Uma nova campanha arqueológica realizada em Kani Shaie, no Curdistão iraquiano, por uma equipa internacional liderada por investigadores da Universidade de Coimbra (UC), resultou em várias descobertas.
Esta campanha, efetuada no âmbito do projeto de investigação “KSAP – Projeto Arqueológico de Kani Shaie”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), foi coordenada por André Tomé, Maria da Conceição Lopes e Steve Renette, do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património (CEAACP) da UC, e contou com a participação de investigadores de oito nacionalidades e de várias universidades como Cambridge, Toronto e Carolina do Norte.
Kani Shaie, às portas das montanhas, entre a planície e as altas montanhas conhecidas como Zagros, é um pequeno sítio que se encontra longe do coração da Mesopotâmia, mas plenamente integrado no contexto regional dos grandes desenvolvimentos tecnológicos e transformações societais que, num período entre o VI milénio a.C. e o final da primeira metade do III, desenham o futuro da humanidade.
Nesta campanha de escavações, os objetivos centraram-se nos contextos do início do terceiro milénio, tendo a equipa de arqueólogos descoberto «parte de uma ocupação com arquiteturas unicelulares com acesso para espaços de trabalho exteriores equipados com pequenos fornos e outras estruturas de processamento de alimentos, bem como materiais pouco comuns para a época, tais como metal», revelam André Tomé e Maria da Conceição Lopes.
«De uma fase ligeiramente mais antiga, ainda mais do início desse milénio em que a escrita e outros instrumentos burocráticos se generalizam, foi descoberta uma grande estrutura de armazenamento de cereais que terá sido destruída por um incêndio, cujas causas são, por ora, difíceis de aferir, e que pôs fim a esta ocupação», relatam.
No interior, prosseguem os cientistas da UC/CEAACP, foram encontradas «várias impressões de selos cilíndricos, testemunhando práticas de selagem, de controlo de mercadorias e propriedade. Essas impressões, por norma associadas a contextos urbanos, das quais recolheram-se várias dezenas em Kani Shaie, e os motivos revelados demonstram que, afinal, um pequeno sítio como este, de simples arquiteturas, encontrava-se no centro do mundo, com ligações às grandes cidades do Sul Mesopotâmico, incluindo a região de Susa no atual Irão, a vales longínquos nas regiões montanhosas dos Zagros, à Síria e à Anatólia».
Esta centralidade foi também demonstrada em outros achados desta campanha, como objetos em obsidiana ou pedra-pomes, «que só se podem encontrar em regiões a milhares de quilómetros de distância». Esta riqueza de materiais, indicam André Tomé e Maria da Conceição Lopes, desencadeia um conjunto de questões: «Seria Kani Shaie um importante entreposto comercial, estação de muda entre várias regiões, uma espécie de caravanserai neste terceiro milénio, colocado já sobre os caminhos das várias rotas que um dia serão aglutinadas como “Rota da Seda”? E seria essa função já desempenhada ao longo do quarto milénio, do qual os achados de campanhas anteriores parecem representar um ponto de confluência de várias esferas culturais num momento tão importante para a história da humanidade?».
Segundo a equipa, a «escrita começa a surgir no Sul da Mesopotâmia no último quartel desse quarto milénio, e em Kani Shaie, o processo de desenvolvimento dessa tecnologia, é documentada coetaneamente por uma tabuinha de argila com uma marca numérica. A próxima campanha contará, certamente, mais desta história pouco conhecida».
Em simultâneo com as escavações, a equipa da UC/CEAACP desenvolveu uma investigação complementar assente no trabalho de campo sobre as arquiteturas tradicionais, registo das técnicas construtivas e das morfologias arquitetónicas, em várias subunidades de paisagem das áreas de montanha de Sulaimania.
A equipa do KSAP formalizou um novo contrato de parceria com as autoridades curdas com vista ao prolongamento dos trabalhos por mais cinco anos. Durante as escavações arqueológicas foram ainda ministrados cursos de formação técnica a estudantes e arqueólogos locais.
Cristina Pinto
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