxima ainda da trama do filme, Isabel Lucas escreveu no Público, em Ao ritmo da dúvida como nas marés, que neste filme sobre a dúvida do homem de fé, “É em silêncio que Rodrigues [um outro jesuita português, este uma figura ficcionada, que vai tentar encontrar e resgatar o seu antigo mestre] olha a crucificação de três camponeses numa praia, as cruzes junto ao mar enquanto a maré sobe para os sufocar e depois desce. Eles não renunciaram. E ele? O ritmo do mar ao ritmo da fé. “É um gesto mais cristão abdicar da própria fé ou persistir nela apesar das consequências para outras pessoas? É a grande questão do filme em termos teológicos”, refere o historiador [Liam Brockey], com Scorsese a levar as suas personagens ao tal ponto limite em que não se é nem herói, nem mártir, nem anti-herói.
 
Já Eurico de Barros, na crítica que escreveu no Observador, “Silêncio”: fé, desesperança e crueldade segundo Martin Scorsese, nota que “Scorsese não demoniza nem menoriza os japoneses e permite-lhes exporem as suas razões pela repressão do cristianismo, não reduzindo a história a um confronto de religiões (ou, pior, de teimosias), e frisando que ele é também cultural, de mentalidades e mundividências (só lhe escapa a dimensão política – era inadmissível para o shogunato haver estrangeiros com crescente poder sobre a população, incluindo já membros das classes mais influentes); e mostra como o cristianismo, para muitos dos nativos convertidos, e para desilusão dos dois jesuítas, se resumia á promessa de um Paraíso que compensava uma vida terrena de miséria e dor.”


Depois deste zoom que nos foi trazendo da grande história da presença dos jesuítas portugueses no Japão até ao enredo do filme de Scorsese, deixem-me voltar um pouco atrás para vos sugerir um grande panorama, uma revisão geral de tudo aquilo para que este filme nos remete, do milagre da expansão portuguesa à história do Japão, do papel dos jesuítas às dúvidas da fé e ao próprio lugar deste filme na cinematografia de Scorsese. Isso é feito de forma especialmente informada e brilhante por Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto em Silêncio. O filme, a memória de Portugal no Japão e a solidão da fé, em mais um Conversas à Quinta, o programa semanal do Observador que eu próprio modero (podcast aqui).
 
Mas centremo-nos agora no tema que domina o filme, e esse é o dos limites da fé em situações de perseguição e dor extrema. Uma boa introdução a este debate é o trabalho de Filipe d'Avillez na Rádio Renascença, A recusa do sofrimento ou um convite à reflexão?, um artigo onde se escutam diferentes perspectivas. Por exemplo: “O que me parece mais interessante no filme, mais desafiador, o que é realmente levar a nossa fé ao ponto de termos de tomar decisões que não são óbvias, mas em que procuramos a maior fidelidade possível daquilo que nos parece ser, naquele momento concreto, aquilo que Deus nos pede e o filme dá-nos um bocado essa indicação”, considera [o padre jesuíta] José Maria Brito.”


