terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Macroscópio – O Orçamento que não agradou (realmente) a ninguém


Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Sexta-feira, como referimos no últimos Macroscópio da semana passada, o Orçamento do Estado para 2016 entrou na Assembleia e foi apresentado ao país. Os comentários e análises foram entretanto sendo conhecidos ao longo do fim-de-semana e, de uma forma geral, pode-se dizer que este é um Orçamento que não agradou (realmente) a ninguém – nem sequer ao primeiro-ministro que se queixou de que preferia o esboço inicialmente entregue em Bruxelas e que fora criticado dentro de portas (pelo Conselho de Finanças Públicas e pela UTAO) e rejeitado fora de portas (no primeira reunião do Colégio de Comissários).

A falta de paternidade deste Orçamento é tal que foi tema para Paulo Ferreira, no Observador, em Um orçamento ‘zombie’ – “O que vai acontecer a partir de agora é qualquer coisa que ninguém apresentou ou defendeu até hoje: nem o PS, nem o BE, nem o PCP, nem Bruxelas. Vamos ver se resulta?”- e André Macedo no Diário de Notícias, em Filho de pai incógnito ou órfão de pai e mãe? – “O orçamento não é de Centeno que não assume o cenário fiscal, nem do Bloco que só lá vê o que negociou com o PS, nem do PCP que faz o mesmo que o Bloco. E até a Comissão Europeia, que fez de barriga de aluguer, lhe realça os defeitos e antecipa riscos de doença complicada à medida que ele começar a andar. Pode também estar a acontecer que o filho seja de todos, mas que ninguém queira ficar com o menino nos braços.”

Uma parte desse processo contamo-lo em Macroscópios das duas últimas semanas, onde também nos deixei todos os documentos, dos esboços à proposta de lei que entre no Parlamento, passando pelos pareceres domésticos e pelas cartas de Bruxelas. Cabe por isso hoje dedicar o essencial desta newsletter às análises publicadas já depois do texto final ser conhecido – isto para além de referir, para quem estivar interessado, a entrevista de Mário Centeno ao Expresso: “Não posso responder se as 35 horas avançam este ano”.

Um dos pontos mais glosados um pouco por todo o lado sobre o OE 2016 é o de que, mais do que “virar a página da austeridade”, passámos a ter uma “austeridade de esquerda”, ideia que o próprio ministro não recusou numa outra sua entrevista, esta à SIC Notícias. Ideia que Helena Garrido desenvolveu no Jornal de Negócios, em Novo manual da austeridade: “As palavras contam uma história. Os números revelam outra. Virámos a página da austeridade? Não. Mudámos de manual da austeridade, isso sim. Para 2016 está até prometida mais austeridade do que a que efectivamente se prometeu e teve em 2015. Nem podia ser de outra maneira enquanto a dívida for o que é. A arte está na forma como se conta a história. E aí António Costa é um mestre.”

Bruno Faria Lopes, no Diário Económico, considera que este é Um orçamento para Costa viver, isto é, um Orçamento que não faz desaparecer a austeridade, antes a aplica de outra forma, uma forma sobre a qual deixa muitas dúvidas, pois a distribuição dos sacrifícios lhe parece pouco “social”, digamos assim: “A ideia é de que o Orçamento defende “os de sempre” – pobres e classe média/baixa – e vai buscar o dinheiro a outros lados, da banca à classe média/alta. Quando se olha para o Orçamento como um todo, contudo, este argumento perde força. Medidas directamente para os mais pobres (RSI, actualização de pensões baixas, etc.) valem menos de 15% do bolo dedicado à “promoção do rendimento, equidade e crescimento”. Funcionários públicos (sobretudo os de salários mais altos), proprietários de restaurantes, pensionistas mais ricos (que pagavam a CES), famílias com rendimentos acima de 40 mil euros/ano (por via da redução da sobretaxa) representam 56% desse bolo de 1,4 mil milhões de euros.”

