sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Macroscópio – Trumpices, populismos e mais umas notas

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Aproximamo-nos da recta final das eleições norte-americanas e parece cada vez mais provável (mais certo?) que, depois do seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos elegeram para a Casa Branca a primeira presidente mulher. Não se pense contudo que tudo acabará com o escrutínio de 8 de Novembro, e não estou a pensar numa hipotética disputa sobre o resultado eleitoral (ou em problemas decorrentes dos e-mails de Hillary Clinton, agora que o FBI decidiu reabrir a investigação às suas más práticas): estou a pensar nas enormes feridas que esta campanha abriu, no terreno política devastado que dela nos arriscamos a herdar, e não apenas no campo republicano. Por isso começo o Macroscópio de hoje com meia dúzia de referências para compreender melhor o que se está a passar. A seguir, como de costume, acrescentarei algumas sugestões para leituras de fim-de-semana.
 
Quem gosta de política e, sobretudo, de política norte-americana, e procura perceber o movimento das placas tectónicas que determinam as diferentes geografias eleitorais não deve perder um excepcional trabalho Wall Street Journal, Republicans Rode Waves of Populism Until They Crashed the Party. Neste artigo analisa-se a forma como os republicanos foram acolhendo novas classe de eleitores ao longo das últimas décadas, muitos deles eleitores que antes votavam nos democratas, mas não se adaptou a essa nova realidade: “The GOP that carried Mr. Trump to the presidential nomination was formed by waves of new voters who washed onto Republican shores in the last four decades: George Wallace SouthernersRonald Reagan DemocratsPat Buchanan pitchfork populists and tea-party foot soldiers. The Republican establishment was happy to have the votes of these newcomers, many from America’s working class, and accommodated their cultural preferences on social issues from guns to abortion to gay marriage. What the establishment didn’t do was adjust the GOP’s economic approach to match the populist impulses—or even seem to consider such a shift necessary.” É muito interessante ver como isto aconteceu e olhar para alguns dos mapas e gráficos preparados pelo jornal, como o que mostro a seguir onde se vê como, entre 1996 e 2012, os republicanos (representados a vermelho) cresceram eleitoralmente no Sul e na zona dos Apalaches. O texto explica bem de onde vieram esses novos eleitores e porquê.
 

Uma outra leitura bem interessante é a de uma longa reportagem do Financial Times, How Trump gave a voice to unheard America, concluindo que “The Republican candidate means many different things to his supporters, but all of them feel ignored by Washington”. Ao contrário da caricatura muito popularizada de que estamos sobretudo na presença daquilo a que em bom português chamaríamos “grunhos”, o correspondente do jornal britânico retrata gente que, se corresponde no essencial ao retrato tipo do eleitor de Trump – brancos que não vivem nas grandes cidades – mostra que a sua base eleitoral é bem mais diversa. Por exemplo: “Donald Trump’s appeal doesn’t extend only to blue-collar workers or people facing the repercussions of the financial crisis. At the Trump rally in Monessen I met Laura and Gary Schisler, a middle-class couple whose perspective on Trump helped to explain how he has defied the odds. Laura is a retired teacher who was raised in Japan, and Gary is a retired air force pilot. For this evangelical Christian couple, Trump was not their first, or even second, choice in the GOP primary. (…) “As time went on, we started to realise that he wasn’t the typical politician … He wasn’t afraid to step outside of the box” [Laura said when I visited their home near Pittsburgh recently.] Gary is voting for Trump as the lesser of two evils, because “Hillary Clinton is in this for Hillary Clinton”.
 
Um dos fenómenos mais extraordinários destas eleições é Donald Trump ter realizado uma campanha caótica, cometido erros que teriam sido fatais para outros candidatos e investido muito menos dinheiro do que os seus rivais – sobretudo muito menos dinheiro do que Hillary Clinton – e ainda não ter desaparecido do mapa. É que, como escreveu Fareed Zakaria no Washington Post, Donald Trump has run the worst campaign in modern history. Eis um exemplo dos seus erros: “Trump has been skeptical that big data mattered, dismissing President Obama’s sophisticated analytics operation and insisting that the president’s personality was the chief reason for his electoral success. This has allowed Trump’s campaign to center entirely around him — turning itself into something that looks more like a celebrity concert tour than a multifaceted electioneering operation.”
 
