quarta-feira, 21 de março de 2018

Macroscópio – A reeleição de Putin não nos é indiferente, mesmo ficando Moscovo muito longe de Lisboa

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Os que se lembram de como era o dia a dia das notícias nos tempos da Guerra Fria – e serão cada vez menos os que se lembram, pois já lá vão quase 30 anos sobre a queda do Muro de Berlim – não esqueceram a forma como tudo, no Mundo, parecia mais fácil de perceber. Ou se era pelo Ocidente, pela democracia liberal e pelos Estados Unidos, ou se era pelo comunismo e pela URSS. Isso tanto valia quando se contabilizavam as medalhas nuns Jogos Olímpicos como quando se queria sabem quem os “bons”, ou os “nossos”, num qualquer conflito no mais remoto país de África ou ilha das Caraíbas. Agora tudo parece mais nebuloso, por boas e más razões. A recente reeleição de Vladimir Putin para um quarto mandato como Presidente da Rússia veio tornar isso bem evidente.
 
A primeira questão, perturbante, é que formalmente se tratou de uma eleição “competitiva”, com vários candidatos da “oposição”. Os russos até votaram em massa, e em massa deram a Putin uma maioria esmagadora. Um exercício de democracia? Vamos mais devagar: na Rússia vota-se, há vários partidos, mas isso não chega para fazer do país uma democracia: é que onde falta liberdade e mecanismos de limitação e controle do poder executivo sobra autoritarismo e ambições autocráticas. Alguns artigos que ajudam a perceber melhor como Putin é um líder incontestado:
  • Um dia a ver o canal de propaganda do Kremlin. Como é o mundo na televisão de Putin? é um especial do Observador, um trabalho de João Almeida Dias que se pôs a ver a televisão russa e nos dá reveladores exemplos de como se manipula a informação: “Enquanto dão as notícias mais recentes da crise diplomática entre o Reino Unido a Rússia, a RT usa como som de fundo uma música tensa, com tambores a tocar em tom de ameaça. Por momentos, lembro o BBC Vida Selvagem, onde os leões perseguiam as zebras. Na RT, os leões são os países do Ocidente e a zebra é a Rússia”.
  • How Russia Meddled in its Own Elections, um texto Alina Polyakova, da Brookings Institution, onde se revela, por exemplo, como se utilizou a internet para manipular os sentimentos do eleitorado: “In 2015, when an undercover Russian investigative reporter infiltrated the IRA [Internet Research Agency], it employed approximately 400 individuals. Today, it has ballooned to almost 1,000 employees and has moved to a new office three times the size of its original space. This expansion was planned in preparation for the March presidential elections. In the lead-up to the vote, the 900 or so Russian trolls, state-owned media outlets, and government officials, together deployed a coordinated and structured disinformation campaign. It had several themes: to deny any allegations of election fraud, to scare or entice Russians into voting to bolster turnout, and to blame all signs of dissent or corruption on the West and the Russian opposition (which, the Kremlin believes, the West controls).”
  • A fourth term for Russia’s perpetual president, a explicação pela The Economist que não é muito difícil ser eleito quando se impede o principal adversário de ir às urnas e se tira partido dos crimes que se cometem para potenciar a propaganda: “Mr Putin will take his victory as a mandate to continue his current course, one defined in large part by confrontation with the West. In the run-up to the vote, Mr Putin used his state-of-the-union address to engage in nuclear sabre-rattling. Recent weeks have been filled with news of the poisoning of an ex-spy, Sergei Skripal, and his daughter in Salisbury in Britain. His campaign spokesman, Andrei Kondrashov, said the accusations helped to unite the Russian people and generate higher turnout: “We need to say thank you to Great Britain because they again misread the Russian mindset.” Following the vote, Mr Putin dismissed the notion of Russian involvement as “nonsense”.”
  • A “máquina perfeita” do Kremlin para anular os adversários de Putin, mais um especial do Observador, este de Cátia Bruno, com muitos detalhes sobre a manipulação dos órgãos de informação e os limites à acção da oposição, alguns deles bem reveladores: “A receita é igual à de sempre: nada de campanha oficial, mas reforço das atividades como Presidente, sobretudo de caráter militar. Estas são amplamente divulgadas pelas televisões, o que significa que, mesmo não fazendo campanha, Putin é sempre o rosto mais visível em todos os lares russos. No dia das eleições parlamentares de 2003, quando o Presidente foi votar, a sua mulher contou aos jornalistas como o marido tinha passado a noite em branco a ajudar a cadela da família, Koni, a parir. “A notícia sobre os cachorros teve mais cobertura do que os partidos da oposição que, no final do dia, tinham sido esmagados.”
 