Este padre José Maria Brito, que é diretor do gabinete de comunicação dos Jesuítas em Portugal, publicou um dos primeiros textos sobre o filme, no Observador, bem antes da sua estreia. É por ele que começo um apanhado de textos de opinião que reflectem diferentes reacções de católicos a este filme. É um debate que tem passado sobretudo pelo Observador:
  • Silêncio: inquietação e expectativa, do padre jesuíta José Maria Brito, onde se defende que “Mais além da história contada por Shusako Endo, os dados históricos apontam para o provável regresso à fé do padre Cristóvão Ferreira e para o seu martírio em resultado da tortura. Silêncio não é um livro fácil e o filme seguramente não o será. No entanto, entrar nas sombras mais profundas da fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se cala para sempre.” (Observador)
  • Silêncio: não há fé sem dúvidas, de outro sacerdote jesuíta, Miguel Almeida, que nos deixa várias interrogações: “Mas não se pense que a grande questão é simplesmente a de afirmar ou renegar a fé. Rodrigues, apesar do pavor de sofrer como todos nós, não questiona apostatar para se salvar. O panorama adensa-se com uma afirmação bem posta na boca do governador-inquisidor Inoue: “a tua glória é o sofrimento deles”. Este é o ponto crucial. A complexidade da vida, da fé, da honestidade e da integridade de um jesuíta que quer, acima de tudo, seguir Jesus Cristo vê-se armadilhada. Tenho o direito de recusar pisar o fumie com a imagem de Jesus, sabendo que a vida dos meus irmãos, que sofrem os tormentos da tortura, depende deste gesto? Mais, o que realmente me move?” (Observador)
  • Teologia do Silêncio, do padre José Tolentino Mendonça, um texto que reflecte sobre o livro que servir de base ao filme e que também nos deixa inúmeras interrogações: “A fé é um teste interminável à confiança. Endo, porém, obriga-nos a perguntar: a apostasia da personagem central é uma verdadeira apostasia? O grande ato de amor — e por isso também o de fé — é ou não salvar os outros? Jesus Cristo não é maior do que as suas imagens e representações? O amor real não é mais amplo do que a instituição eclesial? O gesto extremo de Rodrigo não o deslocará do estatuto de mártir de um Deus do juízo para o de mártir de um Deus que é misericórdia e perdão? Ou, como algures se pergunta no romance, “alguém pode dizer que os fracos não sofrem mais (por Deus) do que os fortes”? O mártir sofre a morte do corpo, o apóstata sofre a morte da alma: o leitor terá de pensar qual é o martírio mais radical.” (Expresso Semanário, paywall)
  • O duro mistério de “Silêncio”, de Guilherme d'Oliveira Martins, onde se reconhece que “O «Silêncio» é um filme tão difícil como o romance de Endo, recebido com reticências pelos cristãos japoneses, em 1966. Graham Greene considerou, no entanto, o romance uma obra-prima. O cristianismo nipónico é heterogéneo e surpreendente – os mártires coexistem com os cristãos escondidos, os que preferiram o testemunho público e os que mergulharam na sociedade, divididos entre as fidelidades do gesto e do princípio. A dúvida liga-se ao remorso. E Cristo representado no fumie, a pequena placa usada para consumar a apostasia, diz: “Podes pisar-me!”. Afinal, o mistério do silêncio está no centro desta reflexão, como ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima.” (Observador)
  • O que não gostei no Silêncio de Scorsese, de Laurinda Alves, que confessa alguma desilusão: “Este Silêncio convoca ao silêncio interior e obriga a parar para reflectir, não há dúvida. Percebo a multiplicação de tertúlias e encontros públicos organizados para debater o filme e falar sobre o impacto que tem em quem o vê. Mas a mim faltaram-me peças essenciais para entender a substância da veneração das comunidades naquela época. Faz falta perceber porque é que comunidades inteiras aderiram aos ensinamentos e revelações dos missionários ao ponto de aceitarem tudo menos renegar a sua fé.” (Observador)
  • “Silêncio” não é “um retrato histórico”, do professor José Miguel Pinto dos Santos, talvez o texto mais crítico, distanciando-se não apenas do filme como da memória de Cristóvão Ferreira. É um texto cheio de referência históricas precisas: “O que tornou Ferreira notável e conhecido em todo o mundo, de Nagasaki a Edo e do Rio a Cracóvia, foi o de ter sido o primeiro missionário a apostatar. A Cristandade ficou incrédula e os jesuítas em choque. Fizeram-se jejuns e penitências públicas por todo o lado, de Goa a Vilnius. Antes dele outros padres e irmãos, e muitas centenas de leigos, tinham sido submetidos à laje, ao cavalo de madeira, à suspensão, ao caldeirão, à fogueira, à cruz e à fossa sem cederem nas suas convicções relativamente à Verdade. Ferreira tinha sido posto na fossa.” (Observador)
  • Ser cristão no coração da trevas, de Henrique Raposo, uma crónica apaixonada, em forte contraste com o texto anterior: “A fé cristã deve ser uma paixão, e não o sistema filosófico da nossa vaidade ou coerência intelectual. Não, o nosso Deus não está num símbolo material que se pisa, nem sequer está no discurso exterior, está nesta paixão interior e inviolável, uma paixão que nenhum poder terreno pode destruir. Por outras palavras, o silêncio central do filme não é o silêncio de Deus, mas sim o silêncio de Rodrigues e Ferreira que assumem aquela desonra pessoal (serem considerados apóstatas em Lisboa) para assim salvarem pessoas concretas, para serem personificações concretas das lições do Evangelho.” (Rádio Renascença)
 
Relativamente à qualidade intrínseca de “Silêncio”, as opiniões dividem-se. Manohla Dargis, que escreve no New York Times, deixou alguns reparos em Questions and Prayers Go Unanswered in Scorsese’s ‘Silence’: “Silence” is as visually striking as you might expect, but also overly tidy, clean and decorous, despite its tortured flesh, its mud and its blood. There’s a crushing lack of urgency to this story and its telling, perhaps because it took Mr. Scorsese, who wrote the script with Jay Cocks, so long to make “Silence.” It’s disappointing because few directors can engage doubt and belief as powerfully as Mr. Scorsese can, but also because doubt and belief have again set the world on fire.” Na The Atlantic, Christopher Orr escreve, em Silence Is Easier to Admire Than to Love, que “Martin Scorsese’s new film about Christian missionaries in 17th-century Japan is a powerful work that is in part undone by the director’s own passion.” E se Robbie Collin do The Telegraph gostou – Scorsese's brutal spiritual epic will scald – and succor – your soul: “Grace may be the toughest of all spiritual conditions to capture on film: it’s why so few directors even attempt it. Scorsese, who spent a year in a seminary before making movies, has never shied away from matters religious – themes of guilt and redemption run through” –, já Nigel Andrews do Financial Times quase detestou – Silence, ‘Passionate ferocity’“There’s terrific acting, but Scorsese’s tale of persecuted Christians is a long slog”.


A terminar apenas mais uma referência, esta para uma outra história de Igreja perseguida, esta bem mais próxima de nós. Em Não foi só no Japão. A história do jesuíta português perseguido pela Indonésia em Timor, João Francisco Gomes conta num especial do Observador uma história tão forte como pouco conhecida:
Quando o padre jesuíta português João Felgueiras chegou a Timor Leste, trezentos anos depois, em 1971, não sabia bem o que o esperava. Mas acabou por ter uma vida em alguns aspetos semelhante à de Rodrigues e Garupe — sobretudo depois da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia, em 1975. João Felgueiras viveu com um povo que era perseguido pelos indonésios, administrando-lhes sacramentos, ouvindo confissões, celebrando missas em segredo e fugindo com populações inteiras para as florestas. 
 
Desta vez não me despeço apenas com votos de bom descanso e boas leituras. Acrescento uma sugestão: procurem ver este filme e formem a vossa própria opinião. É uma sugestão que deixo já para o próximo fim-de-semana.

 
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