segunda-feira, 15 de maio de 2017

Macroscópio – Para além dos três “efes”

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

É verdade. Sábado parece ter sido “escrito por um romancista, daqueles que não se preocupam com a verosimilhança, que não se importam de guardar todos os clímaxes improváveis para a mesma página”, como escreveu Bruno Vieira Amaral no Observador. Ou, dito de outra forma, “esgotámos o nosso stock de improbabilidades para os próximos séculos”. E não é por ser cínico que não regresso hoje ao dia dos três “efes”, a a velhíssima trilogia tão bem evocada por Alexandre Borges na crónica O Salvador e a Senhora do Marquês, o texto mais partilhado de toda a internet este domingo. Vou dar descanso a estes temas e optar por um caminho muito diferente. Já vão ver como.
 
Primeiro, para vos chamar a atenção para a importante eleição que ontem teve lugar no mais populoso dos estados da Alemanha, a Renânia do Norte-Vestefália, umas eleições ganhas pela CDU de Angela Merkel. O significado político deste resultado é enorme: não só votam neste estado um quinto dos alemães que, em Setembro, terão de escolher se Merkel sucede a Merkel, como é deste estado o seu opositor social-democrata, Martin Schulz, como se tratava de um bastião do SPD (que governo este estado em 46 dos últimos 51 anos). Na leitura dos analistas depois deste resultado já não pode falar-se de “efeito Schulz” e a chanceler parece mesmo destinada a conseguir um quaro mandato consecutivo. Deixo-vos duas dessas análises:
  • Schulz fairytale turns into a nightmare for Germany’s SPD , a análise de Wolfgang Munchau no Financial Times (texto Premium, só para assinantes). Pequena passagem: “There are still four months to go until the federal elections, which is a long time even by the standard of German politics. But it would now take a miracle for the SPD to turn this around once again. Mr Schulz would have to acquire a programme in a hurry. The new French president, Emmanuel Macron, built up his agenda over a period of years. No comparable work has taken place within the SPD. The rise in the poll ratings for the SPD was not a gift, but a short-term credit that has now expired. The shift in German politics is so extreme — for now — that the CDU may end up being able to form a coalition with the liberal Free Democcrats and the Greens at federal level, leaving the SPD in opposition. In that case, expect a shift to right: continued fiscal discipline, no softening on Germany’s hard line on eurozone reform, and less readiness to engage with Mr Macron. Genuine eurozone reform will have to wait until the SPD is in power, with an explicit mandate to carry it out. That moment just receded further into the future.”
  • State Election Loss Has Merkel Challenger on the Ropes, a análise da revista Der Spiegel: “The new SPD leader, celebrated as a savior when he arrived in January, now finds himself in the position of trying to convince his party, and German voters at large, that Merkel's victory in September is not inevitable. And that will be extremely difficult. Indeed, he and the SPD will likely need a minor political miracle.”
 
Depois desta rapidíssima incursão pela actualidade, a minha opção de fundo de hoje foi para a selecção de um conjunto de textos longos, sobre temas variados, unidos apenas pela sua qualidade. Se esta noite as televisões ainda continuarem cheias dos três “efes”, aqui ficam algumas alternativas de leitura:
  • Meia Culpa - A história completa do maior massacre de sempre, é uma reportagem/investigação de Miguel Pinheiro e João Francisco Gomes, do Observador, na qual se revisita com a ajuda de recursos multimédia o crime de 16 de abril de 1997, em Amarante, uma cidade que não voltou a ser a mesma depois daquela trágica madrugada: “O ataque ao Meia Culpa foi um dos golpes que acabaram em definitivo com a vida noturna de Amarante, antes tão popular, garante hoje António Almeida. Atualmente a viver e a trabalhar em Espanha, o antigo dono do Meia Culpa só lamenta que tudo tenha acabado desta forma. “Eu podia estar muito bem na vida financeiramente. Na altura dava para todos, o negócio em Amarante dava para todos”, comenta. “Amarante teve vida, era das cidades do norte de Portugal que tinha mais vida, mas perdeu muito com o incêndio no Meia Culpa. Hoje, Amarante é bom para dormir. Já não é nada.”
  • Suicidas do catolicismo, uma evocação de João Bénard da Costa a propósito do oitavo aniversário do seu desaparecimento, um belo ensaio de Henrique Raposo (com paywall). Eis passagem interessante, relativa à conturbada relação de Bénard com o catolicismo: “1958-1959 foi o ponto sem retorno. A ideia de que aqueles que iam à missa não podiam criticar Salazar começou a fazer parte do passado, até porque esta revolta era alimentada por uma geração de escritores católicos franceses que procuravam anular a traição de Maurras e Barrès. Falo de Maritain, claro, mas também de Mauriac e sobretudo Bernanos. Bernanos foi para católicos como Bénard aquilo que Orwell foi para jovens de esquerda como Vasco Pulido Valente. Se Orwell ensinou a Pulido Valente que “ser de esquerda” não era o mesmo que apoiar a violência jacobina (Espanha) ou comunista (URSS), Bernanos ensinou a Bénard que “ser católico” não era o mesmo que apoiar os ditadores que alegadamente defendiam os valores cristãos (Franco, Salazar). Com Orwell e também com Camus, Pulido Valente procurou restabelecer a ligação entre esquerda e liberdade, recusando o caminho totalitário da maioria dos intelectuais de esquerda desta geração. Com Bernanos e também com Maritain e Mauriac, Bénard e companhia procuraram restabelecer a ligação entre catolicismo e a liberdade, recusando a fusão entre catolicismo e salazarismo.”
  • Un himno sin letra y otros símbolos patrios que dividen a los españoles, um interessante texto onde o El Pais onde vários historiadores revisitam alguns símbolos espanhóis que, por Espanha ser composta por várias nacionalidades e memórias muitas vezes conflituantes não têm, nunca tiveram, o mesmo grau de consenso que os nossos símbolos nacionais, para citar só um exemplo. O hino espanhol, por exemplo, é só música, não tem letra: “Todo el mundo era consciente de que la ausencia de letra de la Marcha real impedía emocionar al público, así que hubo varias propuestas para ponerle una; pero ninguna se oficializó, por desidia o por desacuerdos internos. Hoy esa carencia podría verse como una ventaja, dado el bochorno que producen algunos himnos nacionales, guerreros y anacrónicos”, notou Javier Moreno Luzón. Tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe de nós.
  • Europe’s new political divisions é um dossier de fundo preparado por Tony Barber, do Financial Times, sobre as novas clivagens que estão a surgir na Europa e que já não seguem as linhas de fractura do passado – para além da divisão clássica esquerda/direita, ou das clivagem norte/sul dos tempos da crise, emerge agora uma nova divisão leste/oeste em torno dos valores democráticos e nacionais: “The contrast between the warmth with which western Europe greeted Mr Macron’s victory and the more muted response in parts of central and eastern Europe underscores a widening gap between many of the older EU states in the west and newer ones in the east. There is no neat line that divides Europe down the middle, but clashing national interests, values and visions of the future create the risk that some countries in each half of the continent will drift in opposite directions, endangering the EU’s unity over the long run. The frictions between west and east are part of two emerging trends that disturb the European politicians who still invoke the objective of a “Europe whole and free” outlined by former US president George HW Bush in May 1989, as the cold war drew to a close.”
  • The Doctor Will See Your Iguana Now, o texto que escolhi para fechar a selecção de hoje é uma reportagem surpreendente sobre mais um lado surpreendente de uma cidade sempre surpreendente, Nova Iorque. Uma Nova Iorque rendida aos animais de estimação – é a “pet city” –, sendo que estes não têm de ser cães ou gatos, papagaios ou hamster, uma vez que tudo serve. No Center for Avian and Exotic Medicine recebem-se as mais variadas criaturas, daquelas que não se imaginava a partilhar um apartamento com vista para o Central Parque, mas que partilham mesmo: “On this Thursday morning not long ago, patients were stacked up in their cages: a guinea pig with hair loss, a rabbit unable to move its bowels, and the irascible iguana, now relaxing behind a sign that said “Use Caution Lunges.” Others waited in recovery: a hedgehog newly minus one eyeball, and a chinchilla who sacrificed a leg to the bars of her cage.” Talvez fosse altura de alguém traduzir para os donos de tão variadas “pets” a crónica Desumano é equivaler o cão ao homem, de novo de Henrique Raposo, mas agora na Renascença.
 
Mas por hoje é tudo. Não perturbo mais aquilo que parece ser a imensa felicidade de tantos – a felicidade que naturalmente partilho, e que me tocou muito no passado sábado, não escondo –, mas sem deixar de procurar ter os pés bem assentes no chão. De facto é mesmo possível que tenha esgotado “o nosso stock de improbabilidades para os próximos séculos”.
 
Bom descanso e boas leituras, mesmo continuando os festejos e a alegria. 

 
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