Alberto Gonçalves segue, no Diário de Notícias, por caminhos semelhantes, em Os patriotas que vão acabar com a pátria, mas é bastante mais duro. Para ele, “Na prática, a "vitória" diplomática do dr. Costa traduz-se no castigo dos ricos, os ricos que trabalham no sector privado, os ricos que auferem mil euros, os ricos que fumam, os ricos que bebem, os ricos com carro, os ricos com filhos, os ricos sem filhos, os ricos com conta bancária, os ricos que comem tostas, os ricos que pagam os feriados, os ricos que pagam IRC, os ricos que pagam os juros da dívida, os ricos que pagam um manicómio com a capacidade de atrair investimento do Butão, os ricos que vão pagar um isolamento orgulhoso e triste.”

Um outro caminho seguido em muitas análises foi o de utilizar metáforas animais para classificar o documento preparado pela equipa de Mário Centeno. Ornitorrinco do Estado 2016 chamou-lhe Ricardo Costa no Expresso (link para assinantes), especificando que o que temos é “um mamífero keynesiano enxertado de ovíparo austeritário, com propriedades semiaquáticas europeias. Fora isso, move-se, vai andar por aí, e nós vamos dar muito por ele.” No mesmo Expresso Pedro Santos Guerreiro fala de O animal mitológico (link para assinantes) defendendo a ideia de que pouco resta nele de qualquer estratégia económica. Mesmo assim sublinhou diferenças entre as opções de hoje e as opções de ontem: “Este orçamento prova que a esquerda e a direita (ou melhor, o PS e o PSD) são hoje mais diferentes do que alguma vez foram nos últimos trinta anos. A ideologia económica é simétrica. Os orçamentos do PSD/CDS quase não tinham medidas desfavoráveis às empresas, este quase não tem medidas favoráveis; a austeridade recaía sobre o Estado, agora transfere peso para os privados; o outro resignava-se ao empobrecimento, este revolta-se mas ilogicamente.”

Passemos agora a algumas análises que procuram ir mais ao pormenor das medidas, abrindo com uma referência à síntese de Francisco Sarsfield Cabral na Rádio Renascença, até porque o seu texto assume em título a ideia que já referimos a abrir, a daAusteridade de esquerda: “O governo de A. Costa impõs a maior carga fiscal de sempre. Tornou-se, assim, patético dizer que a austeridade acabou. Agora é uma “austeridade de esquerda”, argumenta-se. É verdade, em parte: a reposição dos rendimentos das famílias beneficia os mais pobres, o que é de saudar. Mas caiu a baixa do TSU para cerca de um milhão de trabalhadores com salário até 600 euros. E não é socialmente justo nem “de esquerda” carregar nos impostos indirectos, que ricos e pobres pagam por igual.”

No Observador reunimos seis reações diversificadas em O que pensar sobre o Orçamento? Leia 6 respostas, sendo elas as de Paulo Ferreira, Jornalista (já citada atrás), Jorge Costa Analista e blogger, Nuno Garoupa, Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, José Manuel Fernandes, eu mesmo, Publisher do Observador, Paulo Trigo Pereira, Professor do ISEG e deputado independente do grupo parlamentar do Partido Socialista, e André Azevedo Alves, Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. De todas elas destaco mais três, começando pela de Paulo Trigo Pereira, até pelo seu significado político: Maior justiça social e melhor estado. O deputado, que defende as linhas gerais do documento, diz-se desgostado por ter desaparecido o desconto da TSU para os trabalhadores de mais baixos salários, mas fá-lo sem dar sinais de ter desistido de procurar outras soluções: “O governo fez as suas opções. Cabe agora à Assembleia República estudar o documento e propôr eventuais alterações que, sem pôr em causa os objetivos orçamentais para os saldos, possa trazer melhorias ao mesmo. Do mesmo modo que considero que a Comissão não deve ser paternalista em relação ao Governo da República, também acho que o mesmo se deve aplicar na relação entre o Governo e a Assembleia da República.”