Mesmo assim há quem receie uma surpresa no dia das eleições – algo semelhante à surpresa do Brexit (um cenário que, recordo, o historiador britânico Timothy Garton Ash colocou na entrevista que me deu em Julho, “Eu vi como os ingleses votaram no Brexit. Por isso, não se iludam: Trump pode ganhar”). Este é contudo um cenário que John Cassidy praticamente afasta na New Yorker, e de forma explicita: Why a Brexit shocker is unlikely here. O texto está organizado em vários pontos, começando por sublinhar que a diferença nas sondagens é muito maior nos Estados Unidos e que os primeiros números do voto antecipado também não parecem estar a favorecer Trump. E acabando a sublinhar que uma eleição presidencial é muito diferente de um referendo: “Since the Brexit vote, it has become evident that, beyond communicating a huge “screw you” to Britain’s political, media, and business establishment—which was largely on the Remain side—many Leave voters had little concrete idea what they were voting for. The consequences of a vote for Trump are a lot more clear: come January, he will be in the Oval Office. And ever since he won the Republican nomination, that hasn’t seemed like a prospect that a majority of Americans can unite behind.”
 
E o que nos dizem realmente as sondagens? Coloco a questão porque todos os dias saem dezenas de sondagens nos Estados Unidos, não apenas as que costumam fazer grandes títulos em Portugal. Os leitores do Macroscópio já sabem que o meu guia para seguir as sondagens é Nate Silver do site FiveThirtyEight e que sigo fielmente a sua newsletter (que também podem subscrever neste endereço), já que as suas análises são sempre cuidadosas e muito ponderadas. Anteontem, por exemplo, explicava em Election Update: Is The Presidential Race Tightening? que tudo indicava que a probabilidade de Trump ganhar continuava a ser muito baixa (16% contra 84% para Hillary), mas acrescentava logo que há sempre a possibilidade de erro: “A 16 percent chance of a Trump presidency isn’t nothing — as we’ve pointed out before, it’s about the same as the chances of losing a “game” of Russian roulette. And 15 percent is about the same chance we gave the San Antonio Spurs of beating the Golden State Warriors last night — the Spurs won by 29 points.” Ontem, em Election Update: The Polls Disagree, And That’s OK, procurava explicar as razões de algumas sondagens estarem a aparecer com resultados muito diferentes. Mesmo assim, alertava: “You also shouldn’t cherry-pick the two or three polls that fit your narrative when there are dozens of them out there, of course. But ignoring or “debunking” the polls you don’t like is often almost as bad a sin as cherry-picking the ones you do like.” Continuemos pois a seguir as suas análises e os seus mais recentes quadros, como este referente à provável distribuição dos votos no colégio eleitoral, onde é muito clara a vantagem de Hillary:


Ainda sobre Trump, mas remetendo para uma reflexão mais profunda e com algum enquadramento histórico sobre o significado, a tradição e as origens do populismo, houve dois artigos que me chamaram especialmente a atenção. O primeiro é um dos vários do mais recente número da prestigiada Foreign Affairs totalmente dedicada ao populismo – The Power of Populism. Chama-se Trump and American Populism – Old Whine, New Bottles e nele o historiador  Michael Kazin (director da revista de esquerda Dissent) recorda-nos que o populismo não é uma novidade na política norte-americana, defendendo tem uma tradição bem antiga e que nem sempre desempenha um papel exclusivamente negativo, sobretudo quando obriga as elites políticas a olharem com mais atenção para as preocupações das pessoas comuns: “Populism has had an unruly past. Racists and would-be authoritarians have exploited its appeal, as have more tolerant foes of plutocracy. But Americans have found no more powerful way to demand that their political elites live up to the ideals of equal opportunity and democratic rule to which they pay lip service during campaign seasons. Populism can be dangerous, but it may also be necessary. As the historian C. Vann Woodward wrote in 1959 in response to intellectuals who disparaged populism, “One must expect and even hope that there will be future upheavals to shock the seats of power and privilege and furnish the periodic therapy that seems necessary to the health of our democracy.”
 
