Quando, a 5 de Julho de 1996 – já lá vão mais de 22 anos – se soube que nascera a primeira ovelha clonada, a ovelha Dolly, a comoção foi enorme, o debate cruzou todas as fronteiras. Mas agora que, aparentemente, foi dado um passo muito mais radical pois um cientista chinês garante ter feito nascer primeiro bebé com ADN geneticamente modificado, o assunto quase não tem passado de uma nota de rodapé. É certo que houve reacções na comunidade científica, e delas daremos conta neste Macroscópio, mas como veremos a seguir poucos são os que dizem que se abriu uma caixa de Pandora – e o mais certo que se tenha mesmo franqueado um limite ético para além do qual tudo pode passar a ser permitido.
Este desenvolvimento ocorreu na China – onde mais poderia ter ocorrido? –, um país onde já se trabalhava na manipulação do genoma de embriões humanos há alguns anos. No Observador a Vera Novais já tratara mesmo deste tema duas vezes, primeiro em Manipular embriões humanos? O melhor é ter calma, onde se referia referia precisamente aos trabalhos dos investigadores chineses com embriões, e depois Deve-se modificar embriões humanos?, um artigo onde se sublinhava que a ideia era tão polémica que fazia com que alguns cientistas quisessem proibi-la. Outros porém defendiam e defendem que este tipo investigação pode trazer soluções para muitas doenças.
Acontece porém que, como se escreve na revista científica Nature, o salto dado por este cientista chinês pode acabar por prejudicar os que defendem a validade deste tipo de prática na investigação científica, e não apenas por suscitar questões éticas. Em How the genome-edited babies revelation will affect research conta-se que “Some scientists worry the startling claim will lead to knee-jerk regulations and damage the public’s trust in gene editing.”Vejamos o que diz um desses cientistas: “I'm worried about a knee-jerk reaction that might cause countries still working on regulations to make it unnecessarily hard to do this research,” says Robin Lovell-Badge, a developmental biologist at the Francis Crick Institute in London.” Mas pode haver mais consequências negativas, como esta apontada por Paula Cannon, “who studies HIV at the University of Southern California in Los Angeles, says the news could also worsen the stigma of having HIV. He's procedure, in her opinion, casts being HIV positive as a condition that is so awful that people need to be genetically modified to overcome merely being susceptible to infection, she says. “The damage he’s done to the field of gene editing, to HIV-positive individuals and their allies, to Chinese scientists. It’s just horrible," she says.”
Na própria China a reacção foi de preocupação, pois este trabalho terá sido desenvolvido sem conhecimento do sistema científico dirigido por Pequim. Em China orders investigation after scientist claims first gene-edited babies a Reuters relata-nos que a “China’s National Health Commission said it was “highly concerned” (...). “We have to be responsible for the people’s health and will act on this according to the law.” Na The Atlantic dão-se mais pormenores em Chinese Scientists Are Outraged by Reports of Gene-Edited Babies, onde se explica como uma iniciativa não controlada pode estragar o que o país tem feito para ganhar o respeito da comunidade científica internacional: “China has spent billions turning itself into a scientific powerhouse, but it still struggles with the perception that its scientists do not take ethics seriously. In 2015, when Chinese scientists raced ahead to use crispr to edit genes in human embryos, an international outcry ensued. But the study’s defenders argued that because it was done in embryos that were not viable and were never meant to be implanted into a womb, the research was in fact incremental and responsible. After all, no one was making crispr-edited embryos to be born as babies. Until someone did.”
Alguém – e esse alguém tem nome, chama-se He Jiankui – que entretanto está tão entusiasmado com o seu sucesso que já anunciou, numa conferência a decorrer em Hong Kong, que já vem a caminho mais uma criança com o genoma artificialmente modificado. CRISPR scientist says another woman is pregnant with an edited embryo, conta a New Scientist, que relata a forma como se dirigiu aos seus colegas cientistas: “He told the packed audience that he was “proud” of his achievement. He said that the father of the girls – who is HIV positive – had lost hope for life before enrolling in the trial. “[Now the father is] saying ‘I will work hard, earn money and take care of these two daughters’,” He said.”
Como já vimos é contestável que esta fosse a única forma de resolver clinicamente o problema de uma mãe com HIV que queria ter filhos, mas mesmo assim há colegas de He Jiankui que o defendem, nomeadamente alguns dos que o conheceram nos anos de formação nos Estados Unidos. O site Stat falou com alguns deles e podemos encontrar o seu testemunho em He took a crash course in bioethics. Then he created CRISPR babies. Onde se escreve, por exemplo: “He has been harshly criticized for announcing news of the CRISPR’d babies in the press rather than a vetted, peer-reviewed, published scientific paper. Hurlbut was less judgmental: Reaching out to the Associated Press to break the news of his use of CRISPR on human embryos “doesn’t have much to do with self-promotion,” Hurlbut said. “Quite apart from matters of ethical principles or prudence, JK is a very nice person — humble and well-meaning, with an earnest desire to use his scientific knowledge for the good of others.”
Mas deixemos estes debates relativamente laterais para passar às criticas mais sérias, que se desenvolvem segundo dois eixos essenciais: um centrado no estado de desenvolvimento da ciência e naquilo que já se pode fazer com segurança, e outro focado nas barreiras éticas que não devem ser transpostas.
Um bom exemplo da primeira linha de argumentação é a desenvolvida por Eric J. Topol, professor de medicine molecular no Scripps Research Institute, num artigo no New York Times, Editing Babies? We Need to Learn a Lot More First, onde defende que esta experiência representou que “se deu um passo longe demais”. Argumenta, por exemplo, que “The predominant risks are the potential impacts of the editing on other letters of the genome, which could induce diseases. We don’t have the assurance yet that Crispr provides laserlike precision in editing — for example, certain important genes for suppressing cancer are particularly susceptible to unintended editing. The way we assess this risk is to sequence the genome before and after editing, to see whether changes were made in genes other than the target gene.” É por isso muito severo: “Scientists like Dr. He should be castigated by their institutions and the biomedical community, as he was, and perhaps that will discourage this sort of unethical research. Governments should also condemn these practices and impose significant penalties, like pulling research funding and making these scientists ineligible for more.”
Lluís Montoliu (na foto), um especialista espanhol em manipulação genética, é ainda mais assertivo pois não se limita a ficar pelas considerações científicas. Numa entrevista ao El Pais, “Han creado una estirpe nueva de humanos”, usa palavras duríssimas: “Se ha abierto una caja de Pandora. Es de una irresponsabilidad colosal. No es una edición para curar. Es una mejora genética. El paso siguiente es una eugenesia total. Le dirán a los padres: “¿Qué desea usted?”. Se ha abierto la veda, que es lo que no queríamos que sucediera, pero que ha sucedido donde sabíamos que ocurriría: en China. Hay que decir claramente que este experimento es ilegal en nuestro país y además es ilegal en muchos otros países, incluyendo EE UU y Reino Unido, donde sí es posible la edición genética de embriones en investigación, pero no su implantación [en una madre].” Mais adiante acrescenta mesmo que “El impacto bioético trasciende a las niñas. Los investigadores chinos han creado una estirpe nueva de humanos, en sentido estricto. El mensaje que están enviando es terrible.”
Surpreendo-me por não estarmos a ter este debate – o científico e o ético – da mesma forma apaixonada que tivemos quando conhecemos a existência da ovelha Dolly. Se o estivéssemos a ter mais alguns elementos de enquadramento seriam interessantes, pelo que não resisto a deixá-los aqui, para quem quiser aprofundar a sua reflexão.
Um primeiro é sobre a forma como as religiões veem a manipulação genética – e quando falo de religiões não falo só do cristianismo, do judaísmo e o islamismo, falo também do budismo, do hinduísmo e do taoismo. Em How religious beliefs shape our thinking on cloning, stem cells and gene editing é possível encontrar uma boa síntese das diferentes abordagens, sendo interessante notar que mesmo as religiões do Livro não têm todos a mesma forma de olhar para a investigação genética. Senão vejamos: “Whereas Christian tradition for many centuries had a prohibition against this kind of “playing God,” Judaism offers many tales of people doing just that. Stories and parables about people creating synthetic life are mentioned in Jewish texts — notably the Talmud and the Zohar. These texts took form from late antiquity through the Middle Ages and into early modern times. They offer insights into how modern Jewish perspectives on biotechnology differ substantially from those of Christianity, whose scholars tend to put more weight on biblical passages.”
Já na frente puramente científica é importante termos consciência do pouco que ainda sabemos. Apesar daquilo que nos trouxe o projecto de decifração do nosso DNA, a verdade é que, como se conta na The Atlantic, 300 Million Letters of DNA Are Missing From the Human Genome. Nesse texto recorda-se que a matriz a partir da qual foi feita a descodificação dos nossos genes é a de um homem, que se manteve anónimo, cujo sangue foi recolhido em 1997 e conhecido pelo nome de código RP11. Ora sucede que “A new study of DNA from people of African descent shows just how much the reference genome is missing: Scientists found across the 910 people in their study 300 million letters of DNA that are not in the reference genome. Some of these newfound segments of DNA could represent new genes that were previously overlooked. Africans collectively are far more genetically diverse than people in other parts of the world, so their DNA is especially likely to differ from the reference genome.”
Por outras palavras: quando cientistas como He Jiankui trocam letras num código de que ainda desconhecemos grande parte estamos a correr enormes riscos. E quando o fazemos criando novos seres humanos passámos uma barreira que se tinha por intransponível. Se acrescentarmos o detalhe de tudo isto se passar num país como a China, de partido único, há distopias que, de repente, parecem tornar-se realidade.
Mas por hoje é tudo. Tenham bom descanso.
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