De sentido bem diferente é a análise de Jorge Costa, A austeridade continua. Pelo menos para a maioria: “Os montantes envolvidos no aumento das pensões mais baixas, ou do rendimento social de inserção, do complemento solidário para idosos e das prestações familiares (tudo somado) empalidecem ao lado do custo da reposição integral dos cortes na função pública em 2016, ou do regime de privilégio fiscal à restauração. Que todas estas medidas apareçam englobadas numa rúbrica de “Promoção do rendimento, Equidade e Crescimento” é que já é abusar da tolerância à demagogia.

Por fim, deste bloco de apreciações recolhidas pelo Observador, referência à análise de Nuno Garoupa em O modelo e o orçamento, na parte em que se refere à ideia que estará por trás de algumas das opções orçamentais: “Tanto o ministro, como o PS acreditam que mais disponibilidade de rendimento leva a mais consumo interno, o que por sua vez induz crescimento económico. Eu não acredito. Esse foi o modelo económico na década de 2000-2010, com governos de direita e de esquerda, e o crescimento económico foi zero.”

Regresso agora ao Expresso, mas para referir a opinião de um antigo ministro das Finanças, Jorge Braga de Macedo, que emSem sentido nem Centeno mostra preocupação por sentir que o ministro das Finanças não controlou como devia os ministérios gastadores: “O efeito mais evidente da fragmentação do processo orçamental é o documento não ter sentido na execução mesmo quando tem sentido na proposição. A causa mais evidente da fragmentação é o Ministro das Finanças não ter poder suficiente nas várias fases do processo, formulação, aprovação e implementação.”

Sendo esta uma análise mais técnica vale a pena contrapô-la a uma análise mais política, uma das que, mesmo sem mostrar entusiasmo pelo conteúdo do Orçamento, o apresentaram como correspondendo a uma vitória política de António Costa. Foi assim que viu este processo Manuel Carvalho, no Público, que em O recuo de António Costa que lhe deu uma vitória escreve que “se considerarmos o que estava em jogo, se atentarmos à armadilha de contradições em que o Governo se tinha metido, se pensarmos que no actual contexto político extremado não há soluções óptimas, temos de reconhecer o evidente: que António Costa e Mário Centeno obtiveram do recuo estratégico nas negociações com Bruxelas uma vitória política. Não enterraram a austeridade, mas mudaram-lhe a face; cederam às exigências da Comissão, mas fizeram-no numa base de boa vontade negocial da qual obtiveram resultados”.

Apesar de olhar para o problema de uma outra perspectiva, também foi na política que Camilo Lourenço encontrou A melhor notícia do Orçamento: “Nada na política orçamental portuguesa voltará a ser como dantes: quando um Governo quiser fazer disparates grosseiros no Orçamento, terá sempre a Comissão à perna. Como até o Bloco de Esquerda e o PCP perceberam: alguma vez estes partidos admitiriam aumentos de impostos se a Comissão não tivesse colocado os pés à parede?”

Será mesmo assim? Talvez valha a pena fazer um pequeno desvio por um outro texto dos jornais deste fim-de-semana para perceber que há sempre espaço para algum cepticismo, sobretudo quando pensamos na posição do PCP. O texto a que me refiro é de António Barreto, saiu no Diário de Notícias e chama-se simplesmente Os comunistas, nele se lamentando que não bastava a Portugal ter tido uma revolução industrial tardia e uma ditadura muito longa, também tinha de ter os últimos comunistas ortodoxos da Europa. Deixo-vos esta pequena passagem, onde o autor mostra algum desalento: “O mais curioso é que os comunistas conseguiram convencer grande número dos seus adversários, a começar pelos seus mais abominados rivais, os socialistas, a serem complacentes e a pensar como eles. São estes os responsáveis pelo resgate moral e político dos comunistas.”

E com esta última referência me despeço por hoje, desejando-vos desta vez não apenas um bom descanso, mas também a folia que entenderem adequada à quadra. Reencontramo-nos na quarta-feira.

 
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