No momento em que escrevo este Macroscópio os dois candidatos à Presidência da França, Emmanuel Macron e Marine Le Pen, devem estar a preparar os últimos argumentos para o debate desta noite (começa às 20h de Lisboa e será seguido em directo no Observador pela Ana França, que alimentará um liveblog). Esse debate, que deverá durar três horas (sim: três horas), é por muitos vistos como decisivo para perceber se Marine Le Pen, que aparece muito atrás nas sondagens, ainda pode alimentar a esperança de uma surpresa no próximo domingo. Depois dos resultados inesperados no referendo do Brexit e na eleição de Trump, a maior parte das análises são cuidadosas. Vale a pena olhar para algumas delas, nomeadamente algumas que ajudam a perceber o estranho cenário francês.
A abrir, sugiro que passem os olhos por Macron v Le Pen: battle of the policies, um belo trabalho do Financial Times onde, com a ajuda de um grafismo sugestivo (de que reproduzo um exemplo abaixo) se trata de situar os dois candidatos relativamente a temas como a Europa, a política orçamental (mais estatista ou mais defensora de um Estado pequeno), a reforma laboral, o comércio internacional (livre-comércio ou proteccionismo) e, por fim, a segurança e defesa, as únicas áreas onde há ainda assim alguma aproximação nas plataformas eleitorais dos dois candidatos.
No entanto já se sabe que muitos eleitores nem olham para os programas eleitorais, sendo mais influenciados pelo que sentem que “corre mal”. E para perceber o que corre mal o diário alemão Handelsblatt foi até uma região de fronteira da França com a Alemanha, mais exactamente à disputada Alsácia-Lorena. EmFrance's Valley of Political Desolation os seus repórteres contam porque é que essa é uma das regiões francesas onde Marine Le Pen tem mais apoio. Em muitos aspectos é uma história de decadência económica e social a que já nos referimos, citando outras reportagens, em anteriores newsletters, mas que neste caso nos surge sob um olhar que recorda aquele que também era possível naqueles estados americanos que viraram eleitoralmente a favor de Donald Trump: “There was a time when things were going well for workers in the French region known as the Grand Est, nestled between Belgium, Luxemburg, Germany and Switzerland. Steel mills and coal mines were producing at full capacity after the end of World War II, providing thousands of families with a steady income. Workers there were steadfast voters for left-wing labor parties. But drops in global prices and declining demand for French steel saw the industry suffer. The first blast furnaces started closing in the 1980s. From there on, the decline has been steady, with one of the last sites shutting down in 2013.”
A percepção de que, apesar de toda a riqueza da França, e de ser um dos países do mundo onde pode ser mais confortável viver, Le Pen ainda pode causar uma surpresa leva vários analistas a falarem disso abertamente apesar da enorme diferença de apoio que continua a ser medida pelas sondagens. Em How Le Pen could win, Nicholas Vinocur, do Politico, explica que “Marine Le Pen needs a perfect political storm to help her win the French presidency on Sunday”, mas que essa “tempestade perfeita pode sempre acontecer, até porque “Whatever the odds, Le Pen will fight hard until the last minute”. Nesse texto quais as cinco condições necessárias para se formar essa “improbabilidade”, isto é, o que Marine Le Pen tem de conseguir para virar as sondagens. São elas: 1. A final sprint with a clearer message, corrigindo os erros que marcaram o final da primeira volta; 2. Convince conservatives to stop worrying, ou seja, convencer os eleitores de Fillon que não devem ter medo das suas políticas, até porque procura apresenta-las de forma menos radical; 3. Persuade far-left voters to sit out the next round, no fundo conseguir que os eleitores de Mélechon fiquem em casa em vez de irem votar em Macron; 4. Bet on more Macron mistakes. Win live TV debate, algo que hoje ao fim da noite já saberemos se conseguiu, sendo certo que Macron fez alguns erros nos primeiros dias após a primeira volta, a começar por um jantar com celebridades num restaurante de luxo de Paris; e 5. Cross fingers — and hope for a ‘Black Swan’ event, o que pode acontecer por via de um escândalo que envolva Macron (como o que estragou a campanha de Hillary Clinton nos Estados Unidos) ou de uma ocorrência catastrófica como um grande atentado.
Uma boa leitura complementar é seguir os argumentos de Olivier Tonneau, um académico que apoio o candidato da esquerda radical na primeira volta, e que no Guardian defendeu queEmmanuel Macron has taken French voters for granted. Now he risks defeat. Eis uma parte da sua argumentação: “Macron has just days to take stock of their anger and adopt the only strategy that can secure his victory against Le Pen: showing humility, and reducing the severity of his programme. The only problem is that he might not be aware how serious the situation is. There is a certain Dangerous Liaisons charm about the microcosm of journalists, intellectuals and politicians who shape (or think they shape) the political destiny of France. According to my lunch companion, Macron has infinite confidence in his charisma and is blissfully unaware of the threat.”
Esta sobranceria das elites parisienses pode, de facto, afastar muitos eleitores do voto, sendo que uma abstenção elevada é um dos poucos caminhos que podem tornar possível uma vitória de Le Pen, como Yasmeen Serhan, da The Atlantic, explica em French Elections 2017: Who Will Win? – Abstention could affect the outcome. É um texto que faz uma boa recapitulação do que pode influenciar o voto dos eleitores, com a ajuda de David Lees, um investigador da Universidade de Warwick especializado em política francesa. E a conclusão faz pensar: “There’s an apathy, there’s a complacency, and there’s a sense that ‘Well [Jean-Marie Le Pen] didn’t do it in 2002, so why can [Marine Le Pen] do it in 2017?’” Lees said. “That’s a slightly worrying attitude.”
Outro colunista a chamar a atenção para algumas das disfunções que esta eleição está a revelar é Carlos Yárnoz que, no El Pais, escreveu sobre La enfermedad de los franceses. Depois de lembrar que “Los mismos que convirtieron a Hollande en un proscrito prefieren en el Elíseo a su heredero político”, conclui que “El malestar que sufre Francia es una enfermedad de ricos. Es el resultado de una esquizofrenia colectiva. Los mismos que culpan de su infelicidad a François Hollande hasta convertirlo en el presidente más impopular de la V República eligen a su heredero político. Y el país que no hace reformas sino revoluciones apuesta por el único candidato reformista.”
Seja lá como for, e para não deixar os meus leitores sem um contraponto mais optimista, recorro a terminar este bloco a um texto de um velho conhecido nosso, Nate Silver, o especialista em sondagens do FiveThirtyEight, uma das vozes que mais citei durante a contagem decrescente para as eleições americanas e que sempre fi deixando certeiros alertas. Desta vez, em Marine Le Pen Is In A Much Deeper Hole Than Trump Ever Was, ele explica que a diferença nas sondagens entre Macron e Le Pen parece ser demasiado grande para podermos esperar surpresas. Em concreto, “while there were plenty of precedents for a polling error large enough to elect Trump, there aren’t all that many examples of a 26-point polling error, which is what Le Pen would need.” Bem sei que entretanto esta margem já diminuiu, mas mesmo assim a precisão das sondagens francesas na primeira volta não é de molde a se anteverem grandes reviravoltas. Até porque – e este é um dos pontos interessantes da análise de Nate Silver – nada indica que se possa assistir a um fenómeno de “voto escondido” capaz de favorecer a candidata da Frente Nacional. Não é para isso que aponta a experiência de anteriores eleições: “in France the National Front has variously underperformed and outperformed its polls. In five elections since 2012, the National Front has averaged 21 percent in polls and finished with 21 percent of the vote.”
Mudo agora de registo para começar por vos propor dois retratos contrastantes, ambos críticos, dos dois candidatos:
What’s the matter with Europe’s new emperor? é uma peça de Jonathan Fenby na Spectator onde se considera que “Emmanuel Macron looks certain to be president of France, but this young pretender is marching towards disaster”. Para aquele colunista o estilo Macron está longe de ser sedutor: “Laurent Joffrin, editor of the left-wing Libération, conjured up a new political substance,Macronite, as a 21st-century version of Teflon — or the Gallic equivalent of Blairite. Macron deftly deflected accusations that his policies were like a box of chocolates: neatly arranged but with soft centres. He promised to cut the budget deficit while reducing taxation, but avoided Fillon’s Thatcherite rigour.”
Who Is Marine Le Pen? é uma interessante crónica de Christine Ockrent, uma das jornalistas mais conhecidas de França, e que neste seu texto para o Project Syndicate começa por recordar como tomou pela primeira vez contacto com Marine Le Pen, num debate televisivo que moderou em 2002. Descreve depois como a filha de Jean-Marie Le Pen se foi distanciando do legado do pai e mudando a sua imagem: “Le Pen’s success reflects a kind of ideological laundering, which she has conducted with her closest adviser, Florian Philippot, a polished, media-savvy “énarque,” who swears he decided to join Le Pen for her talent, not her ideology. Indeed, the pair has coated the FN with several layers of fresh paint – all blue, white, and red, of course.” Mais: “Thinner, better dressed, and more soft-spoken, she developed a kind of charisma that enabled her to appeal to a wider variety of supporters, from unemployed young people to the disenchanted middle class, from policemen wary of losing control to second- or third-generation immigrants who wanted to close France’s doors to foreigners.”
Termino com um trabalho de fundo, mais antigo – foi publicado ainda antes da primeira volta destas eleições – mas que tem a vantagem de sistematizar o essencial dos males franceses. Trata-se de Why France Is Revolting Against The Ancien Regime, umlongo ensaio de Michel Gurfinkiel na Standpoint que é muito difícil resumir, mas de que destaco esta significativa passagem: “Geographer Christophe Guilluy, became an instant celebrity in 2010 with his claim in Fractures Françaises that the nation was now split between a small, wealthy and thriving “Elite France” that lived and worked in the gentrified big cities and a “Peripheral France” that comprised “60 percent of the French population and 80 percent of the working class” and was relegated to the outer suburbs and the post-agricultural countryside. Elite France, for Guilluy, was one of globalisation’s big winners, whereas Peripheral France saw globalisation as its downfall. Elite France was in love with the free market, value-added immigration and multiculturalism, and the European Union; Peripheral France was longing to go back to the Gaullist era semi-statist economy, the welfare state and the nation state. Here again, the mainstream parties were not bold or imaginative enough. Hence the spectacular progression of the National Front under Marine Le Pen”.
E por agora é tudo, tenho também de ir ver o debate que pode ser decisivo. Veremos que novidades nos trará o resto desta semana. Tenham bom descanso e espero que possam aproveitar algumas das leituras que sugeri.
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