Eleições travadas nestas condições não podem ser consideradas realmente livres e leais, mas o putinismo também não pretende ser apenas a versão russa de uma democracia de tipo ocidental, com respeito pelos direitos humanos, das minorias e das oposições. Isso mesmo recordava, no Público, Jorge Almeida Fernandes num texto em que também se interrogava sobre o dia seguinte, Começa amanhã a era pós-Putin: “O “putinismo” assenta na concepção do “Estado forte”, ultracentralizado, baseado na “vertical do poder” e em que o arbítrio é designado por “ditadura da lei”. (...)Putin não funciona como ditador: é sobretudo o “árbitro-chefe” dos interesses e das facções da elite, que frequentemente se digladiam. Os oligarcas têm a sua riqueza protegida desde que apoiem o Presidente e não tenham ambições políticas. Os recalcitrantes acabam na prisão. A grande interrogação é: sem Vladimir Putin como funcionará o “putinismo”?

 
Sergey Aleksashenko, da Brookings Institution, em The future of Putin’s illusion, usa aquilo que sempre caracterizou o putinismo para pensar que o que aí vem não pode ser muito diferente: “To predict what Putin might do in his next term in office, consider five trends that have defined Russia during his 18-year rule. The first is escalation of political and military confrontation with the West, which has turned Russia into a rogue state that threatens its neighbors. The second is a gradual consolidation of power in the hands of a small circle of elites, who have replaced the bureaucracy, parliament, and judiciary as Russia’s ultimate decision-makers. A third trend is growing reliance on the use of force, particularly on the part of the secret police, in political life. (...)A fourth, and related, trend is the restriction of constitutionally guaranteed freedoms, including voting rights and rights of expression and assembly. And a final trend is the gradual erosion of property rights, which has left Russian businessmen unwilling to invest in the country.”
 
Continuando a olhar para a frente mais duas sugestões de leitura, ambas do Observador:
  • Cátia Bruno ouviu vários especialistas para escrever uma análise pormenorizada,  Vladimir Putin ganhou outra vez na Rússia: o que vai ele fazer com esta vitória?, tendo ouvido de Ekaterina Schulmann, uma cientista política russa, que “Assim que a máquina política decidir que a hora final chegou, os grupos rivais vão lutar ativamente até à última gota -- por posições ministeriais, empresas, poços de petróleo, recursos nos media e fluxos financeiros.” 
  • José Milhazes recorre a um paralelo histórico, invocando para isso o último grande czar da Rússia imperial para se interrogar, em Irá o czar Vladimir II seguir os passos de Alexandre II?, sobre se Putin ainda quer ser lembrado como um grande reformista. A resposta é de um grande cepticismo: “Como afirmou várias vezes Vladimir Putin, garantida que está a defesa e a segurança do país, nomeadamente com “armas invisíveis” e “nunca vistas”, seria uma boa altura para melhorar as condições e a qualidade de vida dos seus concidadãos, para fazer com que a Rússia não seja temida, mas respeitada. Será possível realizar em 6 anos do novo mandato o que não foi feito nos 18 anos anteriores?
 
Mas deixemos a política interna russa uma vez que, em Putin, e em Moscovo, a ambição imperial, a audácia e o não olhar a meios vão sempre mais longe. No centro das polémicas mais recentes estão os assassinatos ocorridos no Reino Unido e atribuídos a agentes russos, mortes que abriram uma enorme tensão entre os dois países. Porém, mau grado as evidências e a gravidade da actuação do Kremlin, os instintos parecem não estar suficientemente alerta. Mas com excepções:
  • Em We've forgotten the Cold War and so struggle to see the method in Putin's madness, Charles Moore, no Telegraph, alerta para o risco de não levarmos Putin a sério por já não temermos a sua ideologia: “Freed from ideology, they can operate more efficiently, because they know that the West prefers their modern money to their former Marxism. In the Cold War, our understanding of our opponents’ methods was systematic, and our political alertness was high. Neither is so true today. Some will say that the EU is the natural body to fight back against Russia, but in reality it is too weak, inexpert and divided for the task.”
  • Já em Sobre a burla eleitoral na Rússia, João Carlos Espada, no Observador, defende que “as democracias ocidentais fariam melhor em prestar atenção ao crescimento das ameaças autoritárias externas — em vez de se consumirem em menores questiúnculas internas”. Depois aborda a desconcertante posição do líder trabalhista, que se tem recusado a condenar a Rússia, alertando para a sua insanável contradição: “O que me preocupa no senhor Corbyn é a sua permanente tendência para culpar o Ocidente por todos os males do mundo. E por, simultaneamente, desculpar os inimigos do Ocidente — o fundamentalismo islâmico, agora também a Rússia e a China — como se essa inimizade fosse apenas resultado do chamado “imperialismo ocidental”.
  • Why does Putin treat Britain with disdain? He thinks he’s bought it. é um texto de Anne Applebaum no Washington Post onde, referindo-se a Theresa May e à sua reacção enérgica, considera contudo que “she doesn’t understand the profundity of the problem — that the Russian government treats Britain with disdain because the Russian government thinks it has bought the British elite. Worse than that, it may be right.” Pior, pois ao acolher os oligarcas russos e o seu dinheiro, “Our institutions, our banks, our tax havens have helped create this profoundly cynical regime in Moscow, one with no regard for our laws or political traditions. And we are still unable to see it.
 
