O meu dia começou hoje num café que desconhecia e onde o empregado brasileiro se afadigava a servir os cafés e as torradas da manhã. Até que chegou um cliente engravatado que lhe perguntou se estava contente com a vitória do Bolsonaro. Ele só respondeu: “Você não sabe como aquilo está no Brasil...” O homem não desistiu: “Não ouviu o Freitas do Amaral na TSF? Olhe que ele contou que o seu presidente disse que, se fosse alemão nos anos 30, se teria inscrito no partido nazi”. Entre acabar de servir mais um café e preparar um galão, o empregado parou por um momento: “Não acredito”.
Ouvi sem dizer nada – mas estranhei. Há semanas (meses?) que leio sobre Bolsonaro em dezenas de jornais diferentes e nunca ouvira essa referência. Mal pude fui confirmar. Sim, Freitas do Amaral fez mesmo aquela acusação na sua entrevista à TSF (é logo do minuto 4). E sim, trata-se de uma fake news (tocam a todos), como o Globo verificou há dez dias. Para mais, uma #fake mal citada.
Conto este pequeno episódio pois ele encapsula a forma como as eleições brasileiras tiveram o condão de criar em Portugal polaridades semelhantes às que dilaceraram o Brasil, sendo notória a apetência por uma argumentação do tipo reductio ad Hitlerum, isto é, aquela em que todos os argumentos da parte contrária são imediatamente descartados por serem “fascistas” ou “branqueadores do fascismo”. Esta forma incivilizada de discutir, que tem contaminado as nossas sociedades, é por isso o tema deste Macroscópio.
Começo por isso por um texto de Adolfo Mesquita Nunes no Diário de Notícias, Para combater os populistas temos de banir a superioridade moral na política, que parte precisamente da ideia de que uma divisão maniqueísta entre “bons” e “maus” no debate político conduz a maus resultados: “A afirmação de um populista começa pela afirmação de uma superioridade moral, da sua condição de representante do povo contra as elites ou sistema. Mas esta superioridade não é apenas uma característica que populistas xenófobos, nacionalistas, homofóbicos, justicialistas, estalinistas ou anticapitalistas têm em comum, como se fosse uma consequência. Pelo contrário, o populismo é que é a consequência da moralização do debate político nas últimas décadas.” Sem querer encontrar um primeiro responsável por esta deriva nos termos da discussão pública, nota que este “protopopulismo abriu as portas aos populistas radicais. Quando eles apareceram, com ideias velhas e que haviam sido minoritárias durante décadas, o que é que encontraram? Encontraram as classificações radicais banalizadas. Quando tudo é fascismo, nada é fascismo. Mas não só. Encontraram uma sociedade aclimatada à discussão moral, a olhar para problemas complexos de forma binária, a achar que duas leis resolveriam a miséria, a ver o sistema político como uma divisão entre bons e maus, países aliados como inimigos.”
No Observador encontramos várias perspetivas sobre a forma como se reduziu em Portugal o debate a este binário fascista/anti-fascista, perspectivas com preocupações diferentes:
- João Marques de Almeida, em A lição de democracia dos brasileiros, olha sobretudo para o comportamento das nossas esquerdas: “Bolsonaro até poderá ser fascista, mas o facto de a esquerda o dizer é absolutamente irrelevante. As esquerdas já chamaram de fascistas a Sá Carneiro, a Cavaco Silva, a Passos Coelho, a Paulo Portas, a Marcelo Rebelo de Sousa e até, vejam bem, a Freitas do Amaral. As esquerdas banalizaram o termo fascista. Por isso, o que dizem sobre o fascismo não tem qualquer importância. As esquerdas portuguesas usam o termo fascismo com a mesma ligeireza com que os adolescentes recorrem às palavras odeio e adoro. Obviamente, as esquerdas aproveitaram as eleições brasileiras e os ataques a Bolsonaro para condicionar e assustar as direitas portuguesas. Infelizmente, algumas figuras das nossas direitas assustaram-se.”
- Alexandre Homem Cristo, em Ordem, progresso e um inimigo da liberdade, manifestou-se mais preocupado com a forma como sentiu que uma parte da direita olhou para o fenómeno Bolsonato: “Nos próximos tempos, haverá muita gente a rasgar vestes e a anunciar o fim dos tempos no Brasil – e, claro, muita gente a enganar-se nas suas profecias apocalípticas. Da minha parte, interessa-me mais olhar para aqui: espero que a crise intelectual e de representação política no centro-direita português não se deixe vencer por réplicas do discurso do presidente eleito brasileiro. É que Bolsonaro não é um democrata. E, sim, isso não é tudo – mas, sem isso, não há nada.”
Numa abordagem mais distanciada, João Carlos Espada procura explicar, em Eleições no Brasil: Quem lê hoje Macaulay?, que eleições bem disputadas não são sinónimo do espectáculo a que assistimos no Brasil (e a que assistimos com cada vez maior frequências noutros lugares) onde os candidatos se insultam mutuamente enquanto se acusam de serem o “inimigo do povo”. Recomenda por isso a leitura de um historiados inglês do século XIX para lembrar que “A ideia de que a democracia consiste simplesmente na “soberania do povo” é um equívoco vulgar, em regra associado a ditaduras, revoluções e guerras civis — não a democracias pluralistas e civilizadas.”
Já sobre a ineficácia da campanha de algumas elites para derrotar Bolsonaro, e da pouca influência que parecem ter sobre o voto popular (como já tinham tido no Braxit ou na eleição de Trump), escreveram João Miguel Tavares no Público e Rui Ramos no Observador:
- Em Nós, as elites, não percebemos nada de nada João Miguel Tavares defende que “as elites artísticas, intelectuais e jornalísticas têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula.” Mais: “ter escritores, comentadores, historiadores, músicos ou jornais a criar vídeos, e manifestos, e hashtags, e editoriais, e o diabo a quatro, onde do alto da sua imensa sabedoria tentam explicar ao povo brasileiro (como já haviam tentado explicar ao povo americano) em quem ele deve votar, é uma ridícula figura, por uma razão muito simples – aquele voto, o voto de dezenas de milhões de brasileiros e de norte-americanos, também é contra nós.”
- Já em A máquina de fazer fascistas já não funcionaRui Ramos escreve sobre aquilo que considera que “as esquerdas radicais e as elites que as esquerdas radicais têm reféns não percebem. Dominam os estúdios de televisão, as salas de aula, as fundações que dão subsídios: aí, ninguém se desviou da lição ensinada: Bolsonaro era fascista, toda a gente que não votasse em Haddad era fascista (ou, pelo menos, “branqueador do fascismo”). Acontece que fora desse mundo de conformismo e estacionamento intelectual, a máquina de fazer fascistas deixou de funcionar. O que se passou é óbvio: no Brasil, a maioria dos eleitores, por mais repugnante que fosse a alternativa, não esteve disposta a entregar o poder ao PT. Por isso, não se deixaram enganar pela velha rábula do “fascismo”.”
Não creiam que a surpresa foi só portuguesa, ou que só nós, senhores do antigo império, estávamos a olhar para o Brasil. Mary Anastasia O’Grady, a especialista em América Latina do Wall Street Journal, em Bolsonaro Takes Brazil, também nos retrata um quadro geral muito semelhante: “He was labeled a racist, a misogynist, a homophobe, a fascist, an advocate of torture and an aspiring dictator. His opponents gathered in the streets to denounce him and wrote withering diatribes against him in the press. The proudly “progressive” international media joined the fray, declaring him a threat to the environment and democracy. It ought to have been enough to sink the Bolsonaro candidacy.” Contudo, acrescenta de imediato, ele prevaleceu, “and it isn’t hard to see why: Brazilians are in the midst of a national awakening in which socialism—the alternative to a Bolsonaro presidency—has been put on trial. The resounding victory of Novo Party’s classical-liberal gubernatorial candidate Romeu Zema in the large state of Minas Gerais confirms that theory.”
Claro está, acrescenta a colunista, habituada às mudanças de governo nas democracias evoluídas, que amanhã a vontade do eleitorado pode ser outra, mas agora, na interessante leitura da Veja, o Brasil terá entrado Em curto-circuito. A ideia é que o choque conservador que levou Bolsonaro à Presidência, e que nasceu nas manifestações de 2013, passou pela Lava-Jato e chegou ao ápice com o impeachment de Dilma, é um exemplo clássico de um fenómeno sociológico descrito há quase 40 anos por alguém que viria depois a desempenhar um importante papel na história do Brasil contemporâneo: “O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aliás o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, formulou, num trabalho dos anos 1980, teoria de acordo com a qual as sociedades contemporâneas mudam por curto-circuito. Numa entrevista ao escriba que vos fala, depois reunida em livro (O Presidente Segundo o Sociólogo, de 1998), ele a resumiu. “Sociedades do tipo das nossas, informacionais, com muita comunicação, podem mudar por um curto-circuito”, disse, e citou, entre outros, os exemplos da França de 1968 e da Polônia de Lech Walesa e do papa João Paulo II, dois eventos históricos que presenciou pessoalmente. “Como as sociedades são muito diversificadas, e os polos de decisão não são centralizados, podem ocorrer mudanças muito bruscas e imprevisíveis. Se houver muito fio desencapado, a probabilidade de curto-circuito é alta.” Os fios desencapados são a precondição, mas não são tudo, prossegue a teoria. Precisa haver comunicação entre os diversos segmentos sociais. “Não é um segmento contra o outro, é uma comoção que percorre os diversos segmentos. Quando se consegue fazer isso, é como se se desse uma ‘fervura’ na sociedade.” A fervura não dura para sempre; depois de certo tempo, assenta. Mas aí a sociedade já mudou.”
Este trabalho da Veja é bastante interessante e a teoria dá que pensar, até porque, como constata o Zero Hora, de Porto Alegre, em O que a vitória de Bolsonaro revela sobre o Brasil que emerge das urnas, o país que aí se revelou é “religioso, conservador, sedento por autoridade com pulso firme e mais à direita do que nunca”. Mais: “Nunca antes o eleitor brasileiro havia conduzido ao Palácio do Planalto alguém tão à direita no espectro político e tão vinculado a posições com potencial explosivo.”
Há mesmo, escreve Denis Lerrer Rosenfield no Estado de São Paulo, algo a que ele chama A nova direita. Antes, explica, a direita quase não existia, pois “O esquema vigente estruturava-se a partir de uma alternativa entre uma esquerda social-democrata e uma que detestava essa denominação”, ou seja, o PT e PSDB. Agora “A nova direita apresenta-se agora em duas correntes. Trata-se dos conservadores e dos liberais, em sua significação inglesa (...). Uma, representada por Jair Bolsonaro, tem sua ideia reitora em posições conservadoras, outra por João Amoedo, que expressa posições liberais.”
É um quadro tão novo, são tantas as indefinições, que não surpreende que os editoriais da imprensa brasileira de hoje nos falassem sobretudo de um “Salto no escuro”. Em Portugal, no Público, Jorge Almeida Fernandes interrogava-se sobre se Pode Bolsonaro fazer o que lhe apetece?, regressando ao tema da necessidade que tem de negociar e voltando a abordar os riscos da suas presidência:“Risco de quê?”, interroga-se o politólogo Fernando Bizarro. “Se for a quebra brusca da democracia — com um golpe que cancele eleições, feche o Congresso e suspenda direitos —, o risco é provavelmente zero. Tanto a experiência internacional quanto a História brasileira mostram isso.” O problema é outro. “A erosão democrática, isto é, a deterioração gradual e limitada de algumas dimensões da democracia é hoje a forma mais comum da degeneração das democracias.”
Já no Observador Diana Soller notava que Bolsonaro não é Trump. Antes fosse: “Há três diferenças fundamentais. Duas delas tornam Bolsonaro muito mais perigoso que Donald Trump. O presidente brasileiro (primeira diferença) é assumidamente anti-democrata e (a segunda diferença) parece disposto a implementar no Brasil uma espécie de lei marcial permanente. A terceira diferença, é que, do ponto de vista económico, onde Trump é protecionista, Bolsonaro pôs o programa económico nas mãos de Paulo Guedes, um discípulo da escola de Chicago, que, como se sabe, professa o mercado livre e desregulado quase como uma religião.”
Como tantas vezes sucede nesta newsletter remato com um texto que, de alguma forma, é um regresso ao tópico de abertura, pois é uma análise que sublinha como, face à polarização verificada, a Moderação ficou barata na política; hora de comprar. A crónica é de Vinicius Mota e saiu na Folha de São Paulo: “Quem comprou radicalização à direita de 2013 para cá se deu bem. O que ficou barato agora é parcimônia e racionalidade econômica. São promissoras as condições para um partido social-democrata moderno no Brasil. Mas será preciso arriscar.”
Enquanto isto tudo indica que aqui, na Europa, os anos de Merkel chegaram mesmo ao fim. Mas isso ficará para outra altura. Tenham bom descanso e melhores leituras.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário