sábado, 26 de dezembro de 2015

DIREITO E PODER


 Para compreender adequadamente o sentido da afirmação de que a norma jurídica válida provém do uso legítimo do poder, é necessário entender a diferença entre poder e força, que são conceitos diversos, apesar de terem uma estreita relação. Em especial, é preciso ter em mente que a força é um dos elementos do poder, mas não é o único, pois ele também envolve a autoridade.
A força é o elemento coactivo do poder, pois os sujeitos que têm poder são capazes de impor sua vontade a terceiros. Porém, o simples uso da força não deve ser confundido com o exercício do poder, na medida em que pode se tratar apenas de um mero ato de violência. Um assaltante que ameaça sua vítima com uma arma de fogo e ordena que ela lhe entregue seu relógio pratica um acto coactivo, mediante a utilização de sua força. Porém, esse acto não é um exercício de poder propriamente dito, pois ele pode gerar obediência, mas não gera dever.
E o poder gera obrigação justamente porque ele envolve um elemento além da mera força, que é a autoridade. A autoridade é um elemento normativo, pois ela sempre deriva de uma regra que confere a um determinado sujeito a possibilidade de impor deveres a outras pessoas. Assim, o exercício do poder é o exercício de uma autoridade constituída normativamente.
Não há autoridade sem norma, assim como não há poder sem força. Porém, tanto a força quanto as normas vinculadas a um poder podem ter atributos muito diferentes. Quando a obediência é conquistada por meio da imposição de sanções que envolvem violência física, a força envolvida tem a natureza de uma coacção exercida directamente sobre o corpo ou sobre os bens da pessoa. Mas essa força também pode assumir a face de uma coacção pela violência simbólica, que gera obediência em virtude de sanções de carácter simbólico[1], tais como o sentimento de culpa moral ou punições divinas. Ela também pode consistir na capacidade de determinar a obediência espontânea, estimulada pelo desejo de obedecer e não pelo medo da punição. Em todos esses casos, a força é a medida da capacidade de uma norma gerar obediência.
Porém, a obtenção da obediência somente é constitui o exercício de poder (e não uma mera arbitrariedade) quando ela resulta do exercício de uma autoridade legítima. O poder religioso, por exemplo, é baseado numa autoridade derivada de alguma espécie de delegação divina e que pode ser atribuída a pessoas e instituições específicas. Já o poder moral deriva de uma autoridade social que não pode ser delegada a qualquer órgão específico, pois tem natureza unicamente consuetudinária. O poder jurídico, por sua vez, liga-se a uma autoridade que pode ser atribuída, pela autoridade política, a instituições ou pessoas específicas.
Essa distinção entre poder e força mostra-se inclusive na distinção jurídica entre os vocábulos coacção (que é a mera utilização da força física ou simbólica) e coerção (que é o exercício da força por uma autoridade legítima). Assim, quando um policial utiliza da força para conduzir um réu condenado à prisão, falamos em condução coercitiva, e não em condução coactiva, pois a palavra coacção é reservada ao uso ilegítimo da força.
Tudo isso nos faz perceber que é a autoridade justifica a utilização da força, pois a justificação da violência nunca está na própria capacidade de coacção, mas na autoridade que confere a uma pessoa a possibilidade jurídica de impor sua vontade a outras. Portanto, a validade de uma norma jurídica não provém da força de quem a estabelece, mas sim da autoridade de quem edita a norma.


[1] Devemos ressaltar que simbólico não significa irreal, pois nós vivemos em uma realidade composta tanto por elementos físicos como por elementos simbólicos. A culpa, a rejeição social e o medo do inferno, por mais que tenham uma natureza simbólica, podem gerar sofrimento maior do que várias das sanções referentes a violências físicas, como a perda de um bem. Assim, a violência simbólica, tal como a violência física, são capazes de gerar obediência.

Por Alexandre Araújo Costa

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