terça-feira, 15 de dezembro de 2015

SER POLÍTICO SIGNIFICA QUERER A SOBERANIA


Ser político significa ter vitalmente impresso no sangue o que o Estado significa. Ser político significa querer a soberania. Está bem que uma pessoa se preocupe pelo que há de útil na vida, pela economia e pelo trabalho ordenado, mas é necessário descobrir em tudo o íntimo sentido do direito. O político pela soberania e pelo direito. Procura torná-los efectivos através de todos os objectivos e utilidades e, se fosse preciso, mesmo em detrimento deles. Todo aquele que tem sentido político não pode deixar de reparar com verdadeira preocupação, com veemente angústia, como se vai perdendo a soberania do estado.

Ele pressente que se avizinha um mundo em que não se poderá respirar, um mundo regido por uma violência calculadora, que é a caricatura da soberania, e uma ordem social protectora da economia, mas destruidora de toda a dignidade, que é a caricatura do direito.

Poder-se-ia objectar contra a nossa tese com o argumento de que os Estados sempre roubaram ou destruíram. É verdade. Os Estados também estão sujeitos ao pecado original. Mas antes existia a consciência daquilo que chamei «sentido do Estado»; distinguiam-no do seu objecto, mesmo que cometessem algum crime contra ele. Mas agora é esse sentido que ameaça ruína total. A soberania do Estado está a perder-se. Não pretendo dizer com isto que o Estado não tenha poderes externos. Mas há outra força, que radica precisamente na própria soberania, que depende de esta soberania se manter viva na alma e ser tomada a sério pelos homens. Só nessa altura estes sentem as suas responsabilidades. Mas é precisamente isto que está a desaparecer. Já não se concebe essa soberania. O Estado situa-se na mesma linha de uma sociedade anónima. Não há quem o leve a sério. Passa-se por cima dele com frequência. Desprezam-se as suas leis. Não só as violam, o que sempre aconteceu, mas desprezam-nas muito simplesmente, não as têm em conta.


Há vários indivíduos junto do painel onde afixam as notícias. Saiu, por hipótese, uma nova disposição sobre o peso do pão. Um deles lê, volta-se para os outros e murmura, enquanto se afasta: «Exploradores! Já não nos querem ajudar! Querem dar cabo de nós!». Semelhantes palavras encontram imediatamente eco em todos os corações. Reúne-se um grupo num café, vêm à baila os acontecimentos políticos do dia. Alguém declara, numa atitude de profundo desprezo: «Não se pode aguentar o regime! Quanto mais cedo for abaixo, melhor!». E todos concordam com a cabeça. Na reunião de um grupo financeiro, fala-se da criação de uma empresa. Discutem-se com todo o sangue frio as leis estatais que se lhe opõem, estuda-se a maneira de as iludir e de saltar por cima delas. Admitem-se, como a coisa mais natural deste mundo, que o Estado, com todas as suas leis, representa para o homem de negócios uma coisa diante da qual só os tolos é que param…

Tudo isto foi escrito nos terríveis anos imediatamente posteriores à primeira guerra mundial. Talvez tu não te lembres. Desde então, as coisas variaram muito. Não existem leis reguladoras do pão e coisas parecidas. Mas deixemos estar o que dissemos; pode servir para dar uma ideia daqueles anos. De resto, se nos lembrássemos de encher todas essas frases, não com o tema do pão, mas com conteúdos actuais, com o que vemos e lemos hoje em dia, então voltariam a cobrar todo o seu sentido.

Por que é que o Estado já não tem valor algum? Porque já não o tem no coração do homem do painel das notícias, nem no homem da reunião do café, nem no homem de negócios. Porque o primeiro considerou o Estado como inimigo num momento em que os que o rodeavam tinham o coração amargurado; porque o segundo o deitou abaixo na presença dos ouvintes; porque o terceiro, com toda a naturalidade, o considerou como um obstáculo, por cima do qual podia licitamente saltar o interesse privado.

Se estes homens escreverem agora no jornal, os seus artigos respirarão o clima da calúnia e da destruição, sem ponta alguma de respeito nem de responsabilidade. Se se reunirem, a conversa deslizará por cima dessas mesmas rodas. É que sentem um gozo selvagem em ver a soberania do Estado por terra, feita em fanicos. Se algum deles entrar no parlamento como deputado, idêntico tom ressoará em todas as suas palavras. Experimenta ouvir alguma vez as conversas políticas! Lê com atenção os jornais! Causar-te-ão nojo as inauditas e repugnantes injurias, as críticas intermináveis sem pés nem cabeça. Estamos tão acostumados a isso, que já não reparamos que há em tudo uma grande falta de consciência. Que maneira de julgar sem conhecimento de causa, sem nenhuma justiça e sem sentido do que se trata. Já nem sequer notamos que indigno e desolador é tudo isto!

Se estes homens ocuparem um cargo, fá-lo-ão sem fé. Não acreditarão que possa ter um sentido íntimo. É que não acreditam na dignidade do dever. Desempenham os cargos por simples necessidade, ou a título e por proveito próprio, mas sem o menor interesse construtivo. Não sabem encarnar o Estado no cumprimento da sua missão. São incapazes de suportar tranquilamente e com naturalidade uma dignidade qualquer. Em geral, não têm dignidade alguma, olham as suas funções como um negócio; e, se alguma vez a têm, não lhes assenta bem e só serve para irritar os outros.

O Estado opõe-se-nos nos seus representantes. Encarnar no próprio cargo a soberania viva do Estado, com simplicidade e naturalidade, só o pode fazer quem a sabe afirmar vitalmente. Mas, se uma pessoa se deixa imbuir dessa ideologia céptica e destruidora de que falámos, se o Estado é para ela uma coisa que hoje existe e amanhã desaparece, por cima da qual se pode saltar irresponsavelmente sempre que for preciso, então na realidade o Estado assumirá a seus olhos esses mesmos traços.

Mas não é lícito uma pessoa impugnar o que lhe parece falso? Com certeza que o é, e com toda a alma. Mas, em princípio, deve prevalecer o «sim», de maneira nenhuma o «não». Primeiro o «sim», como respeito e prontidão no cumprimento do dever; depois, pode vir o «não» da crítica. E, se esta se chega a exercer, é preciso uma pessoa certificar-se primeiro do que se trata. É bom distinguir, antes de generalizar. Devemos separar as pessoas das coisas; o abuso, do uso recto. Quem assim critica, sempre tem em conta o «sim» através do «não»; faz do «não» uma coisa séria. Nota-se na crítica o seu respeito pelo Estado, o seu sentido de responsabilidade, e fica-se a confiar nele.

Também é próprio da crítica construtiva saber calar e falar no tempo oportuno. Falar no lugar preciso e a um auditório adequado e ter consciência do efeito produzido pelas palavras. Em semelhante disposição, temos a atitude politica. Quem assim se conduz, traz o Estado em si.

Por Joaquim Carlos

*Jornalista

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