Mais: as raízes do populismo podem ser traçadas até à forma como se fazia política na Antiguidade nos tempos clássicos, e heroicos, da República Romana, algo que outro historiador, Barry Strauss, faz na The New Criterion (uma revista literária conservadora), no artigo Populism, II: Populares & populists. Aí defende que “Wise elites will take populist movements as a wake-up call”: “Instead of merely denouncing populism as false consciousness, bigotry, resentment, bad manners, mental illness, peevishness, superstition, or class warfare, and instead of adopting a “Problems? What problems?” attitude when faced with protests, they will inquire as to whether genuine grievances might underlie populism’s appeal. Then, having recognized human suffering, they will try to ameliorate it in turn. In that way they will do the right thing while also saving their political skins. The problem of populism is the problem of elitism. The more just and astute the elite is, the less angry the people are. The more the elite treats politics like a big tent, in which no one should be left out, the less likely they are to face populist challenges.”
 
A crise do populismo pode, nestes termos, ser a oportunidade de repensar políticas e atitudes, mesmo que para já só vejamos os estilhaços. Mas também pode ser o início de uma espiral perigosa, sobretudo em países com menos tradições democráticas e menos mecanismos de controle do poder executivo (e estou a recordar-me de alguns países europeus). Mas deixemos agora a América de Trump e as reflexões sobre o populismo apenas para vos sugerir algo totalmente diferente para este fim-de-semana.


Primeiro – e desculpem começar por uma sugestão de que sou parte – não deixem de ouvir o Conversas à Quinta desta semana, Hungria, da revolução falhada de 1956 aos dias de Viktor Orbán, onde Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto têm uma muito interessante e coloquial troca de ideias (e de memórias pessoais) sobre a revolução húngara de 1956, o heroico levantamento popular que, há exactamente 60 anos, acabou tragicamente esmagado pelos tanques soviéticos. Até para entender melhor o país de Viktor Órban (podcast aqui).
 
Depois, como segunda sugestão, um belo texto de João Lobo Antunes, que nos abandonou esta semana: Ouvir com outros olhos. Trata-se do primeiro capítulo do seu ultimo livro, que tem exactamente o mesmo nome, e nele aquele príncipe da Medicina reflecte sobre ser médico e ser doente, sobre o medo e sobre a morte, também sobre o sentido da narrativa na medicina, tudo num texto de vida com muitas passagens autobiográficas. O livro foi publicado pela Gradiva, este capítulo republicámo-lo agora no Observador. (Mais dois textos sobre Lobo Antunes que, se ainda não leram, não percam: 11 reflexões sobre a vida e a morte, um conjunto de excertos de entrevistas que deu, e João Lobo Antunes, um príncipe da Renascença, um retrato que é também uma homenagem de Maria João Avillez.)
 
Por fim, como terceira e última sugestão, uma história de espionagem: The spy who couldn’t spell: how the biggest heist in the history of US espionage was foiled. Trata-se do excerto de um livro reproduzido pelo Guardian e que nos conta a história de Brian Regan que, por sofrer de dislexia, julgou que nunca desconfiariam que vendia segredos da CIA à Líbia de Kadhafi.  
 
E por hoje é tudo. De resto, não se esqueça que amanhã, sábado, muda a hora (e que há um “clássico” do Observador sobre esse tema: Sabe porque muda a hora? Esta história tem barbas), o que significa que tem mais uma hora para ler. Aproveite-a bem, que nos reencontramos para a semana. Bom descanso. 


 
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