Neste quadro importa compreender a realidade que temos pela frente e os seus desafios, o que pode ser feito com a ajuda destes três textos, que defendem pontos de vista contrastantes:
  • I Knew the Cold War. This Is No Cold War., de Stephen M. Walt na Foreign Policy, é uma crítica de uma bengala habitual em algumas publicações e analistas – “A lot of smart people seem to think the United States and Russia are in a “new Cold War.” You can find articles on the subject in Politicothe New Yorker, and the Nation” – mas que este autor considera errónea e capaz de conduzir a decisões políticas desastradas. Eis uma parte da sua argumentação: “The world today is not bipolar. It is either still unipolar or some sort of heavily lopsided multipolar system, with the United States still No. 1 and the other major powers trailing behind. If bipolarity eventually returns, as many believe it will, China, not Russia, will be the other pole. And in a striking reversal of the early Cold War, Russia is now China’s junior partner and will be far weaker than its Asian neighbor for decades to come.”
  • Russia’s Clash With the West Is About Geography, Not Ideology é um extrato do mais recente livro de Benn Steil, The Marshall Plan: Dawn of the Cold War (transcrito na Foreign Policy), que mesmo referindo-se a um quadro geopolítico muito distinto, contém análises que podem ser úteis: “Western leaders do not need to sympathize with Russia, but if they wish to make effective foreign policies, they do need to understand it. Communism may have vanished from Europe, but the region’s geography has not changed. Russia is, as it has always been, too large and powerful to embed within Western institutions without fundamentally changing them and too vulnerable to Western encroachment to acquiesce in its own exclusion.”
  • Putin y los titanes enanos, uma opinião de Andrea Rizzi no El Pais onde se alerta para aquilo que Putin já conseguiu: “La audacia y sagacidad táctica de Putin es ya legendaria. Ha estabilizado el país, reforzado sus fuerzas armadas, afianzado su proyección global y debilitado a muchos enemigos. Reina sobre un país inmenso, con descomunales recursos energéticos, un enorme arsenal nuclear y poder de veto en la ONU. Pero todo ello se apoya en una economía asfíctica que mide aproximadamente como la de España o Corea del Sur. Nada más. Putin no ha podido revertir esa debilidad intrínseca que limita inexorablemente a Rusia. La táctica es extraordinaria: pero el boquete estratégico irresuelto también lo es.”
 
Deixei para o fim um texto que pode parecer deslocado mas que, mesmo não sendo especificamente sobre a situação na Rússia, toca num ponto essencial: a contaminação das nossas democracias por movimentos políticos que cultivam a imagem do homem providencial, ou do “macho alfa”, de líderes fortes em regimes desvitalizados. Trata-se da coluna de hoje de Paulo Rangel no Público, Europa: democracia e ditadura da maioria, onde se relata que, na União Europeia, os problemas de violação dos equilíbrios próprios das democracias não é um exclusivo de países como a Hungria ou a Polónia, havendo também razões para nos preocupar-nos com a Roménia, a Eslovénia, a Eslováquia e Malta, só que nestes países os tiques autoritários são protagonizados por líderes da esquerda, o que porventura tem contribuído para que sejam menos referidos. Daí que o seu argumento central seja que, “Ao invés do que alguns julgam e insinuam, o cancro que devora a democracia liberal ocidental e que é tão bem aproveitado pelos seus inimigos, Putin e Erdogan – sempre prontos a patrocinar a instabilidade – não tem cor política. Está parqueado em interesses geopolíticos permanentes, nos seus aliados populistas de esquerda e de direita e até nas redes globais do crime. Este é seguramente um dos grandes riscos políticos da União, a que o advento do populismo de Trump nada ajuda. O melhor ensinamento da tradição política ocidental é este: a democracia não é a ditadura da maioria. Não o esqueçamos nunca.”
 
Hoje já me estendi demais, pelo que me despeço com os habituais votos de boas leituras e bom descanso. 

 
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