Ser político significa ter vitalmente
impresso no sangue o que o Estado significa. Ser político significa querer a
soberania. Está bem que uma pessoa se preocupe pelo que há de útil na vida, pela
economia e pelo trabalho ordenado, mas é necessário descobrir em tudo o íntimo
sentido do direito. O político pela soberania e pelo direito. Procura torná-los
efectivos através de todos os objectivos e utilidades e, se fosse preciso,
mesmo em detrimento deles. Todo aquele que tem sentido político não pode deixar
de reparar com verdadeira preocupação, com veemente angústia, como se vai
perdendo a soberania do estado.
Ele pressente que se avizinha um mundo
em que não se poderá respirar, um mundo regido por uma violência calculadora,
que é a caricatura da soberania, e uma ordem social protectora da economia, mas
destruidora de toda a dignidade, que é a caricatura do direito.
Poder-se-ia objectar contra a nossa tese
com o argumento de que os Estados sempre roubaram ou destruíram. É verdade. Os
Estados também estão sujeitos ao pecado original. Mas antes existia a
consciência daquilo que chamei «sentido do Estado»; distinguiam-no do seu
objecto, mesmo que cometessem algum crime contra ele. Mas agora é esse sentido
que ameaça ruína total. A soberania do Estado está a perder-se. Não pretendo
dizer com isto que o Estado não tenha poderes externos. Mas há outra força, que
radica precisamente na própria soberania, que depende de esta soberania se
manter viva na alma e ser tomada a sério pelos homens. Só nessa altura estes
sentem as suas responsabilidades. Mas é precisamente isto que está a
desaparecer. Já não se concebe essa soberania. O Estado situa-se na mesma linha
de uma sociedade anónima. Não há quem o leve a sério. Passa-se por cima dele
com frequência. Desprezam-se as suas leis. Não só as violam, o que sempre aconteceu,
mas desprezam-nas muito simplesmente, não as têm em conta.
Há vários indivíduos junto do painel
onde afixam as notícias. Saiu, por hipótese, uma nova disposição sobre o peso
do pão. Um deles lê, volta-se para os outros e murmura, enquanto se afasta:
«Exploradores! Já não nos querem ajudar! Querem dar cabo de nós!». Semelhantes
palavras encontram imediatamente eco em todos os corações. Reúne-se um grupo
num café, vêm à baila os acontecimentos políticos do dia. Alguém declara, numa
atitude de profundo desprezo: «Não se pode aguentar o regime! Quanto mais cedo
for abaixo, melhor!». E todos concordam com a cabeça. Na reunião de um grupo
financeiro, fala-se da criação de uma empresa. Discutem-se com todo o sangue
frio as leis estatais que se lhe opõem, estuda-se a maneira de as iludir e de
saltar por cima delas. Admitem-se, como a coisa mais natural deste mundo, que o
Estado, com todas as suas leis, representa para o homem de negócios uma coisa
diante da qual só os tolos é que param…
Tudo isto foi escrito nos terríveis anos
imediatamente posteriores à primeira guerra mundial. Talvez tu não te lembres.
Desde então, as coisas variaram muito. Não existem leis reguladoras do pão e
coisas parecidas. Mas deixemos estar o que dissemos; pode servir para dar uma
ideia daqueles anos. De resto, se nos lembrássemos de encher todas essas
frases, não com o tema do pão, mas com conteúdos actuais, com o que vemos e
lemos hoje em dia, então voltariam a cobrar todo o seu sentido.
Por que é que o Estado já não tem valor
algum? Porque já não o tem no coração do homem do painel das notícias, nem no
homem da reunião do café, nem no homem de negócios. Porque o primeiro considerou
o Estado como inimigo num momento em que os que o rodeavam tinham o coração
amargurado; porque o segundo o deitou abaixo na presença dos ouvintes; porque o
terceiro, com toda a naturalidade, o considerou como um obstáculo, por cima do
qual podia licitamente saltar o interesse privado.
Se estes homens escreverem agora no
jornal, os seus artigos respirarão o clima da calúnia e da destruição, sem
ponta alguma de respeito nem de responsabilidade. Se se reunirem, a conversa
deslizará por cima dessas mesmas rodas. É que sentem um gozo selvagem em ver a
soberania do Estado por terra, feita em fanicos. Se algum deles entrar no
parlamento como deputado, idêntico tom ressoará em todas as suas palavras.
Experimenta ouvir alguma vez as conversas políticas! Lê com atenção os jornais!
Causar-te-ão nojo as inauditas e repugnantes injurias, as críticas
intermináveis sem pés nem cabeça. Estamos tão acostumados a isso, que já não
reparamos que há em tudo uma grande falta de consciência. Que maneira de julgar
sem conhecimento de causa, sem nenhuma justiça e sem sentido do que se trata.
Já nem sequer notamos que indigno e desolador é tudo isto!
Se estes homens ocuparem um cargo,
fá-lo-ão sem fé. Não acreditarão que possa ter um sentido íntimo. É que não acreditam
na dignidade do dever. Desempenham os cargos por simples
necessidade, ou a título e por proveito próprio, mas sem o menor interesse
construtivo. Não sabem encarnar o Estado no cumprimento da sua missão. São
incapazes de suportar tranquilamente e com naturalidade uma dignidade qualquer.
Em geral, não têm dignidade alguma, olham as suas funções como um negócio; e,
se alguma vez a têm, não lhes assenta bem e só serve para irritar os outros.
O Estado opõe-se-nos nos seus
representantes. Encarnar no próprio cargo a soberania viva do Estado, com
simplicidade e naturalidade, só o pode fazer quem a sabe afirmar vitalmente.
Mas, se uma pessoa se deixa imbuir dessa ideologia céptica e destruidora de que
falámos, se o Estado é para ela uma coisa que hoje existe e amanhã desaparece,
por cima da qual se pode saltar irresponsavelmente sempre que for preciso,
então na realidade o Estado assumirá a seus olhos esses mesmos traços.
Mas não é lícito uma pessoa impugnar o
que lhe parece falso? Com certeza que o é, e com toda a alma. Mas, em
princípio, deve prevalecer o «sim», de maneira nenhuma o «não». Primeiro o
«sim», como respeito e prontidão no cumprimento do dever; depois, pode vir o
«não» da crítica. E, se esta se chega a exercer, é preciso uma pessoa
certificar-se primeiro do que se trata. É bom distinguir, antes de generalizar.
Devemos separar as pessoas das coisas; o abuso, do uso recto. Quem assim
critica, sempre tem em conta o «sim» através do «não»; faz do «não» uma coisa
séria. Nota-se na crítica o seu respeito pelo Estado, o seu sentido de
responsabilidade, e fica-se a confiar nele.
Também é próprio da crítica construtiva
saber calar e falar no tempo oportuno. Falar no lugar preciso e a um auditório
adequado e ter consciência do efeito produzido pelas palavras. Em semelhante
disposição, temos a atitude politica. Quem assim se conduz, traz o Estado em
si.
Por Joaquim Carlos
*Jornalista
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