domingo, 31 de janeiro de 2021

Dádiva de sangue: para quando o fim efectivo da discriminação?

Afinal, em que é que o sangue de um/a não heterossexual se diferencia do de um/a heterossexual? Ambos salvam vidas e isso, bom, isso deveria ser tudo o que importa.

Os níveis de reserva de sangue em Portugal encontram-se, há já vários dias, em falência, cuja instabilidade foi confirmada pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), matéria igualmente verificada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

As actividades de promoção da dádiva de sangue, colheita sanguínea, rastreio analítico e processamento para produção de componentes sanguíneos estão sob a responsabilidade do IPST e dos 30 serviços de sangue em sede hospitalar.

No dia em estas palavras são escritas, dia 26 de janeiro de 2021, o IPST dá conta que os grupos ORh+, ORh-, ARh+, ARh- e BRh- têm reservas para sete a dez dias, ao passo que os restantes grupos sanguíneos o têm para mais de dez dias.

A pandemia emerge como factor dificultador para a colheita de sangue, quer pelo confinamento determinado, quer pela impossibilidade de utilização das unidades móveis, já que estas não permitem garantir as medidas de distanciamento preconizadas. Os baixos níveis de reserva de sangue já tinham sido identificados em Outubro passado, tendo sido clamada a diminuição do número de dadoras/es em Março de 2020.

Na sequência das notícias sobre as baixas reservas dos componentes sanguíneos surgiram, felizmente, as tentativas de dádiva. E com estas tentativas despontaram, também, as denúncias de má práctica, discriminação e exclusão de pessoas candidatas à doação de sangue.

Os relatos de incidentes discriminatórios perpetrados por profissionais de saúde não são novidade, incluído a determinação do impedimento de ser dador/a de sangue face à opção sexual não heterossexual. As concepções heteronormativas e heterossexistas configuram os verdadeiros obstáculos ao acesso da pessoa não heterossexual aos serviços de saúde, e traduzem o incumprimento dos princípios éticos de igualdade e justiça. As obstruções à dádiva de sangue têm sido, aliás, amplamente referenciados, de que o último Relatório Anual da Discriminação contra pessoas LGBTI+ é apenas exemplificativo.

Pese embora a orientação sexual não emerja, há já alguns anos, como critério de elegibilidade para a dádiva sanguínea, permanece a discriminação real do candidato homem homossexual ou bissexual, já que é, por esse facto, suspensa a possibilidade de ser dador.

Em 2016, uma Norma de Orientação Clínica (NOC) da Direcção-Geral da Saúde (DGS) veio pôr fim ao critério de “suspensão definitiva” de dádiva de sangue para a pessoa não heteronormativa, estabelecendo uma “suspensão temporária" de 12 meses após o último contacto sexual, sempre seguido de avaliação analítica.

Ora este critério de suspensão temporária é o mesmo que é aplicado às/aos trabalhadoras/es do sexo, às/aos utilizadoras/es de droga e à pessoa com contacto sexual com parceira/o portador/a de infecção por hepatite B, hepatite C e Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) ou originária/o de países com epidemia generalizada por VIH (eg. Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, etc.). A/o candidata/o a dador/a deverá ainda aguardar seis meses caso tenha um/a novo/a parceiro/a sexual.

Os critérios de elegibilidade devem basear-se na existência de comportamentos de risco ao invés da fixação de grupos de risco. Não é aceitável que as restrições à doação de sangue não se cinjam somente à segurança dos componentes a transfundir e do/a próprio/a dador/a. É, exactamente, para tal aferir que são realizados os designados rastreios analíticos.

Uma orientação sexual não heterossexual não é um comportamento de risco. Pôr fim a esta discriminação é tanto mais necessária quanto é a urgência de suprir a carência de sangue nas reservas existentes, não só em Portugal, em plena situação pandémica. É uma questão elementar de igualdade e de direitos de cidadania e humanidade. Contudo, se, ainda assim, não for critério suficiente para acelerar o processo de revisão das orientações clínicas, que o seja o da sobrevivência de tantas e tantos que perecem à espera de uma transfusão de algum componente sanguíneo. Afinal, em que é que o sangue de um/a não heterossexual se diferencia do de um/a heterossexual? Ambos salvam vidas e isso, bom, isso deveria ser tudo o que importa.

Fonte:https://www.esquerda.net/opiniao/dadiva-de-sangue-para-quando-o-fim-efectivo-da-discriminacao/72511

Sobre o/a autor(a)

Enfermeira na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital de Santa Maria

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