Há quatro anos, no primeiro ano do Observador e no primeiro ano desta newsletter, dediquei-a uma vez a um tema aparentemente fora do comum: o dia de acção de graças, não o nosso, que não o celebramos, mas o dos Estados Unidos, onde o Thanksgiving Day é a festa de família por excelência e comemora-se sempre na quarta quinta-feira do mês de Novembro. Ou seja, hoje. Foi uma newsletter que na altura surpreendeu muitos leitores (agradavelmente, pelas reacções que me fizeram chegar), mas não esperava voltar ao tema se não tivesse tropeçado hoje em dois artigos muito interessantes e reveladores. Por isso, e porque a base de leitores do Macroscópio era há quatro anos muito mais pequena do que é hoje, decidi recuperar muito do que então escrevi, e que mantém toda a actualidade porque, no essencial, se trata de uma explicação do porquê dessa tradição tão Americana, acrescentando-lhe um toque de actualidade.
O primeiro artigo que me surpreendeu encontrei-o no Washington Post e tinha um título que me atraiu irresistivelmente: The lessons my father, Charles Krauthammer, taught me about being thankful. Para quem não sabe, Charles Krauthammer foi um dos mais influentes e respeitados colunistas norte-americanos, várias vezes galardoado com o Prémio Pulitzer. Conservador sabia discutir com os liberais, ou seja, era um homem de um tempo em que ainda se sabia conversar no espaço público. Neste texto o seu filho, Daniel Krauthammer, recorda um texto que o pai, desaparecido o ano passado, escrevera há 33 anos precisamente a propósito de mais um Thanksgiving Day.O que recorda desse texto é absolutamente notável, sobretudo se pensarmos no que é hoje a paisagem política dos Estados Unidos:
Thanksgiving is a religious occasion, my father wrote, but not one belonging to “Protestantism or Judaism or any other particularist faith.” Rather, it belongs to all Americans as part of “what has been called the American Civil Religion.” This religion’s “Supreme Being,” my father wrote, “is Jefferson’s rights-giving Creator, Washington’s First Author, Lincoln’s Judge — an American Providence.” The only orthodoxy it demands is belief in the core principles laid out in its foundational holy texts: Most important, “that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.” And “That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed.”
Parecem verdades evidentes mas ainda não são – aliás são cada vez menos, pelo que o que fascina no desenvolvimento deste texto é a forma como Charles Krauthammer fazia, há 33 anos – quando ainda havia Muro de Berlim... – a defesa da democracia como algo “designed at its core to be spiritually empty,” for “it mandates means (elections, parliaments, markets) but not ends.” Algo que permitia o convívio dos que desejam “to make America great again” com aqueles para quem o que conta sobretudo é a justiça social.
E é aqui que passo ao segundo texto de hoje, um artigo da The Economist onde se coloca a seguinte questão: Is political polarisation cutting Thanksgiving dinners short? Isso mesmo: a acrimónia política nos Estados Unidos parece estar a chegar a um ponto em que ou se evita falar de política nos jantares de família, ou estes terminam mais depressa: um estudo realizado em 2016, depois das últimas eleições presidenciais, por “Keith Chen and Ryne Rohla of the Universities of California and Washington State, suggests partisan animus may also be cutting family gatherings short”. Em concreto, “They found that Thanksgiving dinners more likely to include a mix of Trump and Clinton voters were between 20 and 50 minutes shorter than dinners that were more likely to have been purely partisan gatherings.”
Ora aqui está um sinal especialmente inquietante da evolução do clima político nos Estados Unidos, sobretudo se pensarmos no que significa a tradição deste dia em que as famílias se reúnem para partilharem um perú. Mesmo sabendo que Thanksgiving Dayparece necessitar de ser explicado, algo que nunca imaginaríamos necessário para, por exemplo, o nosso Natal. É por isso que retomo aqui o essencial do Macrsocópio de há quatro anos, onde reuni a este propósito um conjunto de textos históricos, linguísticos, comportamentais e até gastronómicos.
Comecemos por tentar perceber porque razão só os americanos, e os canadianos, comemoram este feriado com aparentes conotações religiosas. Porque têm ele um dia de acção de graças e nós não? Por uma razão simples: essa é uma tradição que remonta ao tempo dos primeiros peregrinos, os que cruzaram o Atlântico em busca de uma vida nova há quase 400 anos. Essa história é-nos contada, por exemplo, neste ensaio do Wall Street Journal: “Pilgrims and the Roots of the American Thanksgiving”. O historiador Malcom Gaskill, depois de recordar as condições em que a imigração inglesa foi criando as suas novas comunidades, que se estendiam do Maine, a Norte, à Virgínia, mais a sul, procura mostrar o que liga os pioneiros de então aos americanos de hoje:
Here we might return to Plymouth in 1621 and to the true story of the first Thanksgiving, which is richer and more edifying than the familiar holiday version. When the Pilgrim William Bradford said, “They began now to gather in the small harvest they had…being all well recovered in health and strength and had all things in good plenty,” he was bearing witness to the fact that, in their first crucial year, they had barely survived. The Pilgrims were not typical settlers in the new land, but they still exemplify the extraordinary imagination and belief, fortitude and courage, shown by colonists across early America—qualities shared today by all manner of Americans, regardless of their ancestry.
Num registo mais leve, o Washington Post é muito directo e quase provocador: “Why we celebrate Thanksgiving every year. It isn’t what you think.”. Por exemplo: “If you think Americans have been celebrating Thanksgiving annually since 1621, guess again. Nobody at the time thought of it as the start of a new tradition, and there had been similar gatherings elsewhere earlier. Historians know there was another feast in the colony in 1623 — but it was held earlier in the year. Different colonies celebrated their own days of thanksgiving during the year.”
E que evento é esse de 1621 que os americanos associam tão fortemente à sua actual tradição? Uma muito particular festa de acção de graças pela boa colheita desse ano, festa que teve lugar na colónia de Plymouth, no Massachusetts, e que é recordada com detalhe pois foi descrita por Nathaniel Morton, o secretário da colónia que nos deixou aquele que é considerado o primeiro texto histórico publicado nos Estados Unidos. Todos os anos, na véspera do Thanksgiving, o Wall Street Journal publica, como editorial, um extracto desse texto, “The Desolate Wilderness”. É um texto belíssimo que descreve a chega ao Novo Mundo dos imigrantes vindos do outro lado do oceano. Vejam esta passagem:
Being now passed the vast ocean, and a sea of troubles before them in expectations, they had now no friends to welcome them, no inns to entertain or refresh them, no houses, or much less towns, to repair unto to seek for succour; and for the season it was winter
Passemos destes temas mais sérios para outro mais trivial – mas curioso. Como sabemos dos filmes e das séries, noThanksgiving Daycome-se peru. Ora, em inglês, peru diz-se “turkey”. Isto é, turkey como Turkey, Turquia. Ora, interroga-se a The Atlantic, Why Americans Call Turkey 'Turkey'. O tema também é assunto da Vox: Why do Turkey the country and turkey the bird have the same name? Pois bem, ninguém sabe de ciência certa. Até porque se a ave a que chamamos peru e os americanos conhecem por turkey é nativa dos Estados Unidos, isto é, não foi para lá levada por nenhum imigrante vindo do Oriente Próximo. O que me leva a outra questão, para a qual não tenho resposta: porque é que nós chamamos peru ao peru e Peru ao Peru. Estranha ave que tanto é andina como levantina e afinal não é uma coisa nem outra.
Continuando num registo mais coloquial, chamo-vos a atenção para uma crónica divertida que encontrei no Quartz a propósito do pesadelo que pode ser organizar uma festa familiar num tempo de famílias divididas: Surviving the hollow ache of Thanksgiving with divorced parents. Nós, que não temos dia de Acção de Graças, mas temos Natal (e peru do Natal, já agora), e também muitas famílias divididas, podemos encontrar neste texto curiosos paralelos. Por exemplo: “My parents did one aspect of their divorce right: They remained friends. If my mom was hosting the Big Turkey, my dad and his lady-of-the-moment were always invited. When my dad and his wife took over, my mother and her husband often strolled in for dessert. But eventually, my father and his second wife split, too, and tensions grew strained as we three children learned the dance of deciding our loyalties”.
O mesmo tema – altos e baixos de uma festa de família – também atraiu a atenção da New Republic: “Thanksgiving Is All About Family Guilt”. É uma crónica sobre a culpa de se estar ou não na refeição onde se espera que todos estejam. Termina assim:
It’s the holiday when you’re never where you’re supposed to be. But neither is anyone else, you come to learn. Like you, they were expected somewhere else but they never got there, so, instead, they’re here. And so are you. And all the others, too. Guilty, maybe, but far from lonely. And so you sit down together and you eat.
Para fim deixei a parte mais útil deste Macroscópio. Encontrei no New York Times um pequeno vídeo depois do qual mais ninguém poderá dizer que não sabe trinchar um peru: How to Carve a Turkey. Como lá em casa sou sempre eu que tem de trinchar as aves, e sei o que isso às vezes custa, acredito que com esta ajuda outros “trinchantes” vão conseguir passar a dividir a tarefa...
E por hoje é tudo De resto, como de costume, desejo-vos um bom descanso e façam boas leituras.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário