Embora
o direito natural seja o de mais alta hierarquia, ele é composto por normas de
natureza muito genérica, que precisam ser concretizadas em cada momento
histórico. Os conceitos de justiça e igualdade, por exemplo, mudam com o
processo histórico, tal como nos mostra a gradual construção da
inadmissibilidade do trabalho escravo e da subordinação da mulher ao homem.
Além
disso, os direitos humanos determinam as nossas obrigações jurídicas, mas não
estabelecem punições específicas, pois a sua determinação depende do contexto
histórico em que são criadas. Matar alguém é contrário ao direito natural, mas
este não estabelece quais são as penas que deverão ser aplicadas aos homicidas.
Descumprir uma promessa é injusto por natureza, mas o direito natural não
oferece critérios adequados sobre como, onde e quando as obrigações devem ser
cumpridas. Por tudo isso, é preciso que o homem complemente o direito natural
com disposições adequadas à sua cultura e ao seu tempo.
O
direito natural, portanto, é um conjunto de normas cuja observância é
necessária, mas insuficiente para garantir a justiça na convivência humana.
Nessa medida, é uma exigência do próprio direito natural a sua complementação
pelo direito positivo, que estabelece para cada momento histórico uma ordenação
das liberdades, mediante o exercício do poder legislativo.
O
direito positivo, assim criado, é fruto da vontade soberana da sociedade, que
deve impor a todos os cidadãos normas voltadas para a assegurar às relações
interpessoais a ordem e a estabilidade necessárias para a construção de uma
sociedade justa. Dessa forma, a vontade do soberano contribui para a
efectivação da justiça, de tal forma que ela deve ser observada sempre que não
colidir com os mandamentos do direito natural, pois ele é a fonte da sua
legitimidade.
O
conceito de direito positivo não deve ser limitado ao direito escrito
nem ao legislado. O que torna positiva uma norma não é o fato de ela ser fruto
da actividade legislativa, pois essa actividade gera apenas as leis,
que as regras jurídicas caracterizada por serem impostas pela autoridade
política. Porém, são igualmente positivos os costumes e os contratos, pois
ambos são formas de criação histórica do direito, a partir do exercício do
poder normativo social.
Mas
ocorre que as sociedades contemporâneas são politicamente organizadas na forma
de Estados, de tal forma que o direito positivo dessas sociedades é
"o conjunto de normas de conduta obrigatórias estabelecidas ou autorizadas
pelo próprio Estado e garantidas pelo seu poder".
Portanto, embora não haja uma conexão necessária entre o direito positivo
e direito estatal, essa identidade existe nos dias actuais em virtude
da forma de organização prevalente nas sociedades.
O
Estado é o ente ao qual a sociedade atribuiu o poder legislativo, de tal forma
que lhe cabe o monopólio da edição de leis. É certo que a sociedade continuou
reservando a si mesma o poder normativo que ela exerce de forma
consuetudinária, inclusive na elaboração de normas jurídicas. Também é certo
que o direito de estabelecer contratos continua sendo reconhecido aos cidadãos.
Porém, na actual configuração social, ambas essas fontes do direito foram
subordinadas à fonte legislativa, o que significa que se atribuiu ao Estado a
função de determinar os critérios de juridicidade.
Dessa
forma, é o Estado que actualmente estabelece as regras para o reconhecimento
dos costumes válidos, bem como é ele que organiza o exercício da actividade
normativa contratual. Assim, podemos afirmar que o direito positivo
contemporâneo é o conjunto formado pelas leis editadas pelo Estado e pelos
costumes e contratos cuja validade é por ele reconhecida.
Esse
direito positivo não deve ser percebido como uma explicitação daquilo que se
encontra implícito no direito natural, pois isso significaria pressupor que
toda a normatividade social estaria contida nos direitos humanos e que bastaria
uma observação cuidadosa desses direitos para trazer à luz as directrizes
justas para o agir humano. Esse foi um erro típico do racionalismo exacerbado
do séc. XVIII, em que os juristas buscaram elaborar sistemas de direito natural
tão específicos e desenvolvidos quanto as ordens positivas. Essa tentativa de
extrair racionalmente do direito natural as regras da convivência justa
implicava uma confiança exagerada na razão humana e uma completa
desconsideração da história, que são incompatíveis com a sociedade
contemporânea.
A
análise de um jurista, por mais genial que ele seja, não pode extrair do
direito natural o que nele não se encontra. E ele é formado apenas por
princípios gerais, cuja concretização se dá por meio de uma actividade criativa
que não se limita a desvelar normas implícitas. E é esse elemento criativo que
permite que o direito de cada época seja adequado ao contexto histórico em que
ele se desenvolve. Assim, mesmo que os princípios naturais permaneçam
inalterados, os modos de sua efectivação precisam ser constantemente adaptados
aos valores sociais dominantes, tarefa que é desempenhada pelo direito
positivo, constantemente modificado pela gradual modificação dos costumes, pela
invenção de novos contratos e pelas inovações legislativas.
Existe,
portanto, uma relação de identidade necessária entre direito natural e
justiça (pois o direito natural é intrinsecamente justo) e uma relação de compatibilidade
necessária entre direito positivo e justiça (pois a instauração da norma
injusta não é um ato jurídico, e sim um exercício arbitrário da força). Porém,
como a sociedade nem sempre produz normas justas, ou produz regras que se
tornam injustas com o passar do tempo, compete-nos a busca incessante de
adequar o direito positivo ao direito natural, garantindo assim uma regulação
justa das relações sociais.
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