quarta-feira, 3 de maio de 2017

Macroscópio – A dívida, o relatório e o povo que é sereno. Demasiado sereno?

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Novembro de 1975, Terreiro do Paço. O primeiro-ministro do IV Governo Provisório discursava a uma enorme multidão tendo Mário Soares à sua direita e Francisco Sá Carneiro à sua esquerda. De repente estoiram alguns petardos no meio da praça. É nessa altura que Pinheiro de Azevedo repetiu várias vezes – cinco vezes – uma das frases que passariam à história da revolução portuguesa: “O povo é sereno, o povo é sereno”. Mais: “É só fumaça, o povo é sereno”.
 
Lembrei-me deste episódio a propósito da forma como foi recebido, e quase não foi discutido, o relatório sobre a dívida pública que andou longamente a ser preparado por um grupo de deputados do PS e do Bloco de Esquerda, mais alguns professores de Economia. E confesso que me lembrei dele ao ler a crónica de Nuno Garoupa no Diário de Notícias de hoje sobre o que designa como A passividade da sociedade portuguesa. É certo que o colunista não escreve sobre esse relatório, antes sobre o facto de os contribuintes portugueses já terem pago “quase 15 mil milhões de euros para salvar a banca do colapso”, de haver suspeitas de fraudes e crimes e de a contabilidade das condenações transitadas em julgado ser “BPN-0; BPP-0; BES-0; Banif-0; CGD-0; Montepio-0; swaps-0”, e de não ter ocorrido nenhuma revolta, ou mesmo ter sido realizado um estudo académico sobre o que se passou. Nuno Garoupa fala depois dos riscos de um dia essa apatia acabar – “não esqueçamos que o povo de brandos costumes foi uma reinvenção propagandística do António Ferro, há 80 anos” – e não é possível deixar de pensar no que se prometeu que se ia fazer com a dívida pública e aquilo que agora se escreveu naquele relatório.
 
(Para conhecimento dos leitores do Macroscópio, ele pode ser lido na íntegra aqui, tendo sido esta a síntese preparada pelo Observador. É também interessante recordar o que eles defendiam antes do relatório sobre a sustentabilidade da dívida.)
 
No dia em que se soube que a dívida pública subiu para 243,5 mil milhões de euros em Março, vale a pena procurar o que apesar de tudo se foi escrevendo por um relatório muito aguardado e que parece não só não agradar a ninguém, como terminar sem que alguém assuma a sua paternidade. Como notou Pinho Cardão no Quarta República, depois de 15 versões diferentes, “o governo já declarou que não o adopta, o próprio coordenador não se revê nele,  o representante do Bloco logo referiu que as propostas do Relatório não eram as do Bloco e o PS, apertado na geringonça, deu uma no cravo e outra na ferradura”. Enfim, não é um resultado famoso.
 
Sem expor em detalhe os diferentes pontos de um relatório que propõe medidas que podem ser tomadas por Portugal mas pouco valem e medidas que não dependem de Portugal e que valem quase tudo (nomeadamente limitar a taxa de juro dos empréstimos europeus a 1%, um limite que os fundos da União que nos emprestaram dinheiro já disseram não ser viável – Regras do fundo de resgate europeu não permitem redução do juro proposta por PS e Bloco), recolhi mesmo assim um conjunto de textos que ajudam a pensar num documento que, ainda há uns meses, era apresentado como podendo ser o alfa e ómega das mudanças políticas de que Portugal necessitada para se libertar de vez dos constrangimentos financeiros:
  • Dívida pública. Se não dá para sonhar, resta arriscar?, de Ricardo Santos aqui no Observador, talvez a análise mais completa, ponto por ponto, do documento. Pequena passagem, onde explica porque é impossível a redução da taxa de juro dos empréstimos europeus: “Portugal tem dois empréstimos europeus, um do EFSM (União Europeia) e outro do EFSF (área do euro). A ambos os instrumentos já emprestam a Portugal com uma taxa de juro variável praticamente igual ao seu custo de financiamento. Para emprestarem a Portugal a uma taxa fixa de 1% a 45 anos, teriam de ter prejuízo e ser recapitalizados pelos seus acionistas, os Estados membros.”
  • Reestruturar a dívida: A montanha pariu um rato?, de Joaquim Miranda Sarmento no jornal online Eco, uma análise também com algum desenvolvimento (o autor publicou no mesmo site um segundo texto, Jogar à roleta russa com a dívida pública?, também bastante interessante). Do primeiro texto destaco a passagem referente a uma proposta do relatório com que todos concordaram, a de antecipar pagamentos ao FMI. Só que... “Foi uma pena que o atual Governo tenha abandonado essa política. Se tivesse reembolsado os seis bis previstos para 2016, ao invés de 1.5 bis, teria poupado 120 milhões euros/ano (4,5 bis vezes 3%, que é a diferença entre os juros do FMI a 4% para uma maturidade média de cinco anos e a taxa de juro a cinco anos em 2015 de 1% nos mercados).”
  • É para cortar a dívida ou aumentar a despesa?, de Paulo Ferreira no mesmo Eco, é uma análise onde se discute sobretudo o expediente de mudar a política de provisões do Banco de Portugal para libertar mais recursos para o Orçamento do Estado. O que o jornalista considera negativo: “Este recurso ao Banco de Portugal com o objectivo de ajudar a controlar a dívida, a avançar, terá outro efeito perverso. Se entrar na contabilização do défice anual, o que vai acontecer é que vai reduzir os esforços que estão a ser feitos para equilibrar o orçamento. Serão cerca de 820 milhões de euros por ano que deixarão de ser poupados na despesa, pelo menos em grande parte.”
  • Fez-se luz!, de João Vieira Pereira no Expresso de sábado passado (paywall), uma crónica onde notou que “A primeira grande vitória deste relatório é a inversão de marcha no caminho para o abismo que alguns economistas do Bloco de Esquerda e outros do PS resolveram fazer, aproximando-se do que defendo há muito tempo (nunca pensei que tal dia chegasse): precisamos de mais tempo para pagar e melhores condições para o fazer e uma solução para a dívida tem de ser feita e negociada com os nossos parceiros europeus”. Mais: “Este relatório podia ter sido escrito por Vítor Gaspar, ou outro qualquer economista mainstream, já que defende o mesmo que o ex-ministro das Finanças andou a fazer quando herdou o programa de ajustamento: renegociar prazos e juros (naquela altura à boleia da Grécia).”
  • Bem-vindo à realidade, Bloco de Esquerda, uma crónica de Alexandre Homem Cristo no Observador onde é, de alguma forma, mais directo na sua leitura política das conclusões deste relatório, sobretudo no que estas implicam para a identidade e estratégia dos bloquistas: “É uma adesão por conveniência, ainda por consolidar e meramente pragmática, de quem se mostra disposto a ceder na sua identidade ideológica em troca de acesso ao poder. E isso é positivo, já que é, de facto, essa a regra da negociação e do jogo democráticos.”
  • A dívida nas nossas mãos, um editorial de André Veríssimo no Jornal de Negócios onde se defende que “O relatório sobre a sustentabilidade da dívida tem valor enquanto reflexão sobre as dinâmicas que levaram ao sobreendividamento do Estado e suas consequências. Como roteiro para resolver o problema é quase irrelevante: fatalidade de se tratar de um texto político.”
  • Querem provocar os especuladores contra Portugal?, de Pedro Braz Teixeira, de novo no Eco, texto que discute duas das propostas do relatório, as de : baixar o prazo médio da dívida e de diminuir a almofada de segurança, que classifica como “puro disparate”: “Ainda não se sabe o efeito de deixarmos de ter o apoio do BCE, mas é evidente que vamos passar a estar numa posição mais frágil. O que é evidente é que esta é a pior altura para baixarmos a margem de segurança e pode-se estar a criar uma oportunidade para os especuladores atacarem a dívida portuguesa.”
 
Quanto aos subscritores do documento, destaque ainda para os que já responderam a algumas destas críticas, caso de Francisco Louçã – 70 mil milhões de migalhazinhas –, que considera que houve “viragem histórica assinalável” uma vez que “o PS se compromete com uma proposta de reestruturação da dívida”. Quanto a Ricardo Cabral fez no Público a exposição mais detalhada da lógica da proposta, defendendo que Menos é mais, em questões de consolidação orçamental.
 
Não posso, por fim, deixar passar em claro um debate que, sendo bastante técnico, acabou por mobilizar boa parte da discussão pública: o sobre a natureza das provisões do Banco de Portugal, a tal almofada aonde se pretende ir buscar umas centenas de milhões de euros para alimentar o Orçamento de Estado. Para compreender melhor o que está em causa neste movimento recomento a leitura de Rodrigo Adão da Fonseca em O Insurgente: Sobre a natureza das provisões e da noção de risco prudencial. O esta nota defende é que aligeirar os critérios de prudência numa altura em que o nosso processo de consolidação orçamental não está concluído pode corresponder a descapitalizar de forma perigosa o Banco de Portugal.
 
Seja lá como for, depois de tantos anos em que uns defendiam que era necessário denunciar unilateralmente a dívida ou deixar de pagar os seus juros e outros garantiam que tremeriam as pernas aos banqueiros se Portugal fosse firme, só um “povo sereno” não se choca nem se indigna quando confrontado com este relatório sobre o qual Pinheiro de Azevedo talvez pudesse ter dito que, afinal, “é só fumaça”.
 
O que não fumaça, isso é seguro, é a forma como o BCE tem sustentado a dívida portuguesa, um apoio numa dimensão que surpreendeu mesmo um dos nossos melhores bloggers de economia, Pedro Romano do Desvio Colossal. Como ele escreve em Dívida do Estado (e os seus credores), baseando-se num outro documento a que pouco se ligou – a nota de análise das contas públicas de 2016 do mal-querido Conselho das Finanças Públicas – “Eu sabia que peso do BCE nos fluxos de financiamento brutos do Estado era considerável, mas confesso que não tinha bem noção das proporções. Em 2016, por exemplo, foi o sector que mais dívida pública adquiriu – mais de 10 mil milhões de euros.” O que vai acontecer quando esse apoio acabar ninguém sabe muito bem.
 
E por hoje é tudo. Com uma semana muito dominada pela segunda volta das eleições francesas, cá estaremos para falar delas. Até lá, bom descanso e boas leituras. 

 
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