Evento contou com a presença de cerca de 120 pessoas, entre profissionais do mercado, acadêmicos e estudantes de jornalismo. |
Lívia de Souza Vieira
Professora de Jornalismo na Faculdade IELUSC e pesquisadora associada do objETHOS
Intolerância, polarização, desinformação, flerte com o fascismo. Palavras que tornam a cobertura jornalística das eleições 2018 no Brasil extremamente desafiadora. Para debater o assunto, aconteceu no último sábado, dia 22, em Porto Alegre, o Festival 3i, que contou com a presença de cerca de 120 pessoas, entre profissionais do mercado, acadêmicos e estudantes de jornalismo.
A Ponte Jornalismo fez um ótimo resumo do evento e pela hashtag #Festival3i é possível acompanhar os comentários de quem estava presente. Por isso, este texto não pretende relatar o que foi discutido nas mesas, mas parte disso para tentar elaborar uma reflexão sobre dois pontos que me chamaram muita atenção: o ajuste nos processos de produção para dar conta de um ecossistema complexo e a preocupação com o leitor.
Francisco Leali, diretor da sucursal de Brasília do jornal O Globo, destacou a transformação na maneira como lidam com um boato. Segundo ele, antes da internet, “boato a gente ouvia, apurava e jogava no lixo se não se confirmava”. Hoje não é mais assim. Os boatos começam a circular na internet, vão ganhando volume tal que podem afetar a vida do país. Em O Globo, há softwares que fazem monitoramento das redes sociais e avisam quando determinado conteúdo está viralizando. A partir da notificação, a equipe faz o processo de verificação clássico, dando transparência à checagem.
O editor-executivo do The Intercept Brasil, Leandro Demori, explicou que foram criadas diretrizes claras para a redação, que vão de detalhes de estilo a posturas editoriais. Algumas delas: se não incomoda ninguém não serve para nada; jargão jornalístico é um inimigo das nossas matérias; não escreva para seus amigos jornalistas; o Brasil é maior que o sudeste; ninguém lê coisa chata, com vocabulário para uma elite intelectual; seja a voz do oprimido porque o poderoso já tem Relações Públicas; não existe Caixa 2, o nome é propina”. Nesse sentido, o fato de não cobrir hard news dá ao Intercept a possibilidade de se dedicar a grandes investigações. Demori lembrou que o leitor está sedento por boa informação, e prova disso é que o crowdfunding deles alcançou 135% da meta, arrecadando mais de R$ 120 mil reais para a cobertura das eleições.
Para Flavia Marreiro, editora do El País Brasil, o grande desafio é cobrir o factual, mas saindo do moinho declaratório e ouvindo o que pessoas comuns têm a dizer. Ela também destacou a responsabilidade que o jornalismo tem ao noticiar declarações polêmicas, e citou como exemplo o vídeo em que Bolsonaro questiona a lisura da urna eletrônica. Segundo Marreiro, não é possível simplesmente replicar a declaração, sob o risco de aumentar a desinformação. Nesse sentido, gostei da solução que o El País Brasil encontrou ao titular a matéria: “Urna eletrônica, um debate sobre segurança usado por Bolsonaro como ameaça”. A editora disse que o dilema de como titular o fato a acompanhou durante todo o dia e que não é raro perceber que matérias contextualizadas, que fogem da polarização, não dão tanta audiência. “Talvez seja a hora de entendermos que jornalismo de qualidade não é um produto de massa”, afirmou.
De maneira mais reflexiva, a professora da USP Rosane Borges enfatizou que, para renovar a agenda eleitoral é preciso voltar a tornar a informação uma commodity. “Hoje a opinião está assumindo esse papel, o que impacta a agenda eleitoral”, disse. E ela fez uma provocação importante: como trabalhamos as questões que importam para o desenvolvimento do país para além do ódio? Ao invés de polarizar, como podemos apontar caminhos? Ela citou como exemplo o tema do aborto, que acaba se resumindo à criminalização. Segundo ela, é preciso tratá-lo como assunto de saúde pública porque “há mulheres, principalmente pobres e negras, morrendo por isso”, destacou.
Prestar menos atenção no vencedor das eleições e mais nas empresas, no congresso, no judiciário, no Ministério Público e nos indícios. Esse deve ser o comportamento da imprensa após o período eleitoral, de acordo com Alexandre de Santi, editor do The Intercept Brasil e co-fundador da Agência Fronteira. Ele destacou duas reportagens que vão por esses caminhos: “O lucrativo exército de segurança privada comandado por militares, milicianos e amigos de Eduardo Cunha no Rio” e “Como funciona o lobby da Nestlé, Unilever e Danone para esconder o excesso de sal, gordura e açúcar nos rótulos”. Sobre essa última, Santi contou que o repórter não havia colocado o nome das empresas no título, mas o fato de o Intercept não ter anunciantes possibilita que sejam mais claros e transparentes.
Por fim, a editora Jinieth Prieto, do colombiano La Silla Vacía, explicou como cobriram as eleições de junho no país a partir de uma virada para o cidadão, de menos obsessão com os políticos, de mais inovação, experimentação – e fracassos também. “Passamos a nos perguntar o que realmente importa pras pessoas, porque notamos que muitas coisas que cobríamos não tinham audiência”, enfatizou.
É nesse equilíbrio difícil entre o que o leitor deseja e o que ele precisa saber que se encontra hoje, a meu ver, um dos principais desafios do jornalismo. E isso requer, inevitavelmente, ajustar rotas e mudar rotinas de produção quando necessário. Nesse sentido, perceber que veículos tradicionais e novos estão preocupados com isso caracteriza um avanço importante e que deve ser acompanhado de perto.
Fonte:objethos
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